Ambiente Jurídico

Delegação da competência licenciatória

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

27 de junho de 2020, 10h30

Spacca

Não é recente o debate sobre a possibilidade de delegação ou não da competência licenciatória entre os entes federativos. O Decreto 99.274/90 dispôs que a União poderia delegar funções aos estados, embora nada falando sobre os municípios[1]. Por sua vez, a Resolução 237/97 do Conama previu a possibilidade de delegação de competência da União para o estado e do estado para o município, conforme estabeleceram os artigos 5º, IV, e 6º, sem previsão do uso do instrumento diretamente entre União e municípios.

Já nessa época havia o consenso de que tal delegação estava sempre sujeita a dois pressupostos: i) o ente federativo somente poderia delegar aquelas atribuições que lhe fossem originárias e ii) a delegação deveria ser feita de comum acordo entre o delegante e o delegatário, que deveriam formalizar o acordo por meio de convênio administrativo. Esse entendimento guarda relação direta com a condição federativa do país, já que os três níveis federativos possuem autonomia federativa, consoante estabelece os artsigos 1o, caput e 18, caput da Constituição Federal[2]. Isso significa que, na ordem jurídica vigente, nenhuma delegação ou convênio pode deixar de observar isso.

A Lei Complementar 140/2011, que regulamentou os incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do artigo 23 da Lei Fundamental, fixando os parâmetros para o exercício da competência administrativa em matéria ambiental, também não deixou de cuidar do assunto. Destarte, além da previsão legal, existe a exigência de que o órgão delegatário possua órgão ambiental capacitado:

Art. 4º. Os entes federativos podem valer-se, entre outros, dos seguintes instrumentos de cooperação institucional:
I – consórcios públicos, nos termos da legislação em vigor;
II – convênios, acordos de cooperação técnica e outros instrumentos similares com órgãos e entidades do Poder Público, respeitado o art. 241 da Constituição Federal;
III – Comissão Tripartite Nacional, Comissões Tripartites Estaduais e Comissão Bipartite do Distrito Federal; IV – fundos públicos e privados e outros instrumentos econômicos;
V – delegação de atribuições de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar;
VI – delegação da execução de ações administrativas de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar.

Art. 5º. O ente federativo poderá delegar, mediante convênio, a execução de ações administrativas a ele atribuídas nesta Lei Complementar, desde que o ente destinatário da delegação disponha de órgão ambiental capacitado a executar as ações administrativas a serem delegadas e de conselho de meio ambiente.
Parágrafo único. Considera-se órgão ambiental capacitado, para os efeitos do disposto no caput, aquele que possui técnicos próprios ou em consórcio, devidamente habilitados e em número compatível com a demanda das ações administrativas a serem delegadas.

No ano passado, o Ibama editou a Instrução Normativa 08/2019 regulamentando a delegação da sua competência licenciatória própria para os órgãos estaduais e municipais de meio ambiente. Além da transcrita lei complementar, a possibilidade de delegação está prevista nos artigos 11, 12, 13 e 14 da Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública federal, sendo um instituto corrente no Direito Administrativo brasileiro.

O órgão federal poderá fazer a delegação diretamente ao órgão municipal, não sendo necessário pedir licença ou fazer qualquer tipo de comunicação ao órgão estadual (artigo 2o, caput). Inclusive, em tais casos o ente local atuará fora das tipologias estabelecidas pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente, visto que a competência originária é federal[3]. Dessa forma, a Instrução Normativa prestigiou os Municípios, que para fins desse tipo de deliberação possuem as mesmas prerrogativas dos Estados e da própria União.

Também é possível o órgão delegatário assumir atribuições fora de sua jurisdição, seja ele estadual ou o municipal. Em face disso, poderá um órgão estadual atuar em outro Estado ou um órgão municipal atuar em outra Municipalidade, já que a atribuição nessas situações provém do Ibama (artigo 2o, parágrafo 1º).

