Opinião

A força das mulheres é um instrumento essencial para as polícias

Autor

  • Guilherme Roedel Fernandez Silva

    é mestre em Sociedade Ambiente e Território pela UFMG/Unimontes professor efetivo de Processo Penal na Universidade Estadual de Montes Claros e promotor de Justiça na comarca de Montes Claros (MG).

29 de junho de 2020, 6h04

Os protestos contra o racismo nos Estados Unidos, que reverberaram ao redor do globo, desencadeando manifestações por igualdade racial e de gênero em diferentes países, escancararam ainda mais a violência policial naquele país, paradigma para a atuação de muitas polícias brasileiras [1]. Ao vídeo do policial branco ajoelhado sobre o pescoço de George Floyd, que agonizou até a morte enquanto suplicava "I can’t breath", somaram-se vários outros, como o do policial empurrando violentamente um idoso de 75 anos que caiu ao chão inconsciente [2], o da mulher branca, que, após se desvencilhar de um policial e ficar parada, é alvo de disparos de arma não letal e em seguida é violentamente agredida com uso de cassetetes [3], além daquele em que uma viatura avança sobre manifestantes deixando vários feridos [4].

Emblemático é o vídeo em que uma policial negra repreende vigorosamente o policial branco que, covardemente, acabara de agredir mulher negra que estava à sua frente, ajoelhada e com as mãos para o alto [5]. A cena, ao evidenciar o tratamento distinto dado à manifestante por parte de duas autoridades de gêneros diferentes, reforça a importância da presença de mais mulheres nos cargos de poder. Não apenas no Judicário, no Executivo e no Legislativo, mas também nas forças militares. Para isso, não deveria ser necessário sequer mudanças legislativas, vez que a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos já pregam o fim da discriminação de gênero na esfera trabalhista.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), tratado internacional aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979, estabelece no artigo 11 que "os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera do emprego a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, os mesmos direitos, em particular: b) o direito às mesmas oportunidades de emprego, inclusive a aplicação dos mesmos critérios de seleção em questões de emprego".

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar Todas as Formas de Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1994, esclarece no artigo 4º que "toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercícios e proteção de todos os direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos regionais e internacionais sobre Direitos Humanos, que compreendem, entre outros, h) o direito de ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, incluindo a tomada de decisões".

Apesar de cristalinas, as normas emanadas de tais acordos internacionais, dos quais o Brasil é signatário, são frontalmente contrariadas por normativas internas, a exemplo da Lei Estadual mineira nº 22.415/2016, cujo artigo 3º limita às mulheres módicos 10% do efetivo previsto nos quadros de oficiais, de praças e de oficiais complementares da Polícia Militar de Minas Gerais, não havendo limites para os demais quadros (quadros de oficiais de saúde, oficiais especialistas, oficiais capelães e praças especialistas). Assim, do efetivo de 51.669 policiais militares, 48.715 compõem os três primeiros quadros, nos quais há limitação de apenas 10% de mulheres, ou seja, ainda que todos os policiais pertencentes aos demais quadros fossem do sexo feminino, no máximo 15% do efetivo total da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais seria formado por mulheres.

Sintomático do modelo de sociedade patriarcal e machista em que vivemos é o fato de que o próprio Ministério Público mineiro, órgão constitucionalmente incumbido de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, reconheceu no âmbito interno a constitucionalidade da referida norma estadual [6].

Prevaleceu o argumento, suscitado pelo comandantegGeral da PM, no sentido de que os homens, por serem fisicamente mais fortes, estariam em melhores condições de desempenhar a maioria das "atividades-fim" da corporação, tais como a incursão noturna em aglomerados e o policiamento ostensivo de choque no controle de distúrbios civis violentos. Também foi pontuado que o Infopen (Sistemas de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro) informa que "95% dos cidadãos em conflito com a lei são homens", o que exigiria que a maioria dos policiais fosse do sexo masculino.

Embora relevantes, os argumentos apresentados no sentido da prevalência de pessoas do gênero masculino na Polícia Militar mineira não levam em consideração as estatísticas do próprio órgão, que mostram que 30% da atividade-fim da Polícia Militar se destina ao atendimento de ocorrências sobre violência doméstica e familiar contra as mulheres. Além disso, é preciso se atentar que o importante trabalho desenvolvido pela Polícia Militar na garantia do direito fundamental à segurança pública não se faz apenas com o uso da força.

