Interesse público

O tempo de controle das aposentadorias e pensões pelos tribunais de contas

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

25 de junho de 2020, 8h29

Spacca
1. A vida é curta e os prazos longos
Até 19 de fevereiro de 2020, em todo o país, não havia definição de prazo limite para o exercício pelos Tribunais de Contas da competência estabelecida no Art 71, III, da Constituição Federal. Essa norma constitucional confere às Cortes de Contas a competência para “apreciar”, para “fins de registro”, a legalidade “das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório”. Trata-se de competência de controle, inconfundível com a competência de administração ativa atribuída a órgãos públicos para conceder, por atos próprios, aposentadorias, reformas ou pensões.

A ausência de definição clara de prazo de controle promovia a ocorrência de dois problemas graves: a) processos de registro se prolongavam no tempo, às vezes por décadas, com grave insegurança jurídica para o aposentado ou seus herdeiros; b) os órgãos da administração ativa se desresponsabilizavam – demoravam para enviar processos concessórios ao Tribunal de Contas e raramente o agente responsável pelo ato de concessão inicial recebia ele mesmo notícia sobre o ato final de registro ou qualquer censura pelo não-registro ou por equívocos do ato original controlado.

É útil anotar que, embora a linguagem constitucional seja abrangente, os Tribunais de Contas controlam no âmbito administrativo a legalidade e constitucionalidade dos atos de aposentadoria, reforma e pensão exclusivamente dos agentes públicos civis e militares. Quem concede, registra e controla as aposentadorias e pensões submetidas ao regime geral de previdência é o INSS, que pode revisá-las no prazo máximo de 10 anos (Art. 103 da Lei nº 8.213/91, com redação dada pela Lei nº 13.846/2019). Por óbvio, a concessão inicial do benefício previdenciário, relativa ao direito fundamental à segurança social, não está sujeita a prazo decadencial.

Os atos de concessão de aposentadoria, reforma e pensão de agentes públicos estatutários produzem efeitos imediatos após publicados: afastam o agente do serviço ativo, abrem vaga no quadro de pessoal, definem o valor do provento ou pensão – que será percebido pelo beneficiário de forma igualmente imediata – e obrigam a remessa do processo concessório correspondente ao órgão de controle. É dizer: o ato concessório original produz efeitos administrativos internos e externos, efeitos financeiros e efeitos interadministrativos imediatos.

O ato concessório também produz efeitos no tempo jurídico do controle. Qual o efeito? A orientação dos Tribunais sofreu na matéria uma evolução relevante. Para simplificar, sugiro analisar em três fases essa evolução a partir dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

Em uma primeira fase, iniciada em 1957 (MS 3.881, Rel. Min. Nelson Hungria, RTJ 4/85), o STF adotou o entendimento segundo o qual o ato de controle do Tribunal de Contas perfectibiliza o ato concessório original, compondo o ato final de aposentação, reforma ou concessão de pensão. É dizer: o ato concessório original e o ato de controle (o ato de registro) seriam apenas atos preparatórios ou condicionantes do ato final de concessão do benefício previdenciário, destituídos de autonomia jurídica isolada, reservada esta apenas ao ato final, por isso caracterizado como “ato complexo” (ato fusão). Três consequências decorriam desse entendimento: a) o ato complexo de aposentadoria, reforma ou pensão não poderia ser revogado ou alterado pela manifestação isolada de apenas um dos órgãos; b) o prazo para sua anulação ou impugnação somente iniciava após o ato final de registro ou de negativa de registro; c) dispensava-se a participação e a exigência do contraditório e da ampla defesa do interessado até a conclusão do ato final de registro ou de negativa de registro. Essa orientação foi seguida por décadas, com emissão de centenas de decisões (v.g., MS 26.391, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 06.6.11; MS 28.929, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 16.11.11) e algumas Súmulas pelo Supremo Tribunal (v.g. Súmula 6 e Súmula Vinculante nº 31).

