Opinião

As entrelinhas da constitucionalidade dos honorários dos advogados públicos

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29 de junho de 2020, 14h23

É uma realidade que no âmbito da advocacia pública brasileira não se esperava decisão diferente daquela tomada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.053, ajuizada em 20/12/2018 pela Procuradoria-Geral da República [1].

Em síntese, o julgamento pelo plenário virtual da corte findado no último dia 19 trouxe a confirmação da constitucionalidade da percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos, concepção esta já consolidada há inúmeras décadas entre a quase unanimidade dos membros desta carreira jurídica de Estado [2].

Analisando a rede de normas jurídicas no âmbito federal editadas após a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil  Lei Federal nº 8.906/1994 já garantia em seu artigo 23 que os honorários decorrentes da condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertenceriam ao advogado.

Lado outro, o Código de Processo Civil Lei Federal nº 13.105/2015 apenas veio a confirmar essa ideia, até mesmo ao estender o pagamento de honorários de sucumbência a todos os advogados públicos, sem distinção, consoante o artigo 85, §19, da norma processual.

Posteriormente, os legisladores editaram os artigos 27 e 29 a 36 da Lei Federal nº 13.327/2016 regulamentando esse direito aos membros da advocacia pública federal.

A par disso, cumpre mencionar que todas as investidas da PGR sob alegação de suposta inconstitucionalidade em face de leis estaduais de semelhante conteúdo jurídico percepção de honorários de sucumbência por advogado público também não encontraram (nem encontrarão) terreno fértil no Supremo [3]Leis estas que estão em vigor, em grande parte, há décadas no âmbito dos entes federativos.

Feita a ambientação acima narrada, insta registrar que o objetivo nesta reflexão não é discutir, exaustivamente, o arsenal de argumentos lançados no brilhante voto condutor do ministro Alexandre de Moraes, o qual inaugurou a divergência com o respeitável ministro Marco Aurélio, este último relator originário vencido da ADI nº 6.053.

O que se busca é ler as entrelinhas e extrair a mensagem do Supremo.

Em que pese ainda pendente a lavratura do acórdão da referida ação constitucional, segundo o voto disponibilizado pelo ministro Alexandre de Moraes foi possível constatar a seguinte passagem:

"(…) O pedido da PGR de mera supressão da verba sucumbencial dos advogados públicos, sem qualquer estabelecimento de uma regra de transição e de compensação remuneratória para a parcela única do subsídio, acarretaria inconstitucional redutibilidade nos vencimentos finais dos procuradores. (…) Não se trata de discutir eventual direito adquirido a regime jurídico, mas sim de efetivamente consagrar a garantia de irredutibilidade, inclusive nas hipóteses de alterações na forma de composição da remuneração de agentes do poder público, conforme foi amplamente discutido e decidido pelo CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, logo após a promulgação da EC 45/2044, ao implementar a transição do antigo para o novo sistema remuneratório para a Magistratura, em que se garantiu a manutenção e futuro congelamento de determinadas parcelas a título de irredutibilidade".

E esse é um ponto crucial levantado pelo ministro Alexandre de Moraes que não pode ser enxergado como mero argumento de retórica (obiter dictum), mas, sim, verdadeira razão de decidir (ratio decidendi) do precedente da ADI nº 6.053.

Ora, não é de hoje que a sociedade busca segurança jurídica. Há pouco menos de dois anos, o ministro presidente do STF, Dias Toffoli, discursou em evento comemorativo dos 30 anos da Carta Magna de 1988 e, na oportunidade, aclamou que o grande desafio do Poder Judiciário nos próximos 30 anos está na manutenção da segurança jurídica neste mundo cada vez mais hiperconectado, sinalizando para a sociedade a urgência da previsibilidade das decisões judiciais [4].

Essa preocupação quanto à segurança jurídica constitui pedra angular do Estado de Direito sob a forma de proteção à confiança. Segundo leciona Karl Larenz, a busca da paz jurídica é elemento nuclear que deve se unir ao componente de ética jurídica traduzido no princípio da boa-fé, consignando seu ponto de vista sob a ótica de que o ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica [5].

Ainda sob este mesmo alerta, Miguel Reale também já se posicionou no sentido de que o "due process of law (devido processo legal) desaconselha a desconstituição de situações de fato, cuja continuidade seja economicamente recomendável, ou se a decisão não corresponder ao complexo de notas distintivas da realidade social tipicamente configurada em lei" [6].