Qualquer um dos órgãos ambientais envolvidos poderá solicitar a delegação, que será um ato de vontade do delegante e do delegatário, sem os quais não poderá se firmar. Na verdade, até mesmo o empreendedor poderá fazer a solicitação, já que ele também é parte diretamente interessada no assunto (artigo 6o). Nada impede, contudo, que uma associação profissional, uma instituição técnica ou um outro órgão público faça a solicitação, uma vez que a decisão de celebrar ou não o convênio pertence exclusivamente aos entes envolvidos

Importante lembrar que ao assumir a competência licenciatória, o ente delegado passa também a ter a responsabilidade primária para fiscalizar e impor sanções administrativas (artigos 6o e 24)[4]. Na realidade, a Lei Complementar 140/2011 é clara ao estabelecer que a atribuição de licenciar atrai a responsabilidade para fiscalizar e impor sanções administrativas[5]. Trata-se de um desdobramento do princípio da especialidade, segundo o qual se presume que o órgão licenciador tem mais conhecimento sobre a atividade poluidora em questão do que os demais órgãos ambientais[6]. Logo, a delegação do licenciamento acaba sendo na prática a delegação da competência administrativa ambiental.

Depois da análise técnica e jurídica a delegação será formalizada por meio de Acordo de Cooperação Técnica ACÁ, com prazo de vigência entre 5 e 10 anos, o qual delimitará o objetivo, objeto, e as condições do convênio (artigo 3o, caput e § 1º). Esse convênio poderá ser renovado por meio de Termo Aditivo, conquanto seja mantido o objeto. Também não se pode descartar a renovação tácita, quando os dois órgãos, mesmo sem formalização, darem continuidade na prática ao que foi pactuado.

Isso implica dizer que o delegatário se torna o responsável por tudo, exceto a definição e a destinação da compensação ambiental prevista no artigo 36 da Lei 9.985/2000, que ao menos como regra geral deverá permanecer a cargo do IBAMA (artigo 26). A provável razão para tanto é que essa verba é destinada à implementação e consolidação das Unidades de Conservação, de forma que a aquiescência do Imbico também se faria necessária. No caso concreto, no entanto, é possível haver cláusula em sentido concreto, desde que as duas autarquias federais ambientais concordem.

É possível a delegação do IBAMA aos consórcios públicos, que constituem pessoas jurídicas oriundas de acordo de vontades com vistas à implementação de órgão ambiental interfederativo, que deverá fiscalizar, impor sanções administrativas e fazer licenciamento ambiental (art. 4o). Esse é um instrumento previsto nos artigos 4o, I, e 5o, parágrafo único da Lei Complementar 140/2011, que busca dar condições financeiras e técnicas para que os entes locais possam executar a política ambiental, já que fazer isso de maneira isolada fica bem mais custoso.

Talvez a maior novidade seja a delegação cautelar, que é a possibilidade de a União delegar uma competência que esteja sob questionamento judicial, de maneira a não interromper a tramitação do licenciamento (art. 1o, parágrafos 2o e 3o)[7]. Com efeito, não faz sentido esperar anos para saber quem é o órgão competente, em uma ação proposta pelo Ministério Público ou por alguma associação sem fins lucrativos, se os órgãos envolvidos podem chegar a um consenso. Isso parte do raciocínio de que mais importante do que saber quem licencia é que o licenciamento seja feito de acordo com as exigências técnicas e jurídicas e com a maior transparência possível.

A regulamentação da delegação do licenciamento ambiental se fazia necessário, mormente em razão da edição da Lei Complementar 140/2011, que tornou obsoleta grande parte da Resolução 237/97 do Conama e do Decreto 99.274/90. A Instrução Normativa 08/2019 trouxe várias novidades e se mostrou deveras positiva, tendo disciplinado a matéria com profissionalismo e maturidade, o que certamente contribuirá para aumentar a cooperação entre os órgãos ambientais.

