Opinião

Assembleias gerais e sociedades cooperativas: tempos de mudança?

Autores

  • Alfredo de Assis Gonçalves Neto

    é professor titular aposentado de Direito Comercial da Faculdade de Direito da UFPR advogado especialista em Direito Empresarial Cooperativo e Econômico e sócio do escritório Assis Gonçalves Kloss Neto e Advogados Associados.

  • Micheli Mayumi Iwasaki

    é advogada sócia do escritório Assis Gonçalves Kloss Neto Advogados Associados mestre em Direito e especialista em Sociologia Política pela UFPR e membro da Comissão de Direito Cooperativo da OAB-PR

24 de junho de 2020, 9h16

Em meio ao cenário de estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, diversas iniciativas legislativas propõem regimes jurídicos provisórios no intuito de dar respaldo aos atos e negócios jurídicos a serem realizados nesse período. Entre elas, destaca-se a possibilidade de participação e votação à distância nas assembleias de cooperativas trazida pela Medida Provisória nº 931/2020.

É recorrente o argumento de que a Lei Geral das Sociedades Cooperativas precisa ser integralmente substituída, fundada no argumento simplista de que sua edição data do início da década de 1970. Embora quase cinquentenária, é preciso ponderar que boa parte de suas balizas dogmáticas se mantêm incólumes e, assim, verificar em que medida a subsunção das mudanças sociais eventualmente justificam a atualização de alguns de seus dispositivos — tal qual se coloca o tema das assembleias.

As características específicas e condições fáticas e jurídicas para a implementação de assembleias remotas para as sociedades limitadas e anônimas são muito distintas das cooperativas.

A título exemplificativo, para citar somente uma característica, as limitadas dispensam a realização de reuniões e assembleias sempre que a totalidade dos sócios subscrever documento com o conteúdo da respectiva pauta que pode também ser assinado por um procurador.

No caso das sociedades anônimas, há distinção de tratamento conferido às companhias abertas e fechadas e, nos termos da medida provisória e normativas da Comissão de Valores Mobiliários, somente às primeiras foi conferida a autorização legal para a realização de assembleia digital, conforme já bem alertou Marcelo Vieira von Adamek em recente artigo publicado na ConJur [1]. A constatação de que existem diferentes graus de maturidade no processo de digitalização das assembleias nas companhias abertas e nas cooperativas parece evidente, especialmente porque a figura do acionista não pode ser equiparada ao do cooperado, cujos interesses e condições socioeconômicas, de modo geral, são bastante distintos.

A partir desse breve contexto, caso a medida provisória seja convertida em lei nos termos em que foi proposta [2], a Lei das Cooperativas terá acrescido ao seu texto, como norma permanente, o artigo 43-A, segundo o qual "o associado poderá participar e votar a distância em reunião ou assembleia, nos termos do disposto na regulamentação do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia". Por conseguinte, só haverá permissão para as cooperativas de qualquer natureza realizarem assembleias gerais semipresenciais, não prevalecendo a alternativa, contida na Instrução Normativa nº 79/2020 do DREI, que previu a possibilidade de serem também implementadas assembleias gerais digitais (ou virtuais). Se alguma cooperativa optar por realizar uma assembleia geral exclusivamente virtual há de avaliar o risco de sua anulação, dada a flagrante ilegalidade, nessa parte, da referida norma administrativa do DREI.

E a restrição legal faz muito sentido, pois, no caso de assembleias gerais das cooperativas singulares, a participação do associado é um direito e um dever de caráter personalíssimo, vez que vedado o voto por procuração, que deve, ainda, ser integrado ao princípio universal da gestão democrática. Assim, facultar a realização de assembleias gerais em plataforma digital, sem local para o comparecimento pessoal, seria criar um grande obstáculo para muitos cooperados terem acesso ao evento.

De fato, para além da questão da autorização legal, a assembleia digital cria restrições de ordem material quanto ao acesso aos recursos de tecnologia e da sabida falta de cobertura de internet nas mais diversas regiões do país, que, por si só, podem configurar hipóteses de anulação da deliberação, visto que a inviabilidade de participação afronta os princípios cooperativos e lesa o direito individual do cooperado. Essa crítica, no ambiente cooperativo, vale, pelos mesmos motivos, para a Lei nº 14.010, de 10 de junho do corrente ano, no ponto em que autoriza, em caráter transitório e excepcional, a realização de assembleias gerais das pessoas jurídicas em geral por meios eletrônicos até o próximo dia 30 de outubro [3].

No plano concreto e diante desse cenário de incertezas, deve-se aplaudir, porém, a alteração legislativa que insere na legislação cooperativista a modalidade de assembleia geral semipresencial, que se realiza na sede da cooperativa, por ampliar a possibilidade de participação do cooperado, tanto presencialmente, quanto pelos meios eletrônicos, ambos permitindo sua intervenção efetiva e sua manifestação de voto. Assim, mesmo usufruindo da faculdade de realizar suas assembleias gerais em ambiente virtual até o final de outubro, nossa recomendação é a de que elas sejam realizadas na sede da cooperativa por essa modalidade aqui sugerida, isto é, em ambiente físico, mas permitida a participação e o voto à distância com observância de todos os cuidados que a segurança à saúde estão a exigir, enquanto durar a pandemia da Covid-19. Também é possível defender o entendimento de que, por haver inegável motivo de força maior, as AGOs do exercício de 2019 podem ultrapassar a data final da norma transitória, desde que o retardo não cause prejuízo aos cooperados ou a terceiros.

Sabe-se que as assembleias gerais das cooperativas têm papel primordial na consecução da autogestão e na democratização da sociedade, de modo que a sua realização na forma presencial constitui pilar central da sua estrutura. Sob esse ângulo, também, não há que se olvidar que o formato semipresencial amplia o direito de participação do cooperado, o que vai ao encontro de tal paradigma, constatação que, ao contrário, não se verifica no formato digital.

Muitas cooperativas têm por costume bastante difundido realizar reuniões pré-assembleares dada a extensão da área de ação e o grande número de cooperados, visando a ampliar a participação e a dar maior transparência e publicidade sobre os atos de gestão e das contas da administração. Tal oportunidade pode ser ideal para que o associado possa manifestar seu voto por meio do boletim, já que terá à sua disposição representantes da diretoria e (ou) dos conselhos de administração e fiscalização para prestar quaisquer esclarecimentos que porventura lhes sejam solicitados.

 


[1] VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Companhias abertas à parte, assembleias virtuais são realidade no Brasil? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-02/direito-civil-atualas-assembleias-virtuais-sao-realidade-direito-societario-brasileiro>. Acesso em 3/6/2020.

[2]  O prazo de vigência da MP nº 931/2020, já na prorrogação, irá escoar-se no final do mês de julho.

[3]  "Artigo 5º — A assembleia geral, inclusive para os fins do artigo 59 do Código Civil, até 30 de outubro de 2020, poderá ser realizada por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica".

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  • Brave

    é professor titular de Direito Comercial da Faculdade de Direito da UFPR, advogado especialista em Direito Empresarial, Cooperativo e Econômico e sócio do escritório Assis Gonçalves Kloss Neto Advogados Associados.

  • Brave

    é advogada, membro do Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional — Projeto de Pesquisa Virada de Copérnico da Universidade Federal do Paraná, membro da Comissão de Direito Cooperativo da OAB-PR, mestre em Direito e especialista em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná.

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