Opinião

A judicialização da saúde e os seus reflexos em tempos de Covid-19

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26 de junho de 2020, 16h06

Desde a década de 90 mormente em razão da promulgação da Constituição de 1988 e da edição da Lei nº 8.080/90 , a interferência do Judiciário na efetivação do direito à saúde vem aumentando e causando uma grande preocupação ao Estado, o qual se vê compelido a arcar com tratamentos e medicamentos aos cidadãos que buscam atender as suas demandas por aquela via.

De acordo com Luís Roberto Barroso, "a judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário", bem como "envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade" [1].

O acionamento do Judiciário para a resolução de questões envolvendo a tutela da saúde, portanto, tem fundamento nas garantias constitucionais elencadas nos artigos 196 a 200 da Carta Magna, regulamentados pela Lei 8.080/90, que instituem um sistema público de saúde universal e igualitário.

Ocorre que a procura pelo Judiciário, a fim de viabilizar a tutela à saúde, acarreta um problema de ordem econômica para os cofres públicos, eis que o acesso integral a tratamentos e medicamentos implica custos altíssimos ao Estado.

De acordo com dados do Portal da Saúde [2], sítio eletrônico do governo federal, bilhões são gastos anualmente em decorrência de ações judiciais.

Nesse contexto, é necessário que se estabeleça parâmetros para a atuação do Judiciário no âmbito das políticas públicas estabelecidas pelo Executivo, sob pena de que haja violação ao princípio da reserva do possível, segundo o qual é necessário fazer escolhas entre a necessidade e a possibilidade orçamentária do Estado, de maneira que não ocorra desequilíbrio financeiro aos entes envolvidos.

É necessário destacar, contudo, que a limitação financeira não pode configurar "desculpa" para a não implementação das políticas públicas referentes à saúde e aos demais direitos fundamentais assegurados na Constituição da República, pois deve ser assegurado o mínimo existencial, ou seja, o conjunto de direitos indispensáveis para que se tenha uma vida digna (STJ, REsp 1185474/SC. Relator Min. Humberto Martins, DJ: 20/04/2010).

Dessa forma, é necessário realizar uma ponderação entre as necessidades humanas (no caso, referentes à saúde) e os recursos financeiros estatais.

Tendo em vista que o orçamento público é limitado e as necessidades, mormente em matéria de saúde, são infinitas, recomenda-se a adoção de certos critérios, pelo Judiciário, ao decidir uma lide que envolva direito à saúde, a fim de garantir a observância ao princípio da razoabilidade, sem violar a Constituição da República e as leis infraconstitucionais.

O Supremo Tribunal Federal vem entendendo que, caso o medicamento ou tratamento pleiteado esteja incorporado pelo SUS (incluído em sua política pública de saúde e, portanto, passível de distribuição gratuita), não há dúvidas quanto à possibilidade do seu fornecimento pelo Estado. Nesse caso, é necessário que o paciente comprove a necessidade do medicamento e a sua tentativa frustrada pela via administrativa (STF, RE n. 566.471/ RN. Relator Min. Marco Aurélio).

Lado outro, o STF tem adotado o entendimento (vide o RE nº 566.471, ainda em andamento) de que nos casos de remédios de alto custo não incorporados no sistema, o Estado pode ser obrigado a fornecê-los, desde que comprovadas sua extrema necessidade, bem como a incapacidade financeira do paciente e de sua família, que inviabilizariam a sua aquisição.

Pode ocorrer, ainda, de o requerente solicitar medicamento ou tratamento específicos, geralmente de alto custo, mesmo havendo alternativa terapêutica fornecida pelo SUS. Nesses casos, é necessário que haja comprovação da ineficácia do medicamento/tratamento oferecido para, somente após, determinar-se a concessão de medida mais onerosa.

Lado outro, caso não haja alternativa terapêutica oferecida pelo SUS, Clenio Schulze e João Pedro Gebran Neto [3] sugerem a observância do Judiciário às decisões proferidas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), assim definida descrita em sua página eletrônica:

"A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec foi criada pela lei nº 12.401 de 28 de abril de 2011, que dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. A Conitec, assistida pelo Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde DGITS, tem por objetivo assessorar o Ministério da Saúde — MS nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, bem como na constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas PCDT".

