Opinião

É preciso romper com a cultura do 'mandonismo' e do perfil inquisitório

Autor

  • Sérgio Cabral dos Reis

    é juiz do Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (13ª Região) doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor universitário (UEPB e Unifacisa).

29 de junho de 2020, 20h13

Por conta da pandemia do novo coronavírus, causador da Covid-19, os órgãos judiciários, no intuito de continuarem prestando tutela jurisdicional, passaram a realizar audiências virtuais, mas, em virtude da necessidade de isolamento social, várias preocupações estão sendo vivenciadas na prática.

No que se refere à Justiça do Trabalho, sem entrar no mérito dos questionamentos, a argumentação, no geral, foca-se no seguinte:

1) Dificuldade de tomar o depoimento pessoal das partes e de obtenção de confissão. O réu teria condições de ouvir o depoimento do autor, o que é vedado pelo CPC. Em outros termos, impossibilidade de se garantir que uma parte não escute o depoimento da outra (artigos 824 da CLT e 385, §2º, do CPC), quando ela esteja no mesmo ambiente de seu advogado ou noutro que permita a oitiva;

2) Dificuldade de saber se a parte ou as testemunhas são realmente as pessoas que se apresentam no vídeo;

3) Dificuldade de tomar o depoimento das testemunhas e de policiar qualquer interferência em seus depoimentos. No particular, seriam precauções idôneas, para evitar a comunicação indevida entre advogados, partes e testemunhas. Por outro lado, há o dever de salvaguardar o direito à comunicação privada entre partes e advogados, quando lhes for de direito, com a certeza de que isso não acarretará vantagem indevida na coleta de depoimentos de testemunhas;

4) Dificuldade de manter incomunicabilidade das testemunhas, ou seja, impossibilidade de assegurar que uma testemunha não ouça o depoimento das outras;

5) Dificuldades de realização de acareação. Seriam preocupações, no particular, sobre a existência de tecnologia adequada para preservação fidedigna do direito à acareação de testemunhas;

6) Dificuldade de controlar a utilização, pelas testemunhas, de apontamentos ou escritos;

7) Dificuldade de intimação pessoal de partes e testemunhas, quando for necessário;

8) Dificuldade de determinar o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário, para participar de atos virtuais e, uma vez determinado, para assegurar a idoneidade dos atos. Por outro lado, dificuldade de determinar o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade nos prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais, diante da vedação ao expediente presencial;

9) Prejuízo quanto à qualidade da oitiva das partes e das testemunhas ou até mesmo da compreensão da pergunta e da resposta pelo juiz, devido à instabilidade do tráfego de dados. Em outras palavras, problemas relacionados à qualidade do sinal de internet para coleta de depoimentos e solução de eventuais incidentes que podem ocorrer no curso da audiência;

10) Impedimento, devido à instabilidade do tráfego de dados, do depoimento das partes, e isso é um fato difícil de demonstrar, podendo levar a uma aplicação indevida da confissão;

11) Falta de visão panorâmica do depoimento das partes e das testemunhas pode ser prejudicial ao princípio da imediatidade;

12) Dificuldade, pelo juízo, de realizar a valorização da prova e dos depoimentos prestados;

13) Segurança jurídica de que a parte não sofra arquivamento, revelia ou confissão por ato com que não concorreu com dolo ou culpa. Por outro lado, a garantia de que a parte sofra arquivamento, revelia ou confissão por ato com que concorreu com dolo ou culpa;

14) Preservação do direito de a parte estar assistida por advogado, quando o problema no sinal de internet não ocorra por dolo ou culpa do profissional, caso estejam em ambientes distintos;

15) Prevenção contra eventual corte do sinal de internet, quando a parte esteja prestes a relatar fato contrário ao seu interesse, ou aferição de que não o fez propositadamente em tais ocasiões;

16) Precaução contra eventual desligamento do sinal de internet, quando a testemunha estiver na iminência de declarar algo em desfavor da parte que a convidou para depor;

17) Ausência de meios confiáveis para afiançar que o motivo de eventual adiamento da audiência decorre de fato justificado, e não de mecanismos escusos ou protelatórios;

18) Possibilidade de aglomeração de pessoas em escritórios de advocacia, infringindo as normas de saúde pública.

O fato é que todas essas preocupações são válidas, e não se podem prejudicar as prerrogativas processuais das partes em nome da eficiência.