Também o TCU editou a Súmula 278 a esse respeito:

Os atos de aposentadoria, reforma e pensão têm natureza jurídica de atos complexos, razão pela qual os prazos decadenciais a que se referem o §2º do Art. 260 do Regimento Interno e o art. 54 da Lei n. 9784/99 começam a fluir a partir do momento em que se aperfeiçoam com a decisão do TCU que os considera legais ou ilegais, respectivamente

Sem embargo disso, essa orientação foi duramente criticada pela doutrina, que registrou ser o Tribunal de Contas incompetente para alterar, dispor ou inovar sobre qualquer aspecto o ato concessório, limitando-se a realizar atividade de verificação ou homologação sucessiva. Não haveria a exteriorização de uma única vontade administrativa (ato-fusão), mas emissão de múltiplas manifestações heterogêneas. Nessa intelecção, o ato de aposentação estaria perfeito (formativamente completo, acabado) desde o ato concessório original, gozaria de autonomia jurídica, sendo a manifestação posterior simples ato de controle de natureza complementar, destinada a criar coisa julgada administrativa e, assim, impedir nova atuação da administração. Nesse enquadramento, a concessão de aposentadoria, reforma ou pensão caracterizaria ato composto, resultante da manifestação sucessiva de dois órgãos, com emissão de dois atos administrativos distintos, sem fusão em um único ato homogêneo, sendo a manifestação do segundo órgão meramente secundária, complementar ou homologatória. A relação entre os dois atos seria instrumental, isto é, não essencial. O ato de controle não integraria o ato controlado, nem com ele se confundiria, apenas lhe emprestaria exeqüibilidade ou estabilidade. As consequências jurídicas decorrentes dessa orientação seriam novamente três: a) a admissão do prazo decadencial para o exercício do ato de controle a partir da publicação do ato original de aposentação; b) o ato original poderia ser modificado pelo órgão concessório ao longo do tempo, isoladamente, desde que a alteração fosse comunicada ao órgão de controle, com nova abertura de prazo decadencial; c)o prazo de anulação ou alteração do ato concessório inicial fluiria a partir de sua edição, sendo plenamente aplicável o art. 54 da Lei de Processo Administrativo (Lei 9784/99) e suas congêneres nos Estados.

Essas críticas ecoaram no Supremo Tribunal Federal e em outros Tribunais Superiores, especialmente no STJ (vg. REsp 1.047.524⁄SC, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 3.8.2009; REsp 1.098.490⁄SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe 27.4.2009; EDcl no REsp. 1.187.203, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 29.11.2010).

No STF, uma segunda fase ou nova compreensão sobre a matéria foi inaugurada a partir de 2007, com a decisão do MS 24.448, da Relatoria do Min. Ayres Britto2 (julgado em 27/09/2007), reafirmada no MS 25.116 e no MS 25.403, Rel. Min. Ayres Britto. Por essa nova orientação, embora mantido o conceito da aposentação como “ato complexo”, o Tribunal passou convocar o princípio da segurança jurídica na vertente da proteção da confiança para proclamar a necessidade do oferecimento do contraditório e da ampla defesa nos processos instaurados perante o TCU para a apreciação de legalidade dos atos de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão, quando transcorrido in albis “o tempo constitucional médio” de 5 (cinco) anos para o exercício da competência prevista no Art. 71, III, da CF/88, contados do ingresso do processo na Corte de Contas (no mesmo sentido: MS 24.781, Rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe de 09.6.11; MS 24.871, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 09.6.11, ‘inter plures’; MS 28.711-AgR, 1ª T, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 24.09.2012; MS 25116 ED-segundos, Rel. Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, Dje 13-06-2014).

Essa segunda orientação constituiu um indiscutível avanço: incentivou a celeridade processual das Cortes de Contas, ampliou a participação e as possibilidades de manifestação dos interessados, mas não impediu o prolongamento irrazoável dos processos de controle/ registro, que permaneceram sem prazo definido de conclusão. Em uma palavra: a garantia do contraditório e da ampla defesa após o curso de cinco anos ampliou os níveis de democraticidade da decisão de controle, mas não assegurou a efetividade ao direito fundamental à tramitação processual em tempo razoável, a eficiência processual na dimensão temporal, nem fulminou a prolongada insegurança jurídica do beneficiário pelo demora na emissão do ato de registro. Estes poderiam continuar a demorar 10, 15 e 20 anos para serem expedidos.

