Garantias do Consumo

O Projeto de Lei 3.514/15 e o conceito de consumidor comunidade-global

Autores

  • Dennis Verbicaro

    é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha) mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará (Cesupa) líder dos grupos de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania" e "Consumo Responsável e Globalização Econômica" procurador do estado do Pará advogado e diretor do Brasilcon.

  • Janaina Vieira Homci

    é doutoranda e mestra em Direito Humanos com ênfase em Direito do Consumidor pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA) especialista em Direito aplicado aos serviços de saúde pela Estácio MBA em Direito Civil e Processo Civil pela FGV Rio pesquisadora no grupo de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania" professora universitária e advogada.

23 de novembro de 2022, 8h00

Uma das grandes virtudes da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) é seu caráter analítico, seja porque traz comandos definitivos (regras) para os sujeitos da relação de consumo, seja porque positiva princípios fundamentais, mas também porque introduz conceitos normativos, dentre os quais o de consumidor, seja na perspectiva individual, seja no âmbito coletivo.

Nesse particular, o artigo 2º, caput nos apresenta o conceito de destinatário final, sob a premissa de um consumidor que não interfere no processo produtivo e encerra o ciclo econômico do bem, inclusive com a inovadora inclusão da pessoa jurídica como tal. O parágrafo único do artigo 2º, por sua vez, nos apresenta o conceito coletivo concreto, através do qual são contemplados os interesses de um grupo ou coletividade de consumidores ligados entre si por uma relação jurídica base, pré-existente à lesão ou ameaça de lesão, dando corpo aos interesses coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. O artigo 29, em sua amplitude, reconhece a vulnerabilidade concreta e abstrata do consumidor diante das práticas empresariais abusivas. Ainda no CDC, o artigo 17 traz a figura do consumidor equiparado, para efeito de responsabilidade pelo fato do produto, também conhecido como vítima do evento (bystander).

O papel deste ensaio não é discorrer sobre os aludidos conceitos legais de consumidor e seus desdobramentos, mas reafirmar seu conceito transnacional, denominado "consumidor-comunidade global" [1], especialmente a partir do debate atual acerca do Projeto de Lei 3.515/2015, cujo objetivo é aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I do CDC, ao dispor sobre o comércio eletrônico e a disciplina dos contratos internacionais comerciais e de consumo. Mas, afinal, o que significa consumidor-comunidade global?

Verbicaro e Verbicaro [2] destacam que a indústria cultural padronizou e adaptou as massas aos valores capitalistas de consumo, através do aprimoramento dos meios de produção em nível desterritorial, estabelecendo, no plano internacional, novos padrões estético-comportamentais para o consumidor, agora tratado com sujeito genérico e portador de uma individualidade fictícia. Tal desterritorialidade gerou a vulnerabilidade transnacional, o que exige a expansão do conceito de consumidor para além das fronteiras estatais.

De outro modo, porém de forma convergente, a imersão tecnológica do consumidor e a intensificação do consumo digital favoreceram a desmaterialização, despersonificação e hiperconfiança na relação de consumo [3], o que agravou essa vulnerabilidade transnacional do consumidor face da possibilidade de contratar de qualquer lugar e a todo instante.

Da mesma forma, não se pode negar que a economia informacional atrelada a tratamento de dados pessoais também é um real fator de preocupação nesse contexto, de modo a se reconhecer o impacto negativo da inteligência artificial na funcionalização das escolhas do consumidor [4], uma vez que a cadeia "escondida" de fornecedores tratam tais dados para muito além fronteiras, tendo, inclusive, a LGPD, no seu artigo 3º, ampliado a competência aos dados pessoais cuja operações são realizadas no território nacional, oferta ou fornecimento de bens ou serviços ou tratamento de dados pessoais no território nacional ou para aqueles coletados no território nacional.

