Advocacia criminal

Advocacia criminal e o processo intelectual de elaboração do arrazoado

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24 de junho de 2020, 7h58

Spacca
Segundo o dicionário, arrazoado, na sua acepção jurídica, é substantivo masculino que significa conjunto de alegações ou razões das partes litigantes em um processo, feitas oralmente ou por escrito. Neste texto, cuidaremos do processo de criação intelectual que vai desde a pesquisa e escolha de argumentos fáticos e jurídicos, até a escrita e revisão do seu produto final: documento (arrazoado) apresentado ao Poder Judiciário. Nosso enfoque será nos arrazoados mais complexos, que ensejam cognição judicial aprofundada sobre matéria fático-probatória e jurídica (resposta à acusação, alegações finais e razões ou contrarrazões de apelação).

De início, o arrazoado não é fim em si mesmo, não devendo ser usado para exercícios de autogratificação, exibicionismo, experimentalismo etc. Ao contrário, ele é meio de persuasão do julgador, estando sempre a serviço dos interesses do cliente no desfecho processual favorável.

Segundo Janet Kole, eis o que deve ser evitado no bom arrazoado persuasivo: (i) frases compridas, que tendem a desinteressar o leitor; (ii) gramática ruim, que tende a irritar o leitor; (iii) indignidade causada por experimentalismo escatológico, humorístico, poético etc.; (iv) dependência da tecnologia, pois a verificação ortográfica e gramatical automática dos processadores de texto não é confiável; (v) correção política excessiva (v.g. neutralidade de gênero etc.); (vi) desconhecimento das normas processuais e regimentais aplicáveis; (vii) citação errônea de precedente jurisprudencial, descrição incorreta da decisão judicial impugnada, ou omissão da relação de pertinência entre a sobredita decisão e os argumentos da parte; (viii) argumentação confusa, que impede compreensão judicial sobre questões fáticas e jurídicas relevantes para a adjudicação do caso concreto; (ix) sujeira (v.g. manchas de café etc.) na via impressa do arrazoado; (x) ataques ad hominem contra o Poder Judiciário (v.g. afirmação de que erro (in procedendo ou in judicando) foi intencional, devido à motivação espúria etc.), ou a parte adversa; (xi) desorganização na articulação lógico-sequencial dos tópicos e argumentos. 1

A esse rol acrescentamos a hipertrofia, em regra causada pela multiplicidade de longas citações doutrinárias, legislativas, jurisprudenciais, de documentos etc. 2

Não obstante, o Advogado deve exercer a empatia, colocando-se no lugar do seu leitor, em regra assoberbado por grande volume de arrazoados para ler e acórdãos ou sentenças para redigir, além de outras tarefas jurisdicionais e administrativas (v.g. presidência de audiências; gestão de servidores judiciários etc.). Assim, o artífice do arrazoado sempre deve tentar limitar sua extensão, maximizando as chances de persuasão do julgador. É sugestivo que na língua inglesa brief significa tanto arrazoado quanto breve.

A esse propósito, apresentamos abaixo os Doze Mandamentos do bom arrazoado forense persuasivo, com base na adaptação da doutrina norte-americana à prática judiciária nacional. 3

I. Seja antecipado: a maioria dos arrazoados pode – e deve – entrar em linha de produção artesanal antes do início da fluência do prazo processual respectivo. 4

II. Seja meticuloso: a pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial é de suma importância. Magistrados e Tribunais têm seus doutrinadores preferidos, identificáveis pela sua citação recorrente em acórdãos e sentenças. Esses são os doutrinadores a serem pesquisados e citados (ainda que o Advogado não os considere os melhores). É necessária leitura cuidadosa de cada obra citada, pois há doutrinadores que discorrem sobre determinado entendimento e, páginas adiante, se posicionam contrariamente a ele. Se houver imputação de norma penal em branco, deve ser pesquisado seu complemento administrativo ou normativo, quanto à vigência etc. Pesquisa jurisprudencial séria é trabalhosa, indo além do corte/cola de quaisquer ementas de julgados que têm pertinência marginal com o caso concreto. Deve ser buscado precedente jurisprudencial recente, do Tribunal competente para julgar o caso, e relatado por Magistrado em atividade. Como é raro haver esse precedente que cai como uma luva no caso concreto, podem ser buscados julgados recentes dos Tribunais de Sobreposição, ou de outros tribunais semelhantes (federais ou estaduais). 5 Deve ser lido o inteiro teor do acórdão pesquisado, pois não raro há ementas que são enganosas. 6

III. Seja enxadrista: os possíveis desdobramentos processuais da causa devem ser objeto de reflexão, pois há matérias importantes (v.g. nulidades processuais; contrariedades a dispositivos constitucionais ou legais etc.) que, se não forem suscitadas no momento oportuno, se tornarão preclusas.

