Opinião

Acumulação de cargo de magistério por militar estadual e do DF é lícita

Autor

  • Everson da Silva Biazon

    é procurador do Estado do Paraná pós-graduado em Direito do Estado e professor convidado do programa de pós graduação da Univel e Unipar. Foi Procurador Jurídico do CRO/PR e professor da graduação da Universidade Tuiuti.

24 de junho de 2020, 15h17

Tema importante, que permeia direitos dos agentes militares, foi objeto de recente alteração constitucional, promovida pela Emenda Constitucional 101/2019, que, ao acrescer o §3º ao artigo 42 da CF/88, determinou a aplicação da regra contida no artigo 37, inciso XVI, da CF, aos militares estaduais e do Distrito Federal, de forma a tornar possível a acumulação de um cargo de professor com outro técnico ou científico objeto deste ensaio.

Vale lembrar que a vedação à acumulação de cargos se estende a empregos e funções públicas (artigo 37, XVII, da CF) enquanto o agente público permanecer vinculado à Administração (STF, MS 27955 AgR/DF, 17/8/2018), e objetiva, ao menos numa perspectiva, impedir que o acúmulo de cargos resulte na execução ineficiente das respectivas tarefas, ou mesmo sem o devido zelo e a celeridade que se espera.

De outro lado, ausente prejuízo ao serviço público e havendo compatibilidade de horários, é autorizado o exercício de dois cargos públicos, notadamente nas situações em que se quer estimular a prática profissional ou desenvolvimento intelectual do agente público.

Proibição de atividade fora do âmbito castrense
No âmbito militar, o Decreto-Lei nº 667/69, artigo 22, veda a participação de policiais militares em firmas comerciais de empresas industriais de qualquer natureza ou nelas exercer função ou emprego remunerados, o que é reiterado pela Lei nº 6.880/1980 (artigo 29) e pelo Decreto nº 88.777/1983 (R-200). Restrição equivalente se encontra em diversos diplomas estatuais. Citam-se: Paraná (Lei nº 1.943/54, artigo 107); Rio Grande do Sul (LC nº 10.990/97, artigo 26); São Paulo (LC nº 893/01, artigo 8º); Rio de Janeiro (Lei nº 443/81, artigo 28); e, Bahia (Lei 7.990/01, artigo 40).

Extrai-se disso clara preocupação no sentido de que o exercício de atividade paralela pelo militar pudesse comprometer a dedicação necessária à corporação, colocando-a em segundo plano, além de possíveis incompatibilidades de certas atividades civis com a função militar.

Nesse cenário, o tema ganha relevo em face do advento da EC 101/2019, que, como mencionado, fez incidir a regra do artigo 37, XVI, da CF também aos militares estaduais e do DF. Vejamos, então, especificamente a acumulação do cargo militar com o magistério.

Antes, note-se que a Constituição Federal não vincula que o magistério seja correlacionado à área de conhecimento específica exigida para o cargo técnico ocupado, podendo o agente público lecionar, livremente, nas matérias em que tenha habilitação e conhecimento.

Também, se é lícito trabalhar no magistério público, igualmente se afigura legítimo no ensino privado. Assim, pode-se acumular um cargo no magistério público e atuar, também, em escolas e universidades privadas, desde que haja compatibilidade de horários e não prejudique o serviço público (STF, RE 169.807. DJ de 8/11/1996).

Na seara privada, a restrição se reserva à ausência de prejuízo à atividade pública e não, propriamente, em quantidade de aulas e/ou instituições privadas em que o agente público lecionará (STF, ADI 3126 MC/DF, 17/02/2005), de modo que o magistério pode ser empreendido enquanto não embarace a atividade pública.

Feitos esses registros, vamos à questão central, qual seja, saber se a função militar é técnica, dada a possibilidade de acúmulo de um cargo de natureza técnica com um de magistério.

A esse respeito, observa-se que inexiste lei definindo o alcance de cargo técnico, de forma que nesse mister a jurisprudência pátria tem seguido orientação do Superior Tribunal de Justiça, para o qual cargo técnico "é aquele que requer conhecimento específico na área de atuação do profissional, com habilitação específica de grau universitário ou profissionalizante de segundo grau" (STJ. RMS 42.392/AC, 10/2/2015).

De outro lado, o STJ entende não possuírem natureza técnica tarefas meramente repetitivas, que não demandam formação superior ou profissionalizante para desempenhá-las (REsp 1602494/DF, DJe 02/12/2019; RMS 57846/PR, DJe 11/10/2019).

Paralelamente, a Lei 9.394/96 estabelece que a educação profissionalizante de nível médio objetiva preparar a pessoa a atividades laborais técnicas (artigo 36-A); com foco semelhante, a educação profissional e tecnológica, que abrange nível médio e superior (artigo 39, §2º); e, por sua vez, a educação superior tem por finalidades (artigo 43), entre outras, "o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; habilitar pessoas a inserção em setores profissionais; atuação em favor da universalização e do aprimoramento da educação básica, mediante a formação e a capacitação de profissionais".

