Opinião

Oito anos da Lei de Defesa da Concorrência brasileira: um olhar para o presente-futuro

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26 de junho de 2020, 17h11

Datas comemorativas e aniversários são vistos, em regra, como marcos oportunos para balanços e reflexões, quer na dimensão retrospectiva, quer sob a ótica prospectiva. Nesses momentos, há uma espécie de simbologia que se conforma, tornando mais propícias e até naturais as análises de cunho meditativo, inseridas entre o retrospecto e o por vir, para delinear novas estratégias e eventualmente reconsiderar planos e ações.

Recentemente, no final de maio, a Lei de Defesa da Concorrência brasileira (Lei nº 12.529/2011) completou oito anos de vigência. O aniversário dessa lei se deu em meio a uma circunstância bastante atípica, leia-se, diante de um contexto complexo e desafiador que assola o mundo em razão das graves e múltiplas consequências decorrentes da pandemia de Covid-19. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autoridade responsável pela defesa da concorrência no Brasil, já externou publicamente sensibilidade a esse momento delicado de crise que aflige a sociedade e o mercado brasileiro, reiteradamente se pronunciando por meio de seus representantes a fim de trazer maior clareza e segurança jurídica aos administrados, notadamente sobre práticas e condutas viabilizadas nesse cenário adverso e extraordinário.

A despeito da maior sensibilidade à realidade das indústrias e de seus agentes, inclusive adotando, nesse particular, uma série de medidas práticas e institucionais que se mostram alinhadas às melhores práticas internacionais recomendadas por prestigiosas organizações na seara concorrencial, o Cade está atento ao movimento dos agentes econômicos e segue firme e vigilante, como deve ser, em sua missão de zelar por um ambiente competitivo saudável, mediante a manutenção de estruturas de mercado sadias e livres de distorções em prol da concorrência.

Nosso intuito aqui não é traçar um panorama histórico da lei ou fazer um balanço comparativo em termos estatísticos com os anos anteriores. Na verdade, concisamente e sob um enfoque atual e prospectivo, nosso objetivo é pincelar alguns temas que, em nossa leitura, em compasso com os desenvolvimentos em outras jurisdições, tendem a atingir com mais substância o ordenamento concorrencial brasileiro, desafiando-o e, igualmente, moldando e influenciando a dinâmica do mercado e de seus agentes. Daí a importância de enunciá-los, em caráter exemplificativo, para contribuir com os pensamentos e discussões que devem se adensar.

Sob tal premissa, consideramos fundamental que os temas a seguir estejam vivamente no horizonte do regulador, assim como da comunidade antitruste e academia, obviamente. A bem da verdade, esses temas já se encontram mapeados e inclusive vêm sendo considerados pelo Cade, mas entendemos que, inevitavelmente, haverá um contínuo de refinamento e sofisticação que demandará análises pormenorizadas e reflexão ponderada sobre a necessidade de eventuais novas ferramentas para capturá-los, bem como, mais intrinsicamente, indagar sobre os próprios objetivos do antitruste.

A partir de um quadro panorâmico, iluminamos alguns temas e pontos de atenção, a começar pela própria gênese versando sobre os objetivos do Direito Concorrencial, especialmente ante um cenário dinâmico, transformador e transformativo que salienta pontos de imbricação mais sensíveis (e até inevitáveis) entre o antitruste e outras searas do Direito, tais como propriedade industrial, proteção de dados, tributário, trabalhista, consumidor, ambiental e arbitragem, para ficar com essas searas de exemplo, denotando nuances e dilemas realmente interessantes para aprofundamento. Pois bem, o papel do antitruste diante do exponenciado potencial de intersecções temáticas e pontos de contato (e eventuais atritos) pode trazer à tona o essencial debate a respeito dos objetivos do antitruste, que está relacionado, diretamente, à política de defesa da concorrência que se pretende para o país. Delimitar os objetivos do antitruste é pressuposto básico, fundante e estrutural, para forjar e nortear a atuação da autoridade concorrencial e, consequentemente, estabelecer segurança jurídica e previsibilidade aos administrados.