IV. Seja organizado: o arrazoado deve iniciar com um sumário executivo, de no máximo uma página, resumindo todos seus argumentos fáticos e jurídicos. Tais argumentos devem ser ordenados com base no critério da precedência daqueles que são prejudiciais. Logo, a exceção processual de incompetência absoluta do juízo deve preceder as demais; a questão preliminar de nulidade da denúncia por inépcia deve preceder as questões preliminares de nulidades de atos processuais subsequentes; a extinção da punibilidade pela prescrição deve preceder os demais argumentos de mérito etc. Sem subverter o critério acima, insira seu argumento mais forte primeiro, e os demais em ordem decrescente de força (exclua aqueles que são fracos). Caso o memorial seja instruído com documentos, estes devem ser poucos, pouco extensos, completos e legíveis. Cabe ao arrazoado explicar qual fato naturalístico cada documento comprova, e qual é sua relevância para o julgamento da causa. É útil inserir, na última página do arrazoado, um índice dos documentos juntados.

V. Seja cirúrgico: a transição da leitura em papel para a digital pode favorecer práticas mais seletivas de leitura (satisficing), via ferramenta de busca de palavras-chave no texto digital etc. 7 Logo, coalhar o seu arrazoado de longas citações a acórdãos, doutrinas, normas legais, documentos etc. induz o leitor a pular essas citações. Não pratique o autoengano: o Magistrado e os assessores dele conhecem a jurisprudência daquele Tribunal melhor do que você. Assim, faça paráfrases, ou transcreva só trechos das ementas consideradas importantíssimas para sua argumentação. Foque na subsunção das circunstâncias fáticas do caso concreto aos acórdãos citados, esclarecendo o que é importante neles (fatos naturalísticos; razão de decidir (ratio decidendi); fundamento específico; citação de outro precedente; obiter dictum; conclusão etc.) para sua argumentação. Ainda que você encontre vários precedentes favoráveis ao seu argumento, faça paráfrase ou transcreva trecho da ementa daquele com maior grau de pertinência ao caso concreto, e cite os demais em nota de pé de página.

VI. Seja breve: a tecnologia moderna permite, com poucos cliques do mouse, o corte/cola de acórdãos, artigos, eBooks, documentos etc. no bojo de qualquer arrazoado. A consequência prática é que nunca houve tantos arrazoados extensos, superficiais e tediosos, com baixo poder de persuasão. Portanto, lembre-se que menos é mais. Por exemplo: (i) os fatos naturalísticos devem ser resumidos ao essencial para a compreensão do julgador; (ii) a transcrição de doutrina pode ser substituída pela paráfrase das ideias do doutrinador, citando-se a fonte em nota de pé de página; (iii) as normas de codificações e leis corriqueiras não precisam ser transcritas. 8

VII. Seja direto: a linguagem do arrazoado deve ser semelhante à fala cotidiana: gramaticalmente correta, porém informal. Devem ser evitadas expressões rebuscadas, em latim, idiomas estrangeiros, escatologias, figuras de linguagem, gírias, piadas etc. As palavras devem ser curtas e simples. As frases e parágrafos devem ser curtos. Prefira a voz ativa. Evite redundâncias. Corte todas as palavras desnecessárias, sem piedade. 9 Seja cuidadoso, modesto, pensativo e respeitoso. Se você está em dúvida se algo é adequado, provavelmente não é, portanto exclua do seu arrazoado. 10

VIII. Seja técnico: o Direito é ciência de conceitos, e o arrazoado deve respeitar categorias conceituais dogmáticas. Evite termos genéricos, tais como prisão cautelar, prisão processual ou prisão provisória, que não informam ao leitor de qual espécie de prisão se trata. Cuidado com conceitos afins (v.g. agente encoberto; agente infiltrado; agente provocador etc.) e palavras polissêmicas (v.g. prova pode significar elemento de prova, resultado da prova, fonte de prova, meio de prova, meio de pesquisa etc.).