Entretanto, a norma poderia avançar mais, notadamente no que pertine à descentralização da Política Nacional do Meio Ambiente, pois os Municípios e os consórcios públicos ambientais poderiam receber mais incentivos. Nesse cenário, a previsão de rescisão do convênio de maneira unilateral e injustificada pela IBAMA (art. 21, V) e a impossibilidade de interferir na destinação da compensação ambiental prevista no art. 36 da Lei 9.985/2000 são inquestionavelmente pontos negativos que deveriam ser revistos[8].


[1] Art. 13. A integração dos Órgãos Setoriais Estaduais (art. 30, inciso V, segunda parte) e dos Órgãos Locais ao Sisnama, bem assim a delegação de funções do nível federal para o estadual poderão ser objeto de convênios celebrados entre cada Órgão Setorial Estadual e a Sema/PR, admitida a interveniência de Órgãos Setoriais Federais do Sisnama.

[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…). Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

[3] BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 159.

[4] “Delegação administrativa de licenciamento ambiental. Ato discricionário do delegante e do delegatário. Existência de ordem judicial reconhecendo a competência do IBAMA (União) para licenciar certo empreendimento não impede a sua delegação. Necessidade de constar expressamente que a competência do IBAMA decorre de comando judicial. I – Os requisitos para a delegação do licenciamento ambiental via administrativa estão na LC 140 (art. 4º e 5º), pressupondo ainda o acordo de vontades de ambas as partes (delegante e delegatário). II – Não é requisito negativo para a delegação administrativa prevista na LC 140/11 que a competência do delegante não esteja sub judice. Por isso, a delegação do licenciamento ambiental não está impedida pela prolação de decisão judicial que reconhece a competência do Ibama. III – Necessidade de constar do instrumento de delegação que a competência do Ibama para licenciar o empreendimento decorre de comando judicial, evitando confusões futuras sobre o posicionamento do Ibama em questões semelhantes, bem como em eventual consideração sobre um reconhecimento jurídico do pedido efetuado na ação judicial” (Parecer 121/2016/COJUD/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU, aprovado pelo Procurador-Chefe da PFE-Ibama, em 21.12.2016, mediante o Despacho 755/2016/GABIN/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU, nos autos do PA 02001.002125/2013-12).

[5] Art. 7o. São ações administrativas da União: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União; (…). Art. 8o. São ações administrativas dos Estados: (…) XIII – exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida aos Estados; (…). Art. 9o. São ações administrativas dos Municípios: (…) XII – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, na forma da lei; (…). Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.

[6] A Lei Complementar n. 140/2011 estabeleceu que a competência do ente licenciador deve prevalecer face a dos demais órgãos ambientais, no tocante à imposição de sanções administrativas, tendo em vista o princípio da especialidade. É que este qualificou o seu corpo técnico, tanto para fazer quanto ao fazer o licenciamento ambiental de certos segmentos econômicos sob sua tutela, de forma a adquirir expertise naquela seara. Com efeito, presume-se que o órgão responsável pelo licenciamento daquele tipo de atividade tenha mais autoridade para afirmar no âmbito administrativo se houve ou não irregularidade. Então, a ocorrência ou a permanência da multa e do embargo, por exemplo, no âmbito administrativo, estão sujeitos à decisão do órgão licenciador.

[7] SAES, Marcos. A IN IBAMA 08/2019, que regulamenta a delegação de competência para o licenciamento ambiental, é positiva? Disponível em: https://www.saesadvogados.com.br/2019/03/07/a-in-ibama-08-2019-que-regulamenta-a-delegacao-de-competencia-para-o-licenciamento-ambiental-e-positiva/. Acesso em: 23.06.2020.

[8] LIMA, Marcus de Almeida. Ibama não perdeu atribuições com normativa que regulamenta LC 140. Disponível em: https://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/ibama-nao-perdeu-atribuicoes-com-normativa-que-regulamenta-lc-140/. Acesso em: 02.03.2020.

Autores

  • é advogado, professor da UFPB e da UFPE e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Autor de "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Fórum, 2019).

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