Opinião

Política 'antiambiental' brasileira dificulta aprovação do acordo Mercosul–UE

Autor

  • Ana Cristina Paulo Pereira

    é professora titular de Direito Internacional Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutora em Direito Internacional Econômico pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne).

29 de junho de 2020, 18h04

No dia 28 de junho de 2019, Mercosul e União Europeia (UE) tornaram públicos os resultados de uma negociação que vinha sendo conduzida nos últimos 20 anos com o objetivo de criar uma área de livre comércio plus entre os dois blocos.

Esses resultados estão reunidos no chamado "acordo em princípio", cujos títulos e capítulos ainda precisam passar por uma revisão legal e serem compilados em um documento único, a ser traduzido em todas as línguas dos Estados-partes, sem esquecer os temas secundários a serem finalizados.

Cumpridas essas tarefas, o acordo deve ser assinado pelos Estados fundadores do Mercosul e pela Comissão Europeia em nome da UE. A partir daí, começa um longo e complexo percurso para que o acordo entre em vigor, que vai desde a aprovação do acordo pela maioria do Parlamento Europeu, até sua aprovação pelos parlamentos nacionais de cada um dos Estados partes no acordo, sendo quatro do Mercosul e 27 da UE, além de alguns parlamentos regionais com autonomia em matéria de comércio internacional.

O fato é que alguns desses parlamentos já se adiantaram e externaram posição contrária ao acordo na sua forma atual o Parlamento da Áustria, o Parlamento regional da Valônia (região autônoma da Bélgica), e o Parlamento dos Países-Baixos [1].

O livre comércio de bens no centro das discussões
O acordo possui ampla abrangência temática pois tem vocação a reger não apenas o comércio de bens e serviços entre os dois blocos, mas também matérias relacionadas à propriedade intelectual, licitações públicas e investimentos estrangeiros, entre outras.

Certamente, para o Mercosul como um todo, e para o Brasil em particular, a parte do acordo que mais interessa é a que estabelece o livre comércio de bens, não obstante o fato de se tratar de um acordo bastante assimétrico que propiciará ao Mercosul o crescimento das exportações de produtos agropecuários e matérias primas em geral, enquanto à UE o aumento das exportações de produtos manufaturados, de maior valor agregado [2].

Apesar dos ganhos indiscutíveis para o setor industrial europeu, o tema da livre circulação de mercadorias é o que mais preocupa a sociedade civil europeia como um todo e acaba tendo ressonância nos os parlamentos de alguns membros da UE, eis que o acordo significará na prática o aumento da oferta de produtos originários do Mercosul no mercado europeu, o que não agrada os produtores locai, notadamente os do setor agropecuário.

O acordo prevê a eliminação de medidas tarifárias e não tarifárias para cerca de 90% dos produtos comercializados entre os dois blocos, o que, basicamente, implica: 

1) A eliminação gradual, dentro de um cronograma específico, dos tributos que têm como fato gerador a entrada (e.g. imposto de importação), ou a saída (e.g. o imposto de exportação, raramente aplicado) dos produtos comercializados; 

2) A adoção de tarifas preferenciais ou zeradas, dentro de cotas anuais preestabelecidas para os produtos sensíveis listados por ambos os blocos [3]

3) O fim das barreiras não tarifárias ao comércio, ou seja, das medidas que tem como consequência reduzir a quantidade do bem comercializado (e.g. cotas unilaterais, exigências técnicas ou sanitárias desnecessárias, fixação de preço mínimo etc.).

A (não) proteção ambiental como principal objeção ao acordo
Entre as várias alegações contrárias ao acordo, a mais determinante é a de que ele contribuirá para o desflorestamento da Amazônia, o aumento na emissão de gases estufa e a consequente deterioração dos direitos indígenas. Isso porque o livre comércio causará um aumento na demanda europeia por madeira, minérios e produtos agropecuários brasileiros.

De forma secundária, alega-se também que o acordo vai gerar uma situação de concorrência desleal no mercado europeu em favor dos produtos agropecuários brasileiros, cujos custos de produção são mais baixos do que os europeus, uma vez que as normas sociais, trabalhistas, sanitárias e ambientais vigentes no Brasil são menos rígidas.

Contrariamente a essas alegações, a própria Comissão Europeia informou que, analisado no contexto atual, o acordo não trará muitas mudanças no comércio entre os dois blocos, na medida em que [4]

— O Brasil comunicara ao Secretariado da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) a intenção de reduzir 37% do nível de emissão de gases de efeito estufa até 2025, em comparação ao nível emitido em 2005;

— Sobre a soja e farelo de soja, a UE já aplica alíquota zero na importação desses produtos; 

— Sobre a carne bovina, os países do Mercosul já exportam 200 mil toneladas por ano para a UE, lembrando que, pelo acordo, somente 99 mil toneladas anuais procedente dos quatro Estados-partes do Mercosul beneficiarão da alíquota preferencial do Imposto de Importação de 7,5%.

