Opinião

Redução dos direitos dos passageiros durante a Covid-19 tem de ser revista

Autores

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

  • Maria Luiza Baillo Targa

    é doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e advogada sócia do RMMG Advogados.

28 de junho de 2020, 9h14

É indiscutível que a pandemia da Covid-19 afetou imensamente o transporte aéreo. De acordo com a IATA, associação internacional composta por representantes de companhias aéreas, o prejuízo às transportadoras é de cerca de 314 bilhões de dólares [1].

No Brasil, ao constatar o cancelamento de voos pelas companhias aéreas e a pedido dos passageiros, o que culminou na redução da receita das transportadoras, o governo federal editou uma série de normas destinadas a resguardar o setor, as quais, porém, trazem reflexos diretos aos passageiros e seus direitos.

A primeira delas foi a Medida Provisória (MP) nº 925, de 18 de março, a qual estabelece que as transportadoras têm até 12 meses [2] para providenciar o reembolso ao passageiro e, sobre o valor a ser ressarcido, serão descontadas as penalidades contratuais. A MP ressalva, porém o dever de assistência material nos termos da regulamentação vigente [3].

A segunda medida foi a MP nº 948, de 8 de abril, que também impacta no reembolso de bilhetes aéreos, frisando que esse dever não é obrigatório se oferecida a remarcação ou se concedido crédito ao consumidor, ou se realizado outro acordo. Todavia, para que não haja custos adicionais, deve o consumidor solicitar tais providências em até 90 dias da vigência da MP, ou seja, até o dia 8 de julho. De acordo com a MP, se não houver consenso, o reembolso deve ser feito em até 12 meses da data em que declarado o encerramento do estado de calamidade pública, e o valor deve ser atualizado pelo IPCA-E. A MP também afasta in abstrato o dano moral e a possibilidade da aplicação de multas decorrentes da violação de normas de defesa do consumidor [4], razão pela qual sofreu diversas críticas.

E a terceira medida é a Resolução nº 556, de 13 de maio, da Anac, a qual flexibiliza, em caráter temporário e excepcional, algumas disposições da Resolução nº 400, de 13 de dezembro de 2016, também da Anac.

A resolução dispõe que, para os voos originalmente programados até 31 de dezembro, em caso de alteração programada pelo transportador, este deve comunicar o passageiro no prazo de 24 horas, reduzindo o prazo de 72 horas previsto no artigo 12 da Resolução nº 400. Todavia, impacta nos seguintes direitos dos passageiros: a) se a alteração decorrer de fechamento de fronteiras ou de aeroportos, as companhias aéreas não estão obrigadas a prestar assistência material (antes, havia dever de assegurar facilidades de comunicação, de fornecer refeição ou voucher individual, hospedagem e traslado, a depender do tempo de espera do passageiro, nos termos do artigo 27 da Resolução nº 400); b) independentemente das razões causadoras da alteração, as transportadoras também estão desobrigadas a fornecer alimentação ou voucher; c) da mesma forma, não têm o dever de executar o serviço por outra modalidade de transporte (antes, tinham o dever de transportar o passageiro ao destino, ainda que por via terrestre – vide artigos 12, §2º, III, e 21, ambos da Resolução nº 400); tampouco d) de reacomodar o passageiro em voo de terceiro (flexibilizando o artigo 28 da Resolução nº 400); e) por fim, impõe a obrigatoriedade de que as reclamações dos passageiros sejam registradas na plataforma consumidor.gov.br, e que o prazo de resposta será aquele estabelecido na plataforma (nos termos do artigo 38 da Resolução nº 400 o prazo era de dez dias) [5].

Embora visem a assegurar o fluxo de caixa das companhias aéreas, as medidas do governo retiram direitos essenciais dos passageiros em meio a um momento tão delicado. Desconsideram que o passageiro é a parte vulnerável dessa típica relação de consumo [6] e que o Estado tem o dever assegurar a defesa de seus interesses, pois a proteção do consumidor é direito fundamental (artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal) e princípio norteador da ordem econômica (artigo 170, V, da Carta Federal). Logo, ainda que seja necessário um auxílio ao setor aéreo, este não pode ocorrer às custas da relativização dos direitos dos passageiros, sob pena de se violar o próprio texto constitucional.

No mais, ao que parece, o Brasil está indo no sentido oposto dos demais países. Na União Europeia, por exemplo, a Comissão Europeia apresentou recentemente orientações e recomendações para a retomada gradativa das atividades [7] e, na ocasião, o comissário da Justiça e dos Consumidores, Didier Reynders, afirmou que os consumidores europeus podem ter a certeza de que a comissão não reduzirá os direitos de reembolso de viagens canceladas [8].

A toda evidência, para se evitar um colapso do setor, é imprescindível que o governo realize um aporte financeiro às transportadoras, tal qual o fizeram os governos da França [9] e dos Estados Unidos [10]. Até mesmo porque as medidas até então adotadas não serão suficientes para impedir grandes prejuízos das transportadoras.

Assim, o que se espera é que, com a liberação do pacote de socorro financeiro às companhias aéreas coordenado pelo BNDES [11], sejam revistas essas normas promulgadas às pressas, sem a devida reflexão e sem a análise necessária de seus reflexos sociais, e que os contratos de transporte aéreo voltem a ser regulamentados pelas fontes de Direito preexistentes à pandemia, a fim de se assegurar os direitos dos passageiros, medida imprescindível nestes tempos de incertezas e de calamidade.

 

Referências bibliográficas
BRANDÃO, Raquel. Air France-KLM recebe auxílio de 7 bilhões de euros de governo francês. Valor Econômico, São Paulo, 24 abr. 2020. Disponível em: < https://valor.globo.com/empresas/noticia/ 2020/04/24/air-france-klm-recebe-auxilio-de-7-bilhoes-de-euros-de-governo-frances.ghtml>. Acesso em: 7/6/2020.