Acreditamos que o evolver dos negócios no mundo digitalizado, global e dinâmico, catalisado por inovações de diversas ordens, irá impulsionar ainda mais a reflexão basilar ora posta, problematizando princípios estabelecidos, como bem-estar, eficiências etc., sob um profícuo pano de fundo que joga luz sobre a democracia e o antitruste, por exemplo. Com efeito, trata-se de um pano de fundo emblemático, principalmente ante movimentos recentes verificados na arena política ao redor do mundo, em que também subjazem ideias de protecionismo e política industrial.

Em compasso com as considerações acima, outra dimensão inquietante e abrangente que aparenta já bem estar no radar do Cade, inclusive tendo produzido importante relatório no ano passado em fina cooperação com alguns pares globais sobre a temática (Brics, com exceção da China), remete à economia digital e aos diversos desafios para a política concorrencial que se acoplam a esse ambiente. De maneira crescente, muitas análises e decisões tomadas no ambiente de negócios contemporâneo consideram ou são influenciadas por variáveis da economia digital, direta ou indiretamente. Nesse particular, há uma miríade de assuntos correlacionados que certamente ganharão maior tração decerto, alguns já estão desafiando diversas autoridades concorrenciais e os paradigmas tradicionais do antitruste mundo afora. Inteligência artificial, big data, algoritmos preditivos, blockchain, fintechs, plataformas e mercado de múltiplos lados, killer acquisitions, avaliação de poder de mercado, concorrência dinâmica, inovação, entre inúmeros outros, fazem parte desse ecossistema vibrante que estabelece um modus operandi particular, com potencial de desafiar algumas das ferramentas e técnicas analíticas clássicas do antitruste, requerendo, eventualmente, adaptação e recalibração, inclusive em sede normativa.

É inescapável e assim será não tratar cuidadosa e sistematicamente dos avanços da economia digital, das tecnologias correlatas e de seus efeitos sobre o Direito Concorrencial e respectivo enforcement à vista do comportamento do mercado e dos seus agentes econômicos, sublinhando, para referência, os detalhados escrutínios aos quais algumas das chamadas big techs estão enfrentando ao redor do globo atualmente face a supostas condutas anticompetitivas. Fato é que condutas unilaterais imersas nesta "era" da economia digital têm um enorme potencial de instigar ainda mais as reflexões no tocante ao aparato concorrencial e aos limites da licitude antitruste, por exemplo, embrenhados com outras problemáticas de fronteira e externalidades. Nesse tocante, é imperativo destacar que o potencial maléfico para a ordem econômica derivado de determinadas condutas unilaterais, sobretudo ante essa nova e nuançada realidade dos fatos, não deve ser menosprezado ou eclipsado por investigações envolvendo essencialmente práticas colusivas, devendo-se, pois, expandir paulatinamente o foco.

Outras tendências temáticas em nossa lente de prognose apontam para exame mais minucioso envolvendo questões societárias e atividades dos fundos de investimentos, para além do papel desempenhado por minoritários, sob um olhar atento a possíveis participações cruzadas e riscos de consolidações, verticalizações e concentrações setoriais silenciosas. Da mesma maneira, na esteira da crise decorrente da Covid-19, parece-nos que a invocação da teoria da failing firm defence tenderá a ser percebida com mais frequência, cabendo à autoridade cotejar e discernir a aplicabilidade real dessa tese ante o caso concreto, uma vez demonstrado o preenchimento de requisitos técnicos e objetivos para tanto. Mais profundamente, as repercussões da crise econômica sobre as estruturas de mercado ante um olhar mais de médio e longo prazos, e claramente sob um enfoque mais aguçado, não podem ser olvidadas.

Ainda, vislumbramos condições propícias para o fortalecimento do exercício da advocacia da concorrência por parte da Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (Seprac), que compõe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) junto com o Cade, em uma interlocução sinérgica com a autoridade concorrencial brasileira, a qual também tem se empenhado nesse mister. Há espaço para a condução de debates de impacto perante órgãos do governo e também junto à sociedade civil, visando a zelar pela livre concorrência e competitividade do país, considerando temas caros para o bem-estar socioeconômico, consoante prática, a propósito, que se robusteceu ultimamente, com importantes contribuições legislativas e opiniões de interesse em políticas de autorregulação, no manejo de políticas públicas etc.