Ocorre que, no início do mês de junho, cinco organizações ambientais ingressaram com uma reclamação junto ao mediador europeu, uma espécie de ombudsman ou ouvidor que investiga as denúncias de particulares contra instituições europeias por má administração e, eventualmente, propõe a ação pertinente junto ao Tribunal de Justiça da UE. Segundo essas organizações, a Comissão europeia não teria "cumprido com sua obrigação legal de garantir que o acordo não acarretaria degradação social, econômica e ambiental, bem como violações de direitos humanos". Mais especificamente, a falha do órgão teria sido de "não ter buscado informações suficientes para considerar o potencial impacto do acordo no desflorestamento da Amazônia, no uso de pesticidas perigosos na agricultura e nos direitos das populações indígenas", além da falta de transparência e publicidade durante as negociações do acordo [5].

Por sua vez, o capítulo intitulado "Comércio e desenvolvimento sustentável", que supostamente poderia atender, ao menos em parte, às demandas dos cidadãos europeus, é em realidade o mais débil de todos na medida em que não prescreve obrigações concretas e se limita a fazer remissão a alguns acordos internacionais de proteção ambiental (e.g. o Acordo de Paris sobre o Clima de 2015), sem, contudo, determinar como os Estados devem implementá-los para alcançar os objetivos previstos. Ademais, o capítulo determina que os Estados não poderão ser questionados no âmbito do mecanismo geral de solução de controvérsias estabelecido pelo acordo com base nas suas disposições, e afasta qualquer tipo de "sanção" em caso de descumprimento.

Embora o Brasil seja parte da grande maioria dos acordos referenciados no capítulo em voga, o fato é que a atual política "antiambiental" brasileira vai claramente de encontro às obrigações assumidas pelo país. Para citar apenas alguns exemplos, temos: o aumento vertiginoso do desmatamento na Amazônia [6]; a tentativa do chefe de Estado brasileiro de consolidar as ocupações irregulares de áreas de preservação permanentes da Mata Atlântica [7]; a leniência governamental em relação aos crimes ambientais, notadamente a sua relutância em aplicar normas que determinam a destruição do maquinário apreendido em flagrante delito e a diminuição acentuada das autuações do Ibama por infrações ambientais [8]; os incentivos fiscais aos agrotóxicos (objeto de ação direta de inconstitucionalidade no STF) e sua liberação maciça em curto período de tempo [9]; e o Projeto de Lei 191/20, de iniciativa do Poder Executivo, que permite a exploração de atividades econômicas, como a mineração e geração de energia elétrica, em terras indígenas [10].

Todas essas condutas são coerentes com a sugestão feita pelo ministro do Meio Ambiente brasileiro, na célebre reunião ministerial de 22 de abril, de que seria oportuno aproveitar a distração provocada pela pandemia da Covid-19 "para passar a boiada", ou seja, acelerar a aprovação de normas que facilitariam, ainda mais, algumas práticas antiambientais [11].

Então, estaria tudo perdido?

A resposta à preocupação ambiental
Tendo em vista que o acordo não contempla ações que possam efetivamente compelir o governo brasileiro a proteger de maneira eficaz o meio ambiente de modo a atender aos objetivos e compromissos assumidos internacionalmente, o remédio mais eficaz estaria na conduta dos próprios consumidores.

Com base no capítulo intitulado "Barreiras técnicas ao comércio”, os Estados podem adotar padrões e regulamentos relativos à produção e aos processos de avaliação de conformidade técnica, ainda que afetem adversamente o comércio entre as partes.

Não obstante, medidas desse tipo somente poderão ser aplicadas se houver um objetivo legítimo de política pública a ser alcançado, tais como a proteção da segurança nacional, a prevenção de práticas fraudulentas ou enganosas, a proteção da saúde ou segurança da pessoa humana, a proteção da vida animal, vegetal ou do meio ambiente, conforme enumera o capítulo de forma não exaustiva.

Como o capítulo não estabelece nenhum limite territorial quanto ao "interesse" a ser protegido, pode-se inferir que, em se tratando de um bem cuja preservação suscita interesse universal, como é o caso da floresta amazônica, nada impediria um Estado de adotar medidas de caráter técnico, de aplicação interna, que visem sua proteção. Ainda que uma interpretação mais restritiva limite seu alcance territorial, restaria o argumento legítimo da proteção do consumidor, que deve estar plenamente informado sobre a origem do produto.

Dessa forma, a UE poderia criar um selo de qualidade voluntário a exemplo do EU Ecolabel, regido pelo Regulamento (EC) nº 66/2010 específico para produtos obtidos ou produzidos na região amazônica de maneira a não acarretar dano às comunidades que vivem na floresta amazônica ou contribuído para aumentar o desmatamento a partir de uma determinada data: caberia ao consumidora optar, ou não, pelos produtos que menos agridam o meio ambiente de modo a preservar a qualidade de vida da presente e de futuras gerações.

