Opinião

Por que a Fazenda Pública ganha mesmo quando perde?

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28 de junho de 2020, 16h58

A possibilidade de apreciação equitativa dos honorários, prevista no §8º do artigo 85 do CPC, surgiu como uma grande causadora de incerteza e insegurança jurídica, na medida em que não especificados os critérios para a sua aplicação.

Diante de tal cenário, a 2ª Seção do STJ, no julgamento do REsp nº 1.746.072/PR [1], definiu que a apreciação equitativa dos honorários, em razão da expressa vontade do legislador, somente poderia ser aplicada de maneira subsidiária aos critérios elencados no §2º, do artigo 85, do CPC, ou seja, apenas quando não for possível mensurar o proveito econômico ou quando o valor for irrisório frente ao trabalho desenvolvido pelo advogado da parte vencedora.

Tal entendimento, além de ser amplamente aplicado na 3ª e 4ª Turmas da corte, foi reiterado no AgInt no REsp nº 1.771.319/RS [2], pela 3ª Turma, em que se decidiu pela inaplicabilidade da apreciação equitativa mesmo nos casos em que os honorários forem fixados em 'valor exorbitante".

Entretanto, em que pese a clareza e a definitividade com que a questão foi abordada, o entendimento acima exposto não encontrou resguardo nas turmas da 1ª Seção, responsáveis por julgar as demandas de Direito público.

Isso porque, nas causas envolvendo a Fazenda Pública, o STJ vem aplicando repetidamente o critério da equidade para diminuir o ônus processual a ser suportado pelo Fisco, adotando entendimento completamente dissonante do consolidado na 2ª Seção e ferindo a isonomia, na medida em que confere ao Estado claro benefício processual em detrimento dos contribuintes.

No recente julgamento do REsp nº 1.864.345/SP [3], em que o contribuinte recorreu de decisão do TJ-SP que aplicou a apreciação equitativa de honorários após o reconhecimento da inexigibilidade de crédito de ICMS de mais de R$ 21 milhões, o relator, ministro Benedito Gonçalves, manteve a apreciação equitativa, aduzindo que "o regramento trazido pelo parágrafo oitavo do artigo 85 não é absoluto, sendo passível de aplicação em casos em que o proveito econômico não é inestimável ou irrisório ou, ainda, em que o valor da causa não é muito baixo". Argumentou, ainda, que "(a observância ao texto legal expresso) Seria um demasiado amor ao formalismo, desconsiderando a pressão dos fatos processuais, em apreço ao cumprimento da lei em situação que revela a sua acintosa inadequação", desconsiderando o trabalho desenvolvido pelos procuradores da parte vencedora, eis que, além de o benefício econômico auferido ser facilmente estimável, a mera angularização da relação processual com a apresentação de defesa e a importância do montante envolvido compeliriam à aplicação objetiva do disposto no §3º do artigo 85 do CPC.

Destaca-se, outrossim, a utilização recorrente pela corte [4] dos seguintes argumentos para aplicar a apreciação equitativa em benefício da Fazenda Pública: I) nas causas de direito público deve-se prezar pela proteção ao interesse público; e II) naquelas em que o CPC deve ser lido à luz de seus princípios gerais da boa-fé, da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de evitar enriquecimento ilícito.

Tais justificativas, porém, não encontram qualquer respaldo, porquanto por mais que se deva prezar pelo interesse público, eis que grandes condenações impostas à Fazenda impactam negativamente no erário o legislador processual já tomou as precauções que entendeu pertinentes, diferenciando as causas em que o poder público for parte ao introduzir o §3º do artigo 85 do CPC, prevendo a existência de critérios específicos e percentuais limitadores, de acordo com o valor da condenação ou do proveito econômico obtido.

Aliás, a ideia de que é possível ampliar as hipóteses de utilização do §8º contraria frontalmente o parágrafo único do artigo 140 do CPC, que prevê que o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.

Embora seja notório que a legislação processual deva ser lida sob a ótica dos seus princípios cogentes, não pode a pura interpretação principiológica se sobrepor a norma taxativa adotada pelo legislador, tampouco alegar-se que a norma expressa violaria a boa-fé processual, não se tratando de "demasiado amor ao formalismo", mas de respeito aos limites de competência constitucionalmente estabelecidos.