No Estado de Minas Gerais, de janeiro a maio de 2020, do total de 204.248 [7] registros de ocorrências envolvendo "crimes violentos", "outras naturezas (furtos e lesões corporais)" e "violência doméstica", 29,77% dos registros dizem respeito a violência doméstica e familiar contra as mulheres. No município de Montes Claros, principal cidade do norte de Minas, que conta mais de 400.000 habitantes, os dados disponibilizados informam que quase 42% das ocorrências policiais dizem respeito a violência doméstica e familiar contra as mulheres. O controle de comunicações de flagrantes recebidos nas Promotorias de Justiça Criminais de Montes Claros em 2019 indica que 25% do total de prisões na comarca dizem respeito a violência doméstica contra as mulheres. Apenas o tráfico de drogas se iguala em número de prisões, seguido pelas autuações por embriaguez ao volante e outros delitos de trânsito (15,7%), crimes da Lei de Armas (12,9%), furtos (12,3%) e roubos (7,4%).

A Lei Maria da Penha, logo no artigo 10, prevê que "É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores preferencialmente do sexo feminino previamente capacitados". A regra tem por objetivo garantir melhor acolhimento às mulheres, que se sentem mais confortáveis em relatar a violência sofrida para alguém do mesmo gênero, além de permitir maior compreensão da situação de violência vivenciada pela vítima por parte da policial que realiza o atendimento. A promoção da segurança pública não se limita a prender criminosos em incursões em aglomerados, tampouco na contenção de manifestações violentas: as rondas de prevenção de violência doméstica têm se mostrado importantes e eficientes instrumentos na garantia da segurança pública.

Obviamente, a diferença biológica entre homens e mulheres é natural e evidente, devendo ser levada em conta não apenas no momento de escolher qual efetivo policial participará de determinada ação de repressão a criminosos, mas também em inúmeras outras funções sociais. Não se discute que o princípio da igualdade se expressa no tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Todavia, a diferenciação de tratamento deve ocorrer na exata medida de suas desigualdades. Não parece ser razoável a limitação de apenas 10% das vagas dos quadros de praças e oficiais para as mulheres, mormente quando verificamos que, atualmente, dos cinquenta coronéis do quadro de oficiais da PMMG, há apenas duas mulheres.

Por outro lado, mais relevante talvez não seja simplesmente discutir qual o percentual adequado de mulheres nas corporações militares. Pois a verdade é que se a polícia é compreendida como um local para os mais fortes, os mais brutos e os mais violentos, de nada adiantaria que toda a polícia fosse composta por mulheres com tais "qualidades": trocar o gênero da tropa, mas manter a brutalidade e a violência, não alteraria em nada a eficácia da polícia e nem reduziria as queixas de quem sofre violência policial. De nada adiantaria substituir todos os homens em postos de comando no mundo por mulheres se fossem escolhidas aquelas que perpetuassem o comportamento típico dos homens, mais brutos e mais violentos. Não é raro, inclusive, que, para serem promovidas e alcançarem postos elevados na hierarquia de uma instituição, muitas mulheres tenham que assumir características e comportamentos típicos dos homens, de forma a ganhar a simpatia daqueles que decidem sobre tais promoções.

A ideia de ampliar o acesso das mulheres às funções policiais, para além de garantir direito humano internacionalmente reconhecido, busca também "humanizar" o comportamento da polícia. Pois se a força, a brutalidade e a violência são normalmente associadas ao comportamento masculino, pode-se dizer que a empatia, a paciência, a concentração e a intuição, entre muitas outras, sejam qualidades tradicionalmente associadas às mulheres e essenciais (aliás, muito mais do que a violência) para o bom exercício das atividades policiais.

Inclusive, extrai-se do próprio site da PMMG que "as mulheres têm contribuído para que a PMMG seja cada dia mais uma polícia a serviço da sociedade, emprestando ao serviço policial sensibilidade e simpatia".

Felizmente, em recente decisão, proferida em antecipação dos efeitos da tutela recursal [8], portanto ainda pendente de julgamento no mérito, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais identificou a violação aos direitos das mulheres na convocação para o Curso de Formação de Oficiais da PMMG, garantindo a duas mulheres o direito de mostrar suas plenas capacidades para o ingresso no curso. A oportuna decisão do desembargador Bittencourt Marcondes insere-se na urgente necessidade de identificar e reconhecer as graves e sistemáticas violações aos direitos humanos das mulheres, especialmente aquelas praticadas pelo próprio Estado. Representa, assim, um importante passo para alcançarmos um dos objetivos da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Por tudo isso e ainda mais, embora alterações legislativas para permitir maior efetivo de policiais femininas sejam urgentes e indispensáveis para garantia de acesso às funções públicas em igualdade, talvez o que as polícias (e todos os órgãos de poder) realmente precisem sejam mudanças na maneira de pensar e de enxergar o papel das mulheres na sociedade.

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    é promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, professor efetivo da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e especialista em Inteligência de Estado e Segurança Pública (Fundação Escola Superior do MPMG-Newton Paiva).

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