BRASIL. Medida Provisória n. 925, de 18 de março de 2020. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv925.htm>. Acesso em: 7/6/2020.

BRASIL. Medida Provisória n. 948, de 8 de abril de 2020. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv948.htm>. Acesso em: 7/6/2020.

BRASIL. Resolução n. 556, de 13 de maio de 2020. ANAC. Disponível em: <https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-556-13-05-2020/@@display-file/arquivo_norma/RA2020-0556.pdf>. Acesso em: 7/6/2020.

BRASIL. Resolução n. 557, de 13 de maio de 2020. ANAC. Disponível em: <https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-557-13-05-2020/@@display-file/arquivo_norma/RA2020-0557.pdf>. Acesso em: 7/6/2020). 

IATA. IATA Reminds Governments in Latin America & Caribbean on Urgency of Relief to the Industry in Face of COVID-19 Crisis. IATA. Disponível em: <https://www.iata.org/en/pressroom/pr/2020-04-17-01/>. Acesso em: 7/6/2020.

MIRAGEM, Bruno. Contrato de transporte. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 44-46.

O PACOTE de socorro às empresas aéreas. Estado de São Paulo, São Paulo, 19/5/2020. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/editorial-economico,o-pacote-de-socorro-as-empresas-aereas,70003307198>. Acesso em: 7/6/2020.

TESOURO e companhias aéreas fecham acordo para ajuda financeira nos EUA. UOL, São Paulo, 14 abr. 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2020/04/14/ tesouro-e-companhias-aereas-fecham-acordo-para-ajuda-financeira-nos-eua.htm>. Acesso em: 7/6/2020.

UNIÃO EUROPEIA. Comunicação da comissão ao parlamento europeu, ao Conselho, ao Comitê Económico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões. Eur-lex. DIsponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020DC0550&from =PT>. Acesso em: 7/6/2020.

UNIÃO EUROPEIA. Tourisme et transports: orientations de la Commission sur la reprise des voyages en toute sécurité et sur la relance du secteur touristique européen en 2020 et au-delà. Comissão Europeia. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/ detail/fr/ip_20_854>. Acesso em: 7/6/2020.

 


[1] IATA. IATA Reminds Governments in Latin America & Caribbean on Urgency of Relief to the Industry in Face of COVID-19 Crisis. IATA. Disponível em: <https://www.iata.org/en/pressroom/pr/2020-04-17-01/>. Acesso em: 7/6/2020.

[2] A Resolução nº 557, de 13 de maio, da ANAC, determina que, excepcionalmente para os casos em que o passageiro que adquiriu passagem aérea com antecedência mínima de 7 dias da data da viagem e que solicitar o cancelamento do serviço em até 24 horas a contar do recebimento do comprovante do bilhete, o reembolso não ocorrerá nos moldes da MP n. 925, e deverá ser feito no prazo de 7 dias a contar da data em que o passageiro fizer a solicitação (BRASIL. Resolução n. 557, de 13 de maio de 2020. ANAC. Disponível em: <https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-557-13-05-2020/@@display-file/arquivo_norma/RA2020-0557.pdf>. Acesso em: 7/6/2020). 

[3] BRASIL. Medida Provisória n. 925, de 18 de março de 2020. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv925.htm>. Acesso em: 7/6/2020.

[4] BRASIL. Medida Provisória n. 948, de 8 de abril de 2020. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv948.htm>. Acesso em: 7/6/2020.

[5] BRASIL. Resolução n. 556, de 13 de maio de 2020. ANAC. Disponível em: <https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-556-13-05-2020/@@display-file/arquivo_norma/RA2020-0556.pdf>. Acesso em: 7/6/2020.

[6] MIRAGEM, Bruno. Contrato de transporte. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 44-46.

[7] UNIÃO EUROPEIA. Comunicação da comissão ao parlamento europeu, ao Conselho, ao Comitê Económico e Social Europeu e ao Comitê das Regiões. Eur-lex. DIsponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020DC0550&from=PT>. Acesso em: 7/6/2020.

[8] UNIÃO EUROPEIA. Tourisme et transports: orientations de la Commission sur la reprise des voyages en toute sécurité et sur la relance du secteur touristique européen en 2020 et au-delà. Comissão Europeia. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/fr/ip_20_854>. Acesso em: 7/6/2020.

[9] BRANDÃO, Raquel. Air France-KLM recebe auxílio de 7 bilhões de euros de governo francês. Valor Econômico, São Paulo, 24 abr. 2020. Disponível em: < https://valor.globo.com/empresas/noticia/ 2020/04/24/air-france-klm-recebe-auxilio-de-7-bilhoes-de-euros-de-governo-frances.ghtml>. Acesso em: 7/6/2020.

[10]  TESOURO e companhias aéreas fecham acordo para ajuda financeira nos EUA. UOL, São Paulo, 14 abr. 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2020/04/14/tesouro-e-companhias-aereas-fecham-acordo-para-ajuda-financeira-nos-eua.htm>. Acesso em: 7/6/2020.

[11] O PACOTE de socorro às empresas aéreas. Estado de São Paulo, São Paulo, 19 maio 2020. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/editorial-economico,o-pacote-de-socorro-as-empresas-aereas,70003307198>. Acesso em: 7/6/2020.

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  • Brave

    é professora permanente da pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, onde também atua como professora-adjunta de Direito Internacional na graduação, doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com sanduíche junto à University of Ottawa (Canadá) e mestre em Direito Público pela Unisinos.

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    é doutoranda e mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc, em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS e em Direito Público pelo UniCEUB.

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