Um aspecto subjacente da advocacia da concorrência, sob um espírito educativo, refere-se à própria conscientização sobre a cultura da concorrência. O espraiamento dessa cultura no âmbito de agências e autoridades competentes, bem como junto à sociedade civil e agentes econômicos, sobretudo pequenas e médias empresas, ainda se mostra um relevante desafio, sublinhando-se as desigualdades estruturais, regionais e individuais, bem como o desnivelamento de conhecimento sobre o tema que evidentemente existem e que representam, em última instância, mais ou menos poder. Afinal, conhecimento (informação) é poder e, no campo antitruste, conhecimento (informação) também pode se traduzir como modalidades de concorrência e poder econômico.

Tudo isso, somado à realidade da economia digital que pontuamos anteriormente, magnifica a relevância de, efetivamente, arejar um padrão social positivo de conscientização sobre a cultura concorrencial. Apenas para referência, há contextos de complexidade decorrentes de situações em que dados são ubíquos e abundantes vis-à-vis riscos de tratamentos discriminatórios e abusos, em que relações mercadológicas possam ser disciplinadas por eventuais entes detentores de monopólios de informação (e poder), canalizando assimetrias sistêmicas e implicações multifacetadas e em rede. Portanto, mais que nunca, balizadores pedagógicos para conscientização coletiva sobre a cultura concorrencial são fundamentais, em especial face ao aparente hermetismo (por vezes sob uma aura de "esoterismo") na apreensão do Direito Concorrencial para cidadãos não habituados ao dia a dia dessa matéria.

Ademais, outro aspecto digno de nota diz respeito ao estreitamento do Cade com o Poder Judiciário. Em especial, não obstante o histórico um tanto quanto incipiente de ação de reparação de danos decorrente de cartéis, é possível que esse quadro se veja gradualmente modificado no futuro, mormente a partir de diretrizes e novos incentivos viabilizados para o enforcement privado. Temos constatado, outrossim, maior interlocução entre ambos os atores (Cade e Judiciário), contribuindo, em princípio, para fortalecer o instituto da concorrência.

Por fim, uma temática já no radar do Cade, que sinaliza engajar-se em seu aperfeiçoamento, dialoga com políticas de governança e conformidade concorrencial. Interessante será, com efeito, vislumbrar maior articulação do Cade com autoridades responsáveis pela análise de atos de corrupção, por exemplo, na confluência com cartéis, a fim de delinearem instruções claras, integradas e assertivas para os administrados estabelecerem análises de risco efetivas e construção/fortificação de políticas de conformidade vivas, funcionais e robustas, com incentivos adequados para tanto. Igualmente, face ao contexto digital nos negócios, é esperado que as políticas de conformidade disciplinem com maior cautela vulnerabilidades que possam decorrer do uso de algoritmos, big data e suas interfaces, de sorte que o eixo concorrencial deve redobrar a atenção para esses importantes gradientes, haja vista potenciais riscos de colusão algorítmica, como também de condutas unilaterais restritivas na arena digital. Sendo assim, integrar protocolos de salvaguarda dinâmicos à política de integridade/compliance, com vistas a otimizar a detecção e minimizar a exposição, acoplando tecnologia blockchain, por exemplo, pode ser parte de uma estratégia preventiva oportuna.

Em suma, importantes desafios ainda aguardam a Lei de Defesa da Concorrência e a sistemática concorrencial. Alguns novos, outros revisitados, outros ainda históricos aliás, um grande desafio é o atual momento histórico e, aparentemente, o arcabouço antitruste vem funcionando a contento. A valer a trajetória de desenvolvimento nesses oito anos da lei, o SBDC deve estar preparado para enfrentar os desafios com rigor e tecnicidade, com uma caixa de ferramentas que viabiliza instrumentos efetivos para tanto, com espaço para refinamentos à luz da dinâmica evolutiva.

Concluímos essas notas saudando a lei e o SBDC, endossando nossa sensibilidade à atual conjuntura e, ao mesmo tempo, concordando com a necessidade de uma atuação firme, responsável e dedicada do regulador, com uma política concorrencial dotada de enforcement robusto dentro das balizas da legalidade e razoabilidade (inclusive em extraordinários, difíceis e incertos períodos, como o atual). Uma atuação nesses moldes é crucial para resguardar a ordem econômica e a concorrência, fazendo parte dos relevantíssimos esforços institucionais para auxiliar o país na retomada do dínamo econômico e também social.

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