Improbidade em Debate

A apuração de atos de improbidade mediante inquéritos policial e civil público

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26 de junho de 2020, 8h00

Spacca
A apuração acerca da prática de ato de improbidade pode se dar de distintas maneiras — não excludentes e nem reciprocamente condicionadas, de modo que podem muito bem ocorrer concorrentemente e se retroalimentando.

O procedimento administrativo, que pode ser iniciado de ofício, mediante representação ou por iniciativa do Ministério Público, foi objeto do artigo 14, já comentado por nós anteriormente. Cumpre, aqui, pois, enveredarmos por vias alternativas, como os inquéritos policial e civil público.

A começar pelo inquérito policial, a possibilidade de requisição seria entendida como uma faculdade para o Ministério Público e uma determinação para a autoridade policial, espelhando prerrogativa ministerial antes já lançada nos artigos 129, VIII, da Constituição, e 7º, II, da Lei Complementar 75/1993. A dúvida que desde logo surge, sem embargo, é se caberia, entre as atribuições da autoridade policial, investigar, ainda que por requisição, ilícito tipificado como improbidade.

Os parágrafos 1º, I, e 4º do artigo 144 da Constituição atribuíram à Polícia Federal a apuração de infrações penais “em detrimento de bens, serviços e interesses da União”. A lesão ao erário está contemplada, é verdade, mas como produto de eventual infração penal. Às polícias civis, de sua vez, se atribui constitucionalmente a apuração de infrações penais, além das “funções de polícia judiciária”, que, em nosso sentir, por mais abrangência que se queira conferir, não abarcaria juízo nem mesmo sobre indícios ou não de improbidade. Em suma, fará sentido a requisição ministerial de instauração de inquérito policial quando se divisar em possível conduta ímproba prática também criminosa; em sentido oposto, deparando, no bojo de investigação policial, com comportamento com aptidão para tipificação na lei de improbidade, caberá à autoridade policial, no máximo, oficiar ao Ministério Público.

Passando ao inquérito civil público, Calil Simão[1] e Wallace Martins[2] empreenderam importante pesquisa sobre o genoma normativo do artigo 22 da Lei 8.429/1992, sustentando que, ao longo da tramitação do então Projeto de Lei 1.146-A/91, havia a previsão expressa do inquérito civil público como prerrogativa ministerial para apuração de atos de improbidade. Já na fase final de tramitação, nada obstante, com resistência capitaneada pelo então Deputado Federal Nelson Jobim, se acabou extirpando da norma o inquérito civil sob o fundamento de que a cumulação de funções de investigador e destinatário da investigação contaminaria a opinio delicti do Ministério Público, viciando a formação do convencimento do órgão no sopesamento sobre ajuizar ou não uma ação de improbidade.

A prática, nada obstante, e sob protestos de parte da doutrina, acabaria consagrando[3] a possibilidade de o Ministério Público lançar mão sim do inquérito civil para fins de apuração de ato de improbidade, possibilidade essa reforçada por uma interpretação elástica do artigo 23, IV, b, da Lei 8.625/1993, e pela desvirtuada mescla dos procedimentos das ações civil pública e de improbidade: o inquérito civil tem sua origem no artigo 8º da Lei 7.347/1985 (fruto de ideia inicialmente exposta em 1980 em palestra por Promotor de Justiça do Estado de São Paulo[4] e encampada em anteprojeto de lei[5] que resultaria naquela norma) e permaneceria atrelado à defesa de direitos coletivos e difusos, como rezam os artigos 129, III, da Constituição, e 6º, VII, da Lei Complementar 75/1993, até ser ampliado para alcançar a improbidade administrativa (artigo 1º da Resolução 87/2006 do Conselho Superior do Ministério Público Federal.

Ainda em abono, diriam os defensores da tese ampliadora do leque do inquérito civil, posteriormente sobreviriam também os fundamentos lançados pelo STF como razões de decidir do acórdão no RE 593.727, DJ de 4/9/2015, em que se decidiu, na esfera criminal, pelo poder investigatório do órgão ministerial. Seja como for, fato é que o inquérito civil se converteu em instrumento de apuração direta e prévia à disposição do órgão ministerial, constando da redação do artigo 22 do Projeto de Lei 10.887/2018 a proposta de positivação daquilo que a lei, no que embora vedasse, acabou vencida.

Indo além, a instauração do inquérito civil é facultativa, não funcionando como condição de procedibilidade para ajuizamento de ação civil pública ou de improbidade; será ele necessário, contudo, quando o órgão ministerial, extrajudicial e previamente, desejar lançar mão de requisições, perícias, vistorias, recomendações, termos de ajustamento de conduta ou outras diligências (artigo 1º, parágrafo único, da Resolução n. 87/2006 do Conselho Superior do Ministério Público Federal). Pode a instauração ainda ocorrer de ofício ou mediante provocação, atualmente admitindo-se inclusive a denúncia anônima (STF, RMS 29.198, DJ de 28.11.2012; STJ, AgInt no REsp 1.281.019/RJ, DJ de 30.5.2017; e artigos 2º, § 2º, da Resolução n. 87/2006 do Conselho Superior do Ministério Público Federal e 2º, § 3º, da Resolução CNMP n. 23/2007).