IX. Seja ético: a deturpação de norma, citação doutrinária ou acórdão, bem como de depoimento, documento ou alegação da parte adversa, para confundir adversário, ou iludir julgador, caracteriza infração ético-disciplinar (artigo 34, XIV da Lei nº. 8.906/94). Assim, a menção a qualquer argumento alheio deve ser contextualizada e fidedigna, preferencialmente via transcrição literal do trecho relevante. O pior tipo de desonestidade intelectual existente, na academia ou no fórum, é a falsa atribuição de argumento a outrem. Ao citar determinada corrente doutrinária ou jurisprudencial não unânime, reconheça esse fato, aproveitando o ensejo para fazer crítica à corrente contrária ao seu argumento.

X. Seja elegante: a crítica, por mais merecida que seja, nunca deve ser pessoal (ad hominem), e sim a determinado argumento alheio. Mesmo assim, não use adjetivação agressiva (v.g. ridículo, risível, pífio etc.), e sim branda (v.g. errôneo, incoerente, inconsistente etc.). Sua mensagem se torna ainda mais persuasiva quando ela é discreta. 11 Ao se referir a argumento alheio, seja impessoal (v.g. em vez de tese do Procurador da República fulano de tal, escreva tese da relativização da presunção de inocência etc.). Evite a crítica caricatural a uma escola de pensamento, instituição etc., preferindo crítica branda a determinado argumento. Jamais use deboche, ironia ou sarcasmo. A elegância se estende ao aspecto gráfico do arrazoado, que deve ser o mais agradável, legível e persuasivo possível. 12

XI. Seja ousado: o ato de arrazoar tem dimensão artística ou criadora, permitindo proposta de nova interpretação jurídica aos Tribunais. Veja-se a tese de Alberto Zacharias Toron sobre o âmbito de proteção do direito à última palavra do corréu delatado, que veio a ser acolhida pela Suprema Corte. 13 Portanto, se você acredita na força do seu argumento, não tenha receio de ousar.

XII. Seja revisor: o bom arrazoado persuasivo nunca é escrito, e sim reescrito várias vezes. Cada palavra, frase e parágrafo devem ser exaustivamente revisados, sempre buscando o maior grau possível de brevidade, clareza e poder de persuasão dos argumentos fáticos e jurídicos. No arrazoado, conteúdo e forma estão intimamente ligados: mesmo bons argumentos perdem seu poder de persuasão quando são veiculados de forma confusa e desleixada. Lembre-se da frase atribuída a Ernest Hemingway: escrita fácil torna a leitura difícil (easy writing makes hard reading).

O arrazoado malfeito é disfuncional, porque ele: (i) transfere injustamente o trabalho de pesquisa fática e jurídica para a parte adversa, o julgador e seus assessores; (ii) torna a adjudicação do caso penal mais demorada; (iii) pode ser interpretado como sinal de desrespeito à pessoa do julgador.

A confecção do bom arrazoado persuasivo não é uma ciência, e sim uma arte aperfeiçoada ao longo de anos a fio de prática profissional zelosa. Nosso objetivo foi dúplice: louvar essa importante habilidade profissional, e ressaltar a importância de alto padrão de qualidade dos arrazoados para dignificar a advocacia.


1 KOLE, Janet. A brief guide to brief writing, pp. 03-11. Chicago: American Bar Association, 2013.

2 Na prática judiciária contemporânea há casos extremos: alegações finais defensivas de 1.643 páginas (13ª Vara Federal de Curitiba/PR, processo nº. 5021365-32.2017.4.04.7000), habeas corpus de 730 páginas (STJ, 6ª Turma, HC 495.350-SP, Rel. Min. Sebastião Reis) etc.