A leitura da citada lei revela o cuidado que o sistema educacional brasileiro tem para com o exercício de certos ofícios que, a depender da tecnicidade e complexidade de cada qual, pode exigir formação profissionalizante, de nível médio, ou ainda estudo mais aprofundado, de nível superior (cursos de graduação e tecnológicos), tudo com o fim de agregar à pessoa conhecimentos indispensáveis à execução das tarefas pertinentes a cada profissão.

Ao lado disso, as atribuições de certos cargos podem demandar, para a investidura, qualificação que corresponda a conhecimentos específicos, adquiridos em cursos voltados à formação para o trabalho, de nível médio ou superior.

Portanto, é possível concluir que, se para o exercício de determinados cargos se exige conhecimentos que são adquiridos por meio de cursos educacionais, o cargo é de natureza técnica, sendo passível de acumulação com outro cargo de professor, nos termos admitidos pela Constituição Federal.

Nesse contexto, para conclusão justa sobre o tema, é indispensável estar atento às peculiaridades da carreira militar, que possui cargos que reclamam prévia formação específica (para a investidura) e outros não. Para acessar os postos de oficial militar é preciso aprovação no curso de formação de oficiais, de nível de graduação, caso em que o cadete é diplomado, passando a aspirante a oficial (durante o estágio probatório) e, após, investido a oficial militar (há outros cargos da carreira de oficial militar, como médico e dentista, cujas funções não são tipicamente castrenses e exigem qualificação superior prévia para o ingresso).

Denota-se disso que os postos da carreira de oficial militar pressupõem formação educacional de nível superior, reveladora da função tipicamente técnica dos oficiais, permitindo a acumulação na espécie.

A questão mais delicada reside no quadro de praças, que abrange cargos de policial militar e de bombeiro militar, cujo acesso não requisita prévia qualificação educacional específica e, em razão disso, há decisões judiciais entendendo que esses cargos não podem ser considerados cargos técnicos (STJ, RMS 32.031/AC, DJe 24/11/2011; TJ/GO, MS nº 5260126.57.2019.8.09.0000, DJGO, pg. 5450, da Seção I, de 18/11/2019), inviabilizando o exercício do magistério.

No entanto, é preciso reconhecer uma especificidade da carreira dos praças, que, embora não reclame para o ingresso formação específica, o próprio Estado qualifica-os antes do exercício das tarefas inerentes ao cargo. Isso não desnatura a tecnicidade da função, e sim demonstra o caráter técnico dela.

Não é razoável, com todo respeito, afirmar que a atividade militar é meramente burocrática ou repetitiva, pois inúmeras situações delicadas são conduzidas diariamente pelos policiais e bombeiros militares (por exemplo: abordagens, sequestros, confrontos, contenção de crise em presídio, perseguições a criminosos, combate a incêndio, resgates em acidentes etc.), todas elas nitidamente demandam domínio de conhecimentos específicos, habilidades intelectuais, inteligência e equilíbrio emocional, para saber como e quando agir.

Justamente visando ao indispensável preparo dos membros das polícias e Corpos de Bombeiros é que os entes da federação submetem seus militares a cursos de formação profissionalizante, visando ao domínio das habilidades necessárias para o correto desempenho das funções e desenvolvimento na carreira.

Nesse mister, diversas academias militares criadas pelos Estados se organizaram de tal forma a serem reconhecidas como instituições de ensino superior, sendo as maiores responsáveis pela formação dos membros dos efetivos militares.

Por isso mesmo não há dúvida da natureza técnica do cargo de policial militar e de bombeiro militar, pois para o exercício da atividade se demanda prévia qualificação profissional, obtida nos respectivos cursos educacionais (profissionalizante, tecnológico e superior) oferecidos pelo Estado.

Além disso, inúmeros tribunais têm reconhecido o caráter técnico da atividade do policial militar (TJSP, Apelação nº 1000984-79.2015.8.26.0506, 07/02/2018; TJPR, ACR-1476813-1, 10.05.2016), inclusive, o STF já indicou a possibilidade de acumulação do cargo de policial militar com a de professor (STF, ADI 1.541, DJ 4.10.2002), sendo que na vigência da EC 101/2019 solidificaram-se decisões favoráveis à acumulação em questão (TJ/SE, Acórdão 201936322, 17/12/2019; TJPR, Apelação n° 0000586-71.2017.8.16.0179, 23/9/2019).

Após a EC 101/2019, tornou-se insustentável afastar a tecnicidade do cargo de policial e de bombeiro militar, a ponto de negar a incidência do artigo 37, XVI, "b", da CF, de forma que, somados os precedentes jurisprudenciais e a formação educacional exigida para o exercício do cargo, deve ser permitido o exercício do magistério.

Concluindo, depreende-se da interpretação da legislação pátria, porquanto detentores de atividade considerada técnica, que é lícita a acumulação de cargo do magistério por militar estadual e do DF, assim como atuação na docência em âmbito privado, desde que observada a compatibilidade de horários e primazia da atividade castrense.

Por último, necessário se faz dar interpretação conforme à Constituição Federal às regras de transferência para a reserva e agregação, a fim de que o militar que assumir cargo de magistério ou exercê-lo no âmbito privado permaneça na ativa na corporação.

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