Na mesma perspectiva, a revolução digital estabeleceu novas formas de oferta de produtos e serviços, como os contratos inteligentes e a economia de compartilhamento, bem como os novos produtos e serviços em si, como bens digitais, internet das coisas e a interligação dos bens na inteligência artificial, deep e machine learning [5], também chamados de serviços simbióticos [6], cuja utilização independe de um território para desenvolvimento.

Tais operações, formas de contratação e tipos de produtos e serviços apresentam o consumidor-comunidade global como ponto em comum. Para este consumidor, internacionalmente considerado, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 7, apresenta que os direitos nele previstos não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário.

No âmbito do Mercosul, foi introduzida a conexão especial para os contratos internacionais entre consumidores e fornecedores de produtos e serviços na região, qual seja a conexão com a lei mais favorável [7]. Porém, é fato que tivemos uma ampliação da proteção deste consumidor em discussão no Projeto de Lei 3.514/2015.

Isso porque, além do fortalecimento do direito à informação e de arrependimento, já fortemente reconhecidos no CDC e no Decreto Federal 7.962/2013, o referido projeto traz alguns avanços importantes:

1) O Projeto de Lei reconhece a realização do negócio jurídico transnacional, possibilitando que sejam interpretados e integrados de maneira mais favorável ao consumidor, com aplicação da lei mais benéfica, considerando todos os territórios envolvidos na contratação, nos termos do Artigo 3º-A e Artigo 9º-B.

2) As normas gerais do consumidor no comercio eletrônico a distancia devem observar e fortalecer a confiança pela diminuição da assimetria informacional, da preservação da segurança, da autodeterminação informativa e privacidade dos dados pessoais, em atenção ao artigo 45-A.

3) Em caso de acidente de consumo em que nenhuma das partes envolvidas possuam domicílio ou sede em que ocorrer o dano, fato ou ato ilícito, reger-se-ão a lei do lugar onde os efeitos se fizerem sentir, conforme artigo 9ºC.

As premissas destacadas reconhecem o caráter transnacional da relação, bem como reconhecem a vulnerabilidade transnacional do consumidor inserido no contexto em análise, relativizando, inclusive, a competência normativa. É fato que a própria caracterização do negócio em estudo exige uma ampliação transnacional da proteção legal. O Projeto de Lei 3.514/15, portanto, consolida o reconhecimento do consumidor comunidade-global no nosso ordenamento jurídico.

 


[1] VERBICARO, Dennis. Consumo e cidadania: identificando os espaços políticos de atuação qualificada do consumidor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p.240.

[2] VERBICARO, Dennis; VERBICARO, Loiane da Ponte Souza Prado. A indústria cultural e o caráter fictício da individualidade na definição do conceito de consumidor-comunidade global. Revista Jurídica Cesumar, Maringá, PR, v. 17, nº 1, p. 107-131, jan./abr. 2017.

[3] MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

[4] VERBICARO, Dennis; VIEIRA, Janaina do Nascimento. A nova dimensão da proteção do consumidor digital diante do acesso a dados pessoais no ciberespaço. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 30, nº 134, p. 195-226, mar./abr. 2021

[5] MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 28, nº 125, p. 17-62, set./out. 2019.

[6] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. "Serviços simbióticos" do consumo digital e o PL 3.514/2015 de atualização do CDC. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 29, nº 132, p. 91-118, nov./dez. 2020

[7] VERBICARO, Dennis; VIEIRA, Janaina do Nascimento. A hipervulnerabilidade do turista e a responsabilidade das plataformas digitais: uma análise a partir da perspectiva da economia colaborativa. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 29, nº 127, p. 305-330, 2020.

Autores

  • é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará, professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará (Cesupa), líder dos grupos de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania" e "Consumo Responsável e Globalização Econômica", procurador do estado do Pará, advogado e diretor do Brasilcon.

  • é doutoranda e mestra em Direito Humanos, com ênfase em Direito do Consumidor, pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Direito aplicado aos serviços de saúde pela Estácio, MBA em Direito Civil e Processo Civil pela FGV Rio, pesquisadora no grupo de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania", professora universitária e advogada.

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