3 BROWN, Heidi. Breaking bad briefs, In: The Journal of the Legal Profession, v. 41, n. 02, pp. 259-300, 2016-2017; RICKS, Sarah; ISTVAN, Jane. Effective brief writing despite high volume practice: Ten misconceptions that result in bad briefs, In: University of Toledo Law Review, n. 38, pp. 1.113-1.135, 2007.

4 Essa é uma ótima oportunidade de formação profissional para os Advogados associados e estagiários, que podem começar trabalho de: (i) estudo dos autos do processo; (ii) pesquisa (doutrinária, legislativa e jurisprudencial); (iii) seleção dos argumentos de fato e direito; (iv) redação da minuta do arrazoado. Nessa fase inicial, o ideal é que o sócio não adiante os argumentos a serem usados, a fim de não influenciar o livre exercício da criatividade e pesquisa dos artífices da primeira minuta do arrazoado.

5 Para processos da Justiça Federal, recomendo a pesquisa integrada da página do Conselho da Justiça Federal (CJF): https://www2.cjf.jus.br/jurisprudencia/unificada/

6 Tome-se como exemplo o HC 92.921-BA, cuja ementa dá a entender que a 1ª Turma STF decidiu pelo cabimento de habeas corpus em favor de pessoa jurídica. Porém, a leitura do inteiro teor desse acórdão revela que, na verdade, o entendimento foi o contrário.

7 BEAZLEY, Mary Beth. Writing (and reading) appellate briefs in the digital age, In: The Journal of Appellate Practice and Process, v. 15, n. 01, pp. 47-76, 2014.

8 Pesquisa empírica com 355 Juízes Federais norte-americanos revelou que concisão e clareza são as duas características de arrazoados mais elogiadas por eles (ROBBINS-TISCIONE, Kristen Konrad. The inside scoop; What federal judges really think about the way lawyers write, In: The Journal of the Legal Writing Institute, n. 08, pp. 257-284, 2002).

9 Eis as famosas seis regras de Orwell: (i) nunca use uma metáfora, ou outra figura de linguagem, que você está acostumado a ler; (ii) nunca use uma palavra longa, onde uma curta funciona; (iii) se for possível cortar uma palavra, sempre a corte; (iv) nunca use a voz passiva, quando for possível usar a ativa; (v) nunca use frase estrangeira, palavra científica ou jargão, se você consegue pensar em um equivalente na língua inglesa cotidiana; (vi) quebre qualquer uma dessas regras, antes de dizer qualquer coisa completamente bárbara (ORWELL, George. Politics and the English language, In: The collected essays, journalism and letters of George Orwell, v. 04, pp. 127-140. New York: Harcourt, Brace & World, 1968).

10 VOLOKH, Eugene. Academic legal writing. 4th ed. New York: Foundation Press, 2010.

11 Sobre a crítica agressiva no meio acadêmico, Volokh aduz que ela é contraproducente porque: (i) aumenta o ônus de provar que o argumento do adversário é fraudulento ou irracional, alienando o leitor do seu ponto principal sobre a erronia desse argumento; (ii) revela o crítico como sendo um valentão (bully), do qual ninguém gosta; (iii) costuma esconder a falta de substância da crítica; (iv) há menor grau de tolerância quanto à crítica agressiva feita por profissional em começo de carreira; (v) não há necessidade de se fazer inimigos; (vi) há maior facilidade de se retratar da crítica educada, caso venha a ser provado que o crítico estava errado (VOLOKH, Eugene. Op. cit.).

12 Por exemplo: (i) a fonte em caixa alta, que significa dar grito com o leitor, jamais deve ser usada; (ii) o negrito, itálico e sublinhado jamais devem ser misturados, nem usados em excesso; (iii) o negrito tem preferência sobre o itálico e o sublinhado, pois estes reduzem a velocidade da leitura; (iv) as fontes proporcionalmente espaçadas são ideais, por serem mais fáceis de ler; (v) as citações em bloco cansam o leitor acostumado a linhas mais longas, por quebrarem seu ritmo de leitura etc. (ROBBINS, Ruth Anne. Painting with print: Incorporating concepts of typographic and layout design into the text of legal writing documents, In: Journal of the Association of Legal Writing Directors, n. 02, pp. 108-150, 2004).

13 STF, 2ª Turma, HC 157.627-PR, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 17.03.2020.

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