Assim, a pergunta que se impõe é a seguinte: o juiz pode obrigar as partes a participarem das audiências virtuais, inclusive com a previsão de todas as suas eventuais consequências (arquivamento, revelia, confissão ficta etc.)? Entende-se que a resposta deve ser negativa, de modo que, se houver alguma alegação minimamente séria a respeito da dificuldade de acesso à justiça virtual, do exercício da ampla defesa e da obtenção probatória, o juiz não deve designar a audiência.

Além do mais, não há lei disciplinando especificamente as audiências virtuais em período de isolamento social, e, na democracia, o princípio da legalidade revela-se essencial, inclusive por uma questão de previsibilidade e segurança jurídica.

Não se pode esquecer que o processo, como instituição de garantia, deve ser analisado em perspectiva vertical, de cima para baixo, a partir da Constituição e dos tratados internacionais que disciplinam os direitos processuais, sempre na perspectiva de assegurar o devido processo legal substancial.

Os juízes do trabalho, nessa perspectiva, devem ter o cuidado de não "plantarem nulidades" no processo, pois, embora o intuito seja nobre, a tutela de direitos de caráter alimentar, as eventuais alegações de nulidade podem ser acolhidas pelos tribunais posteriormente, com o advento da "nova normalidade".

É possível, entretanto, para evitar a realização de atos processuais inúteis, que essas audiências virtuais sejam viabilizadas a partir da realização de negócios jurídicos processuais atípicos pelas partes.

Trata-se da utilização do microssistema processual de negociação previsto nos artigos 190 e 200 do CPC, plenamente aplicáveis à Justiça do Trabalho (artigo 769 da CLT; artigo 15 do CPC).

De acordo com o artigo 190 do CPC, "versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo".

Por sua vez, preconiza o artigo 200 do CPC: "Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais".

O tema, apesar de negligenciado na doutrina, sempre ocorreu na prática trabalhista, inclusive antes do CPC/2015 e, obviamente, da Reforma Trabalhista de 2017.

Já se vivenciou, por exemplo, a prática de pacto de adiamento da audiência, para que uma das partes procurasse advogado, a fim de suprir as dificuldades do juspostulandi. Também já se verificou o afastamento do arquivamento pelo fato de o reclamante ter chegado atrasado à audiência. Também já foi verificado, em sentido contrário, o afastamento da revelia e o julgamento antecipado da lide, pelo fato de o preposto ter chegado atrasado à audiência. Em matéria probatória, também eram comuns acordos para utilização de prova emprestada, escolha do perito (atualmente uma prova típica, por força do artigo 471 do CPC), delimitação do número de testemunhas que seriam ouvidas por cada parte, sua quantidade (por exemplo, em processos envolvendo acidente de trabalho, a realização de duas perícias, uma por um médico e outra por uma fisioterapeuta) e qualidade (escolha da especialidade) etc.

Não se trata, portanto, de novidade na Justiça do Trabalho.

Vale observar, como pressuposto da admissibilidade dos negócios processuais atípicos na esfera trabalhista, que, se a parte reclamante pode fazer acordo sobre o direito material deduzido em juízo, inclusive sem assistência de advogado (juspostulandi), revela-se plenamente possível negociar sobre o procedimento, ajustando-o às necessidade da causa.

Observe-se, também, que o negócio processual atípico pode ser firmado na fase contratual. O pacto, nessa fase, envolve um potencial processo, dispensando-se, inclusive, a participação de advogado. No particular, deve-se observar que, embora presumida, a vulnerabilidade processual do trabalhador deve ser analisada no contexto do caso concreto, e não apriorística e abstratamente.

Imagine-se, por exemplo, que, no contrato, exista cláusula contratual no sentido de que, se houver pendência judicial, o empregado, virtual reclamante, poderá escolher o juízo de sua preferência, inclusive do seu atual domicílio, afastando a regra geral estabelecida no artigo 651 da CLT (local da prestação de serviços). Por outro lado, imagine-se a previsão de cláusula contratual no sentido de que qualquer alegação de inadimplemento contratual trabalhista na esfera judicial reclamará ônus probatório da empresa empregadora. Nesses casos, a posição processual do empregado restou reforçada, se comparada à previsão legal, de modo que cumprirá ao juiz do trabalho conferir eficácia ao que foi pactuado.

Vale observar, ainda, que existem processos na Justiça do Trabalho em que as partes estão em presumível "paridade de armas", a exemplo das ações coletivas e dos processos promovidos pelas empresas no intuito de anularem penalidades administrativas decorrentes da fiscalização do trabalho (artigo 114, VII, da CRFB). Eventuais negócios processuais atípicos, nesses casos, pelo menos em princípio, são plenamente possíveis.