Procedimento administrativo de natureza inquisitiva a dispensar o contraditório, o inquérito civil se presta à formação de convicção para ajuizamento ou não de ação civil pública ou de improbidade, mas nem por isso prescinde de justa causa, mínima que seja. Os fatos devem ser minimamente delineados, vedada a apuração genérica (fishing expedition). Contra expedientes daquele jaez, admite-se excepcionalmente o trancamento do inquérito nas hipóteses de evidentes “atipicidade de conduta, causa extintiva da punibilidade ou ausência de indícios de autoria” (STJ, RMS 30.510/RJ, DJ de 10.2.2010), lição que também se colhe da doutrina de Hugo Nigro Mazzilli — “a instauração de um inquérito civil pressupõe seu exercício responsável, até porque, se procedida sem justa causa poderá ser trancado por meio de mandado de segurança”[6] — e de Adilson de Abreu Dallari:

Fazendo uma comparação, no campo do direito administrativo, pode-se dizer que o inquérito civil está para a ação civil pública, assim como a sindicância está para o processo administrativo. Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que no seu curso se apure se eventualmente alguém cometeu alguma falta funcional.

Não é dado à Administração Pública, nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuita e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele talvez tenha participado.

Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário e na medida do necessário.[7]

Interessante mencionar, ademais, na esteira das considerações acima, que o trancamento de inquérito civil em razão da ausência de justa causa não se limita à esfera judicial, podendo em tese ocorrer mediante procedimento de controle administrativo do Conselho Nacional do Ministério Público:

Para realização de tal controle não se faz necessário sequer a previsão na Lei Orgânica, tendo em vista a aplicação da teoria dos poderes implícitos, reconhecida pelo Egrégio STF, já que se o Conselho Superior é competente para indeferir a promoção de arquivamento do inquérito civil e procedimento preparatório, também é competente para determinar o seu trancamento quando visivelmente faltar-lhe justa causa.[8]

Avançando em nossos apontamentos, o inquérito civil, uma vez instaurado, não interrompe a prescrição para exercício de pretensão sancionadora fulcrada em ato de improbidade (STJ, AgRg no REsp 1384087/RS, julgado em 19/03/2015) — ressalva naturalmente feita à imprescritibilidade do ressarcimento ao erário em virtude de ato doloso — e pode ter seu prazo para conclusão fundamentadamente prorrogado reiteradas vezes (artigo 9º da Resolução n. 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público), ainda que a cada vez cresça o ônus da demonstração de que persiste justa causa. Digno de nota, ainda, que do inquérito civil podem sim emergir provas suscetíveis de serem usadas como emprestadas em feito criminal (STJ, RHC 31877/TO, DJ de 29.6.2012), assegurado o contraditório pleno nos feitos para os quais trasladadas as provas.

Concluindo essas anotações, temos para nós que o inquérito civil é instrumento absolutamente relevante e que poderia ser mais eficientemente utilizado se observasse um de seus escopos originais no sentido de funcionar como “procedimento preparatório, destinado a viabilizar o exercício responsável da ação civil pública” e a frustrar “a possibilidade, sempre eventual, de instauração de lides temerárias.”[9] Lamentavelmente, contudo, o instituto, em que pese pudesse e devesse servir para reunir elementos para manejo de ações somente quando essas estivessem fundamentadas, não logrou impedir a construção e consolidação de entendimentos já criticados por nós, como o in dubio pro societate no recebimento de inicial de improbidade e os fatídicos danos presumidos ao erário. Pior: há julgados que, desvirtuando por completo o inquérito civil, chancelaram julgamento antecipado com base apenas em subsídios a partir dele obtidos, inquisitorialmente, inobstante pedido do réu de reprodução das provas, no processo, sob o crivo do contraditório (STJ, REsp 1724421/MT, DJ de 25.5.2018).

Aproveitando esta quinquagésima edição de nossa coluna, gostaríamos de fazer um convite a todos que nos acompanham para assistir ao webinário que ocorrerá nesta sexta-feira, 26/6/2020, a partir das 17h, como parte da programação do Grupo de Estudos “O Direito em tempos de Covid-19”, do Instituto Brasiliense de Direito Público. Na ocasião, nós, Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Pupe, conversaremos com o Desembargador do TRF1 Ney Bello; o Deputado Federal Carlos Zarattini, relator do Projeto de Lei n. 10.887/2018; Paola Aires Correa Lima, ex-Procuradora-Geral do DF; Maria Tereza Uille Gomes, ex-Conselheira do CNJ e ex- Procuradora-Geral de Justiça do Estado do Paraná; e com Rafael Araripe Carneiro, advogado, mestre em Direito e Professor do IDP. O tema, aliás, será o importante trabalho de pesquisa[10] desempenhado exatamente pelo Prof. Rafael a respeito da produção jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça em matéria de improbidade administrativa. Imperdível!


[1] SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 2ª ed. Leme: JH Mizuno, 2014, p. 383-385.

[2] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 481-482.

[3] STJ, REsp 31.547-9, julgado em 6.10.1993.

[4] O Promotor é José Fernando da Silva Lopes e o relato é feito em obra essencial: MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 42.

[5] De autoria de Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, entre outros.

[6] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 20 9 .

[7] DALLARI, Adilson Abreu. Limitações à Atuação do Ministério Público. Malheiros, 2001, p. 38.

[8] PCA 1517/2010-04, julgado em 15.3.2011.

[9] Apud GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 527.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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