Opinião

Processo penal democrático ainda não é uma realidade no nosso país

Autor

  • Gustavo Dias Kershaw

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco mestrando em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Edimburgo e em Perícias Forenses pela Universidade de Pernambuco especialista em Direito do Estado pela Faculdade Estácio do Pará (FAP) e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor especialista I no Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau/Recife)

25 de junho de 2020, 17h07

Conforme noticiado no informativo nº 980, no julgamento do Habeas Corpus nº 161.658-SP (2/6/2020), a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal afirmou entendimento de que é nula a audiência criminal em que o juiz pergunta diretamente às testemunhas, violando o cross-examination previsto no artigo 212, parágrafo único, do Código de Processo Penal. A regra passou a integrar o diploma processual penal após a reforma de 2008 e privilegia o sistema acusatório juiz neutro e destinatário da prova.

Segundo previsto, o juiz pode complementar as perguntas das partes, evidenciando seu caráter de participação secundária na produção da prova. Especificamente, pode indagar a testemunha sobre os pontos não esclarecidos quando da atuação das partes.

Sobre o tema, a precisa lição de Eugênio Pacelli:

"A Lei nº 11.690/08 trouxe importante alteração no procedimento de inquirição de testemunhas.

Ali se prevê que as perguntas das partes serão feitas diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem a repetição de outra já respondida (artigo 212, CPP). E, mais ainda, prevê que o juiz poderá complementar a inquirição, sobre pontos eventualmente não esclarecidos (artigo 212, parágrafo único, CPP).

Observa-se, então, que a medida se encontra alinhada a um modelo acusatório de processo penal, no qual o juiz deve assumir posição de maior neutralidade na produção da prova, evitando-se o risco, aqui já apontado, de tornar-se o magistrado um substituto do órgão de acusação. Assim, as partes iniciam a inquirição, e o juiz a encerra". (PACELLI, 2020, p. 530)

No entanto, se com uma mão o Supremo Tribunal Federal afaga o sistema acusatório, com a outra acaricia o modelo inquisitorial ainda arraigado na cultura jurídica nacional.

Alguns dias após nos brindar com esperança de avanços, o plenário da corte considerou que é constitucional a condução e instrução, pelo próprio STF, do famigerado Inquérito nº 4781, instaurado com o objetivo de investigar a existência de notícias fraudulentas (fake news).

Sequer é preciso dizer que os fatos são graves e ameaçam a estrutura da frágil democracia brasileira. É evidente, portanto, o interesse público no esclarecimento e investigação dos fatos, bem como a persecução penal dos que, sob a justificativa falsa de liberdade de expressão, eventualmente cometam crimes de ódio, de ameaça e de denunciação caluniosa contra os juízes da Corte Suprema.

Todavia, vale evocar a máxima de Ovídio de que "os fins NÃO justificam os meios". Há um Departamento de Polícia Federal e um Ministério Público Federal fortes, atuantes e capazes de conduzirem investigações sérias nesta temática e nenhum argumento, por mais relevante que seja, legitima que o Estado-juiz assuma as posições de investigador e julgador concomitantemente. Qual a imparcialidade que se pode aguardar desses julgadores?

É desgastante constatar que o processo penal democrático ainda não é uma realidade no nosso país. No fundo, resta-nos sempre aquela saudade do que ainda não vivemos.

 

Referência bibliográfica

Pacelli, Eugênio. Curso de Processo Penal. – 24. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.

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