Em 19/02/2020, em uma nova reviravolta na matéria, que considero marca a terceira fase nessa evolução, o Supremo Tribunal reconheceu os graves inconvenientes da jurisprudência precedente. Decidiu a Corte, no Recurso Extraordinário nº 636.553/RS, da Relatoria do Min. Gilmar Mendes, Plenário, fixar o prazo de 5 anos como prazo decadencial para a emissão do ato de registro em sede de controle de legalidade previsto no Art. 71, III, da Constituição Federal, contados do recebimento do ato concessório no órgão de controle, invocando por analogia o prazo estabelecido no art. 1º do Decreto nº 20.910/32. Findo o prazo, não havendo emissão do ato de controle, o ato concessório original seria considerado definitivamente registrado.

O acórdão foi publicado em 26/05/2020, com a seguinte ementa:

Recurso extraordinário. Repercussão geral. 2. Aposentadoria. Ato complexo. Necessária a conjugação das vontades do órgão de origem e do Tribunal de Contas. Inaplicabilidade do art. 54 da Lei 9.784/1999 antes da perfectibilização do ato de aposentadoria, reforma ou pensão. Manutenção da jurisprudência quanto a este ponto. 3. Princípios da segurança jurídica e da confiança legítima. Necessidade da estabilização das relações jurídicas. Fixação do prazo de 5 anos para que o TCU proceda ao registro dos atos de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, após o qual se considerarão definitivamente registrados. 4. Termo inicial do prazo. Chegada do processo ao Tribunal de Contas. 5. Discussão acerca do contraditório e da ampla defesa prejudicada. 6. TESE: "Em atenção aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, os Tribunais de Contas estão sujeitos ao prazo de 5 anos para o julgamento da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, a contar da chegada do processo à respectiva Corte de Contas". 7. Caso concreto. Ato inicial da concessão de aposentadoria ocorrido em 1995. Chegada do processo ao TCU em 1996. Negativa do registro pela Corte de Contas em 2003. Transcurso de mais de 5 anos. 8. Negado provimento ao recurso.

Em face dessa decisão a União interpôs embargos de declaração, com pedido de modulação de efeitos, a fim de que seja conferida eficácia prospectiva ao novo entendimento firmado, e requereu ainda correção de omissões e obscuridades. Não houve, portanto, trânsito em julgado da decisão.

Mesmo sem o trânsito em julgado, a nova orientação já repercute no TCU, que passou a acelerar a apreciação de procedimentos de controle que ainda não completaram cinco anos de tramitação, com a explícita orientação de “evitar a consumação do prazo de 5 anos sem deliberação” (v.g. Acórdão 1349/2020, Plenário, Rel. Min. Bruno Dantas, Proc. 010.370/2020-0, Sessão 27/05/2020; Acórdão 1178/2020, Plenário, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, Proc. 010.400/2020-6, Sessão 13/05/2020; Acórdão 3573/2020, Segunda Câmara, Rel. Min. Ana Arraes, Proc. 010.377/2020-4, Sessão 06/04/2020). Os que já completaram cinco anos e tiveram o registro negado após a data da decisão do STF, pendente de trânsito em julgado, estão sendo sobrestados.

2. Nem complexo nem composto
A nova orientação do STF, proclamada no Recurso Extraordinário nº 636.553/RS, da Relatoria do Min. Gilmar Mendes, Plenário, fixa prazo certo para o exercício do controle administrativo da legitimidade do ato concessório de aposentadoria, reforma e pensão. Homenageia a segurança jurídica e, no mesmo passo, o direito fundamental à razoável duração do processo (Art. 5º, LXXVIII, da CF).

Mas deixa algumas perguntas sem resposta. Algumas de ordem conceitual; outras de ordem prática. Impossível explorá-las todas aqui, por razões de espaço. Frise-se apenas duas, uma conceitual e outra prática.