É certo que o juiz pode controlar a validade do negócio processual atípico, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 190 do CPC: "De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade".

O universo dos negócios potencialmente eivados de nulidade é enorme, mas existem casos que, à evidência, são incompatíveis com a ordem jurídica (pacto para litigância de má-fé, supressão de instância judicial, utilização de provas obtidas ilicitamente, alteração da ordem de inscrição de precatório etc.). A mera participação de um empregado no negócio processual atípico, entretanto, não é motivo suficiente, repita-se, para se decretar a nulidade desse negócio, recusando-lhe eficácia.

A análise deve ser casuística, e, nessa atividade judicial de controle de validade, deve vigorar a máxima in dubio pro libertate, prestigiando-se a participação democrática dos cidadãos nos atos estatais. Afinal, os atos de democracia participativa devem sempre ser fomentados.

Vale dizer também que, salvo disposição legal ou convencional em sentido contrário, não há necessidade de homologação do negócio processual por parte do juiz.

O negócio processual atípico faz parte do ordenamento jurídico, de modo que, se os pressupostos de existência estiverem presentes no caso, assim como os requisitos de validade e as condições de eficácia, cumpre ao juiz reconhecer a sua incidência, permitindo o autorregramento processual pelas partes.

E, se uma das partes não cumprir o negócio, o juiz pode conhecê-lo de ofício? Entende-se que não, por raciocínio analógico ao que ocorre na cláusula de compromisso arbitral. Da mesma forma que se deve respeitar a autonomia da vontade para a criação do pacto de procedimento, deve-se respeitar o distrato tácito.

O juiz pode até participar de um negócio processual, mas, no geral, sua função é apenas de controle sobre a validade do negócio, sem que seja necessária, como regra, a prática de ato homologatório ou de controle sobre a conveniência (ou não) do pacto firmado entre as partes.

E qual seria a forma desses negócios processuais atípicos? A lei, em princípio, não a indica, mas, por uma questão de segurança jurídica, inclusive de controle no âmbito recursal, revela-se interessante que seja na forma escrita ou, se feito em audiência, que haja redução a termo.

Pois bem. Diante de resumido panorama do regime jurídico do instituto, vale ressaltar que ele se apresenta extremamente relevante nessa fase de dificuldades quanto à realização de audiências virtuais no período de pandemia.

Acredita-se que o caminho, equilibrando o publicismo e o privatismo processuais, deve ser no sentido de estímulo ao "devido processo legal negociado", para remover os obstáculos que possam impedir uma eficiência realização de audiências virtuais.

Poder-se-ia imaginar que as empresas não têm qualquer interesse em realizar audiências de instrução neste momento, mas a questão não é bem assim. Existem situações em que o ônus do tempo do processo está correndo contra a empresa (processos com liminares deferidas, inclusive em ações coletivas; aplicação contra a empresa de penalidades administrativas etc.), a qual tem também interesse na rápida solução do litígio.

No particular, as partes podem pactuar, democraticamente, questões relacionadas à queda do sinal da internet no momento da audiência, às consequências pelo não comparecimento virtual, à possibilidade de fracionamento da prova, ao local onde devem ficar as partes e testemunhas e até mesmo à desjudicialização da prova.

Impõe-se perceber, entretanto, que essas dificuldades acabarão com o chamado "novo normal". Passados os efeitos da pandemia, todos esses problemas serão solucionados. Nessa perspectiva, o relevante é consolidar a cultura de realização de negócios processuais atípicos no âmbito da Justiça do Trabalho, modificando uma cultura de que o processo seja assunto exclusivo do Estado-juiz. Em outros termos, é o momento de fomentar uma nova cultura, inclusive no âmbito das audiências.

É preciso romper definitivamente com a cultura do "mandonismo" e do perfil inquisitório para a consolidação real do modelo cooperativo de processo (artigo 6° do CPC). São inúmeras as potencialidades democráticas dos negócios processuais atípicos, e, nessa perspectiva, deve-se sempre partir da boa-fé da advocacia, profissão que tem status constitucional e que jamais pode ser marginalizada, revelando-se sempre essencial, para que o Poder Judiciário cumpra a sua missão de promover a justiça.

Que os novos tempos sejam de avanços democráticos!

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  • é juiz do Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (13ª Região), doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor universitário (UEPB e Unifacisa).

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