A propósito, a própria Conitec reconhece a sua importância no contexto da judicialização da saúde, visando auxiliar os magistrados nas tomadas de decisões, a partir da elaboração de fichas técnicas contendo informações necessárias sobre medicamentos e tratamentos. Senão veja-se [4]:

"Com a finalidade de contribuir para a tomada de decisão dos magistrados, a Conitec elaborou fichas técnicas com informações simples e claras sobre medicamentos e produtos para a saúde, que são caracterizados, entre outros atributos, quanto à disponibilidade no SUS; à avaliação pela Conitec; ao custo de tratamento; à existência de alternativas no sistema público de saúde e à disponibilidade de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para a situação clínica relacionada".

Dessa forma, ensinam os supracitados autores, sendo a Conitec favorável à incorporação de medicamento ou tecnologia no SUS, é razoável que o magistrado julgue a demanda de acordo com o parecer daquela comissão. Caso a análise da Conitec seja desfavorável à incorporação de medicamento ou tecnologia, necessária se faz a juntada de prova técnica pela parte autora, a fim de refutar os argumentos esposados pela entidade.

Nos casos em que não houver parecer favorável da Conitec, é necessário que sejam pautadas as evidências científicas acerca da eficácia e da segurança da terapia ou do medicamento pleiteado, bem como a comparação de benefícios e de custos em face de tecnologias já incorporadas no sistema público.

Como se vê, os critérios a serem observados pelo Judiciário ainda não são unânimes. Todavia, a Suprema Corte já indica um caminho.

Para além das questões envolvendo a saúde no âmbito dos tribunais, atravessamos a maior tragédia sanitária até agora enfrentada no século XXI, que é a pandemia da Covid-19.

Faz-se necessário que os tribunais trabalhem dentro da máxima segurança jurídica, a fim de evitar decisões conflitantes entre direitos fundamentais da saúde e políticas sociais.

Nesse sentido, o entendimento do STF acerca da temática da saúde pode nortear os demais tribunais, de forma a resguardar o princípio da isonomia e consequentemente outros direitos fundamentais como a vida e a saúde —, contribuindo para que o Judiciário consiga atender às demandas da forma mais correta possível em meio ao cenário de caos gerado pela pandemia.

 

Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/estudobarroso.pdf. Acesso em 4/3/2017.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. 22 de dezembro de 2008. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica. Acesso em 12/2/2017.

BARROSO, Luís Roberto. Medicamentos de alto custo. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2016/10/RE-566471-Medicamentos-de-alto-custo-vers%C3%A3o-final.pdf. Acesso em 13/2/2017.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em 11/2/2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm Acesso em 11/2/2017.

CONITEC. Direito e saúde. Disponível em: http://conitec.gov.br/index.php/direito-e-saude. Acesso em 12/2/2017.

PORTAL SAÚDE. Em cinco anos, mais de R$ 2,1 bilhões foram gastos com ações judiciais. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/20195-em-cinco-anos-mais-de-r-2-1-bilhoes-foram-gastos-com-acoes-judiciais. Acesso em 14/2/2017

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18 ed. São Paulo. Saraiva.

SANTOS, Lenir. Sistema Único de Saúde: os desafios da gestão interfederativa. Campinas: Saberes, 2013. 272 p.

SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/artigo_Ingo_DF_sociais_PETROPOLIS_final_01_09_08.pdf. Acesso em 4/3/2017.

SCHULZE, Clenio; NETO, João Pedro Gebran. Direito à saúde análise à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2015. p. 260 p.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275. Acesso em 14/2/2017

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Recurso Extraordinário n. 566.471/ RN. Relator Min. Marco Aurélio.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Recurso Especial n. 1185474/SC. Relator Min. Humberto Martins, DJ: 20/04/2010.

 


[1] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.

[3] SCHULZE, Clenio; NETO, João Pedro Gebran. Direito à saúde análise à luz da judicialização. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2015.

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