Certamente, a adoção de selos de qualidade traz certa complexidade, especialmente no que diz respeito ao controle e à certificação em si mesma, pois não pode ser vulnerável a fraudes e nem a interesse políticos.

Por outro lado, o capítulo sobre barreiras técnicas ao comércio determina que o Estado deverá basear-se em standards internacionais de órgãos internacionalmente reconhecidos (lista alguns), além de respeitar os critérios da proporcionalidade e da necessidade para alcançar o objetivo legítimo.

Embora o capítulo não consagre o princípio da precaução, parece não haver muita dificuldade em estabelecer o nexo direito entre a destruição da floresta amazônica e o câmbio climático, além de todas as demais consequências negativas que isso trará para o equilíbrio do meio ambiente global.

Conclusão
Apesar dos benefícios que o acordo de comércio Mercosul–UE trará para ambos os blocos, parlamentares de alguns Estados-membros da UE, alinhados com seus eleitores, alegam sobretudo a degradação da floresta amazônica como principal motivo para rejeitá-lo.

Certamente, não se pode negar o impacto negativo que o acordo poderá ter sobre o meio ambiente ou mesmo sobre alguns setores da economia que não estarão preparados para encarar uma concorrência mais acirrada.

Porém, entendemos que o próprio acordo fornece meios para evitar, reparar, ou, no mínimo, atenuar, seus efeitos indesejáveis, desde que interpretado de forma a melhor atender aos interesses legítimos, e não meramente econômicos, dos cidadãos de ambos os blocos.

Particularmente para os consumidores brasileiros, o acordo trará benefícios com o aumento da concorrência e a consequente melhoria na qualidade dos produtos consumidos, na medida em que o rigor das normas técnicas e fitossanitárias europeias acabará por refletir nas práticas locais.

Contudo, no momento atual, a verdade é que o acordo deixou de ser uma prioridade para a UE, que o teria deixado momentaneamente de lado à espera de condições políticas mais favoráveis, segundo a consultoria de avaliação de risco político Eurásia [12].

 


[1] Deutsche Welle Brasil, de 6/6/2020, em: https://www.dw.com/pt-br/parlamento-da-holanda-rejeita-acordo-ue-mercosul/a-53689521 (acesso 6/6/2020).

[2] Sobre os setores que ganharão ou perderão com o acordo: "El Acuerdo entre el Mercosur y la Unión Europea: Estudio integral y efectos", por Luciana GHIOTTO e Javier ECHAIDE, Fevereiro 2020, em: https://www.clacso.org/wp-content/uploads/2020/05/Informe_Mercosur_UE_2020.pdf (acesso 13/6/2020).

[3] Resumo Informativo Elaborado pelo Governo Brasileiro sobre o Acordo de Associação Mercosul–União Europeia, de 4 julho de 2019, em: http://www.itamaraty.gov.br/images/2019/2019_07_03_-_Resumo_Acordo_Mercosul_UE.pdf (acesso 13/6/2020).

[5] BFM, de 15/06/2020, "Cinq ONG portent plainte auprès de l’UE à propos du traité avec le Mercosur", em: https://bfmbusiness.bfmtv.com/monde/cinq-ong-portent-plainte-aupres-de-l-ue-a-propos-du-traite-avec-le-mercosur-1933716.html (acesso 16/6/2020).

[7] Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.410), proposta pelo Presidente no STF em 4/6/2020.

[8] Respectivamente: The Intercept Brasil, de 27/4/2020, "Arquitetura da devastação", em https://theintercept.com/2020/04/27/bolsonaro-destruicao-maquinas-crimes-meio-ambiente/ (acesso 11/6/2020) e Poder 360, de 24/6/2020, em https://www.poder360.com.br/governo/ibama-aplica-o-menor-numero-de-multas-em-21-anos-m/ (acesso em 25/6/2020).

[9] Respectivamente: ADI 5.553 sobre a inconstitucionalidade do Decreto 7.660/2011 (isenção do IPI) e do Convênio 100/97 da Confaz (descontos de 60% no ICMS) e Brasil de Fato, de 13/005/2020, em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/13/mesmo-com-pandemia-governo-bolsonaro-ja-liberou-150-novos-agrotoxicos-este-ano, (acesso em 20/6/2020) e Jornal UOL, de 28/11/2019, https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/11/28/com-novas-aprovacoes-liberacao-de-agrotoxicos-ja-e-o-maior-da-historia.htm (acesso 15/6/2020).

[11] Vídeo divulgado pelo STF, em: https://www.youtube.com/watch?v=6cg5AAcijv4 (acesso 23/5/2020).

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    é professora titular de Direito Internacional Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutora em Direito Internacional Econômico pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne).

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