Se o ato concessório produz efeitos desde sua edição e estabiliza esses efeitos, no âmbito administrativo, com o simples transcurso do tempo e a inércia do órgão de controle, como permanecer conceituando-o como ato complexo ou mesmo ato composto? Se o conteúdo e a exequibilidade do ato concessório independem de eventual edição do ato de registro, que pode não ocorrer (por decadência ou esgotamento do tempo de exercício da competência de controle), parece tecnicamente mais adequado conceituar o ato concessório inicial como ato administrativo simples, sujeito a condição resolutiva de negativa de registro.

Se o ato de não-registro é evento futuro e incerto, enquanto não ocorre, vigora o ato jurídico concessório em sua plenitude, pois seu conteúdo é completo e sua eficácia é imediata. O ato de controle, de natureza claramente eventual, passível de ser emitido no prazo de cinco anos, mesmo se expedido não terá caráter formativo, mas simplesmente declaratório ou anulatório, implementando, nessa segunda hipótese, a condição resolutiva do ato jurídico inicial. O titular do direito à aposentadoria, reforma ou pensão não precisa aguardar qualquer ato sucessivo de controle para manejar ações judiciais ou administrativas, dispor livremente sobre as suas rendas, negociar crédito, pleitear revisão ou defender os seus interesses em qualquer juízo ou instância.

É certo que se o ato concessório for entendido como ato administrativo simples, de administração ativa, sujeito a condição resolutiva, incide o prazo de decadência desde a sua produção (mas este prazo, nos termos do §2º do art. 54 da Lei 9784/99, pode ser cumprindo com o início de exercício do direito de anular mediante qualquer medida da autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato). Destaco que hoje a remessa da administração ativa para o órgão de controle, ao menos na União, é eletrônica e facilitada (Art. 4º da Instrução Normativa – TCU nº 78, de 21 de março de 2018).

Em termos práticos, muitas dúvidas remanescem, em regra envolvendo a ausência de transição e tratamento no tempo da virada jurisprudencial. Há decisões de negativa de registro emitidas após cinco anos, após a decisão do STF, mas antes do trânsito em julgado, que estão sobrestadas. Há decisões de negativa de registro, igualmente emitidas após cinco anos, já comunicadas aos órgãos de administração ativa e em vias de correção. Qual o destino desses casos e de numerosos outros que ainda não foram apreciados, mas que estão próximos de completar cinco anos de tramitação? Os cinco anos reiniciam após o ato de não-registro, após eventuais correções da administração ativa? Poderão ser suspensos para oitivas e manifestações? E se os atos concessórios estiverem viciados não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade manifesta e direta, também nesses casos haverá decadência do ato de recusa de registro?

Penso que a decisão no Recurso Extraordinário nº 636.553/RS merece ser festejada e desenvolvida pela doutrina e pelo próprio STF. Será inevitável debater a sua modulação temporal e orientar os órgãos de controle a realizarem a devida adequação procedimental com vistas a acelerar a decisão de registro, sem adoção de soluções fáceis de simplesmente limpar a mesa. A previdência é um direito fundamental, mas seus custos, que se prolongam no tempo, exigem especial atenção e zelo.


1 Súmula Vinculante 3 (DJe de 06/06/2007): “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

2 EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. SECRETÁRIO DE RECURSOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO STF. PENSÕES CIVIL E MILITAR. MILITAR REFORMADO SOB A CF DE 1967. CUMULATIVIDADE. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. GARANTIAS DO CONTRÁRIO E DA AMPLA DEFESA. […] 3. A inércia da Corte de Contas, por sete anos, consolidou de forma positiva a expectativa da viúva, no tocante ao recebimento de verba de caráter alimentar. Este aspecto temporal diz intimamente com o princípio da segurança jurídica, projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento conceitual do Estado de Direito. 4. O prazo de cinco anos é de ser aplicado aos processos de contas que tenham por objeto o exame de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e pensões. Transcorrido in albis o interregno qüinqüenal, é de se convocar os particulares para participar do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das garantias do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º). 5. Segurança concedida. (MS 24448, Rel. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2007, DJe-142, DJ 14-11-2007, PP-00042)

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    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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