Fixadas essas premissas, nas entrelinhas da decisão do Supremo fica evidente a manifestação quase uníssona quanto aos limites da alteração abrupta de padrões remuneratórios dos advogados públicos brasileiros, cuja pretensão seja a extinção ou redução de direitos consolidados pelo decurso do tempo.

A apreciação da ADI nº 6.053 comprovou cabalmente a constitucionalidade da percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos. E ainda foi mais incisiva ao reverberar a mensagem de que qualquer manifestação estatal futura no sentido da extirpação desse direito ainda que de constitucionalidade extremamente questionável exigiria uma regra de transição e uma real compensação remuneratória objetivamente aferível.

Quanto a essa transição indicada pelo Supremo seria possível supor, por exemplo, que uma eventual retirada desses honorários sucumbenciais admissível, repita-se, a título argumentativo somente poderia ter efeitos ex-nunc (sem retroação) ou pro futuro (data futura) devido à imposição de modulação das decisões judiciais.

Em palavras mais simples, manter-se-ia a política remuneratória para todos os atuais membros da advocacia pública ou mesmo para futuros integrantes desta. E, nesta última hipótese, como maneira de não frustrar legítimas expectativas criadas em cidadãos na iminência do ingresso na carreira pública.

Nesse cenário, o que jamais se poderia admitir seria uma decretação de suposta inconstitucionalidade da percepção de honorários de sucumbência sob pena de atingir vários membros da advocacia pública que estão em exercício no serviço público há quase quatro décadas submetidos a esse regime remuneratório presumidamente constitucional e contra o qual a PGR e outros legitimados a propor ADI deixaram escoar décadas sem qualquer imputação de mácula.

Para usar uma expressão recente do ministro Luiz Fux ao apreciar a medida cautelar na ADI nº 6.457, no dia 12 deste mês celeuma do suposto poder moderador das Forças Armadas —, mutatis mutandis admitir tal inconstitucionalidade sustentada pela PGR na ADI nº 6.053 seria como permitir uma espécie de Cavalo de Troia na Constituição Federal de 1988 em desfavor dos advogados público [7].

E não só esses decenários profissionais, mas muitos jovens advogados públicos que, embora não tenham atingido tal lapso temporal na carreira jurídica, creram no comportamento estatal que referendou a constitucionalidade de um regime remuneratório durante vários anos. Daí vem a ótica segundo a qual a confiança despertada de um modo imputável deve ser mantida quando efetivamente se creu nela. A suscitação da confiança é imputável, quando o que a suscita sabia ou tinha que saber que o outro ia confiar.

Essa perspectiva também é sustentada na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) — Decreto-Lei nº 4.657/1942, alterado em 2018 pela Lei Federal nº 13.655 , segundo a qual deve haver a adoção de regras de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais, aumentando-se a segurança jurídica (artigos 23 e 30).

Frente ao exposto, as entrelinhas do Supremo na ADI nº 6.053 não disseram apenas que a percepção dos honorários de sucumbência pelos advogados públicos se mostra constitucional enquanto medida de valorização da carreira. A corte falou mais: a proteção às políticas remuneratórias da advocacia pública, sejam elas quais forem, deve se pautar pelo respeito inescusável ao princípio da segurança jurídica.

Em arremate, essa vitória decretada pelo Supremo representa, antes de tudo, um triunfo da própria essência do interesse público que move o sentimento e a paixão profissional dos advogados públicos brasileiros em seu mister cotidiano.

Numa frase que sintetiza esse ofício: advocacia pública é uma missão de vida que move o Estado brasileiro enquanto bússola orientadora da navegação neste mar revolto de incertezas.

 


[1] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=400114>. Acesso em: 23/6/2020.

[2] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-21/advogados-publicos-podem-receber-honorarios-sucumbenciais?>. Acesso em: 23/6/2020.

[3] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=413231>. Acesso em: 23/6/2020.

Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=415103>. Acesso em: 23/6/2020.

[4] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-nov-06/desafio-judiciario-manter-seguranca-juridica-dias-toffoli>. Acesso em: 23/6/2020.

[5] In Derecho Justo. Fundamentos de Ética Jurídica. Madrid: Civitas, 1985, p. 91-96

[6] In Revogação e anulamento do ato administrativo. Forense: Rio de Janeiro, 1980, p. 70-71.

[7] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaPresidenciaStf/anexo/ADI6457.pdf>. Acesso em: 23/6/2020.

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