Conquanto se multipliquem os julgados em que o §8º é aplicado para amenizar os ônus processuais sustentados pela Fazenda, tal entendimento não é estendido aos contribuintes, denotando-se uma clara violação à isonomia que deveria reger a relação entre a Fazenda e os cidadãos.

Observa-se que a 1ª Turma do STJ [5], apesar de possuir alguns julgados aparentemente favoráveis aos contribuintes, com "reforma" da fixação de honorários equitativos, na verdade, chancela a não aplicação dos percentuais previstos no §3º do artigo 85 do CPC, condenando a Fazenda ao pagamento de honorários advocatícios fixados em 1% sobre o valor da execução, em razão da simplicidade da causa.

Em contrapartida, são numerosos os julgados aplicando a regra do §3º em favor do Fisco, mesmo quando se cuida de execuções fiscais, com bastante simplicidade, citando-se, apenas como exemplo: REsp nº 1849552/MG [6] e REsp nº 1848708/PR [7].

O que se nota, portanto, é um claro tratamento anti-isonômico por parte do STJ, ainda mais evidenciado ao observarmos que o artigo 20, §4º, do CPC/73, que previa a apreciação equitativa dos honorários nas causas em que vencida a Fazenda, não foi reintroduzido no Código de 2015, que preferiu diferenciar as causas em que envolvido o poder público por meio dos percentuais estabelecidos no §3º.

Ciente desse tratamento, o Conselho Federal da OAB [8] ajuizou no STF, no dia 30 de abril deste ano, a  ADC nº 71 para obter a declaração da constitucionalidade dos §§3º, 5º e 8º do artigo 85 do CPC/15, a fim de que seja determinada a observância obrigatória dos dispositivos, eis que contemplados critérios objetivos ao determinar faixas de percentuais para o cálculo de honorários com base no valor da causa ou no proveito econômico, corrigindo o tratamento privilegiado anteriormente concedido. O órgão sustenta que diversos tribunais têm interpretado de forma ampliativa o §8º do artigo 85 para autorizar o arbitramento equitativo dos honorários de sucumbência fora das hipóteses estritamente previstas, afrontando o princípio da legalidade e da segurança jurídica e infringindo o direito à justa remuneração dos advogados.

Desse modo, frente a questionável diferença de posicionamento entre as seções de Direito público e privado, espera-se que o STJ, em eventuais embargos de divergência, ou, alternativamente, que o STF, no julgamento da ADC nº 71, sedimente o entendimento de que a aplicação do §8º deve ser feita mediante a observância de critérios definidos e objetivos, mantendo, nas outras hipóteses, a aplicação do §3º do artigo 85 do CPC.

 

[1] REsp 1746072/PR, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Relator p/ Acórdão ministro RAUL ARAÚJO, 2ª SEÇÃO, julgado em 13/2/2019, DJe 29/3/2019.

[2] AgInt no REsp 1.771.319/RS, Relator ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 3ª TURMA, julgado em 1º/4/2019, DJe 9/4/2019.

[3] REsp: 1864345 SP 2020/0050438-0, relator: ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Publicação: DJ 20/3/2020.

[4] REsp: 1823333 PE 2019/0186141-1, relator: ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Publicação: DJ 28/04/2020; REsp: 1728590 PR 2018/0052202-0, relator: ministro GURGEL DE FARIA, Data de Publicação: DJ 29/4/2020.

[5] REsp 1771147/SP, Relator ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 1ª TURMA, julgado em 5/9/2019, DJe 25/9/2019.

[6] REsp: 1849552 MG 2019/0346447-2, relator: ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Publicação: DJ 19/12/2019.

[7] REsp: 1848708 PR 2019/0341180-2, relator: ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Publicação: DJ 19/12/2019.

[8] Neste mesmo sentido, o Conselho Federal da OAB foi admitido, no dia 18/05/2020, como amicus curiae no REsp 1.297.779, que julga se os honorários sucumbenciais podem ou não ser fixados por equidade em causas de grande valor.

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