Tribuna da Defensoria

Acesso à Justiça é impactado pela vulnerabilidade digital

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23 de junho de 2020, 8h00

Na segunda metade do século XX, mais especificamente na década de setenta, era publicada a célebre obra Acesso à Justiça1, primeiro volume — correspondente ao relatório e introdução geral — dos estudos realizados no denominado Projeto de Florença. Ali já se observava que a justiça social, tal como almejada pela sociedade moderna, tinha como pressuposto o efetivo acesso. Evidenciava-se a dimensão social do processo, apontando-se os obstáculos a serem transpostos, assim como as soluções para os problemas identificados, através das famosas ondas renovatórias.

Desde então, a questão evoluiu. Novos impedimentos surgiram – ou foram identificados — e, consequentemente, foram revisitados os institutos colocados como instrumentos voltados à superação daqueles estorvos que dificultam ou impedem o efetivo acesso à justiça. Os textos do próprio Cappelletti podem exemplificar. Com efeito, no livro supramencionado, escrito em coautoria com Bryant Garth, a primeira onda renovatória refere-se à “assistência judiciária”2 aos pobres. Já na década de noventa, encontramos referência do autor à “assistência jurídica” gratuita3, termo mais amplo, que vai além do patrocínio em uma ação perante o Poder Judiciário.

No Brasil, a questão envolve os estudos acerca do conceito de necessitado, destinatário dos serviços prestados pela Defensoria Pública, instituição nacionalizada com o advento da Constituição Federal de 1988 e responsável pela efetivação do direito fundamental à assistência jurídica gratuita, corolário do princípio do acesso à justiça, segundo o modelo de pessoal assalariado (salaried staff model) adotado no país (conforme o artigo 134 da CF/88)4.

A experiência vivenciada por mais de três décadas, desde a constitucionalização institucional, evidenciou que o conceito de necessitado, no início fortemente atrelado à carência econômica, também mereceu ser revisitado, o que ficou a cargo da doutrina e da jurisprudência, em razão de tratar-se de conceito jurídico aberto, que não encontra definição precisa na norma escrita. Foi feliz o constituinte, neste ponto, ao permitir que o a expressão acompanhe as mudanças sociais, cada vez mais céleres e abruptas, sendo constantemente atualizado para atender às demandas de um país periférico, de modernidade tardia, onde o Estado Social (Democrático) de Direito ainda não atingiu os patamares minimamente desejáveis5.

Não demorou até se perceber que ao lado dos necessitados tradicionais, que eram — e ainda são — os carentes econômicos, acrescentam-se outros, identificados, já na década de noventa, pela professora Ada Pellegrine Grinover, ao referir-se aos carentes de recursos jurídicos, fazendo referência à Mauro Cappelleti, quando se refere aos carentes organizacionais, pessoas que apresentam uma particular vulnerabilidade em face das relações socio-jurídicas existentes na sociedade contemporânea6. Não é difícil notar que a “insuficiência de recursos” – expressão usada no inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal para caracterizar aquele que faz jus à assistência jurídica gratuita – não se resume aos recursos financeiros, senão seja gênero do qual a última é espécie.

Mais modernamente, aponta-se a íntima relação entre o conceito de necessitado e a vulnerabilidade do indivíduo7. Sendo a vulnerabilidade decorrência de um fato ou contingência social, sua identificação ocorre diante do caso concreto, mediante a análise dos fatores determinantes da vulnerabilidade8, quem podem representar sério obstáculo ao acesso à justiça, quando, então, estará configurada a necessidade para fins de assistência jurídica gratuita9.

A vulnerabilidade digital, também denominada tecnológica10, evidenciou-se durante a pandemia causada pela disseminação da Covid-19. No Brasil, o governo federal, ao estabelecer benefício assistencial destinado às pessoas que tiveram sua renda comprometida no período e se enquadrem nos demais critérios econômicos estabelecidos, vinculou o recebimento à necessidade do beneficiário possuir aparelho celular e endereço de e-mail, baixar aplicativo do programa e receber mensagem via SMS (serviço de mensagens curtas) para acioná-lo, o que gerou graves empecilhos de acesso ao direito por parte de grupos vulneráveis e levou a Defensoria Pública a ajuizar Ação Civil Pública visando superar tais exigências.

Mesmo antes da dispersão vírus, a questão já era abordada, conforme transcreve-se a seguir:

Mais modernamente, tem-se identificado novas espécies, a exemplo vulnerabilidade digital, que engloba tanto o modo analógico (off-line) – a exemplo da coleta de dados em estabelecimentos comerciais – como o modo digital (on-line ou cibervulnerabilidade) – quando, por exemplo, há coleta de dados através do uso de smartphones. A vulnerabilidade digital tem sido objeto de debate entre defensores públicos de todo o país através de grupo de aplicativo de comunicação (WhatsApp). Em diálogo ali estabelecido, os defensores públicos Roger Feichas e Bheron Rocha observaram que este possivelmente será o novo desafio da Defensoria Pública, principalmente no que diz respeito aos dados sensíveis previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018)11.

Enquanto para muitos de nós entrar em ambientes virtuais se tornou parte da rotina, o período de isolamento fez também mais visível a vulnerabilidade digital. No tocante ao acesso à justiça, outro exemplo que pode ser citado ocorreu em caso envolvendo indígenas da Laranjeira Ñanderu, que, por não compreenderem e não conseguirem acompanhar a realização de julgamento em ambiente eletrônico, solicitaram que fosse assegurado o direito de verem reunidos, fisicamente, os Desembargadores Federais em Plenário, permitindo que suas lideranças pudessem assistir ao julgamento, na cidade de São Paulo, o que levou a Defensoria Pública a intervir nos autos, na qualidade de custos vulnerabilis, sendo o pedido (de intervenção e para a suspensão da audiência) acolhido pelo Tribunal Regional Federal da Terceira Região (processo n. 5029327-50.2018.4.03.0000).

Como fica cada vez mais claro, a tecnologia gera uma nova categoria de vulneráveis e impacta no acesso à justiça. Os obstáculos identificados no século XX, assim com as ondas de superação, já não são mais os mesmos12. A velocidade com que as mudanças ocorrem jamais foram experimentadas — o que nos permite falar, até mesmo, em uma espécie de vulnerabilidade líquida, parafraseando Zygmunt Balman13 — e reforçam a ideia de que a análise deve ser realizada a partir de cada caso posto, levando em conta fatores econômicos, socais, culturais, territoriais, transitórios, de pertencimento a grupos minoritários etc. O sistema de justiça não parece estar preparado para enfrentar este desafio pós-moderno. Medidas devem ser adotadas de forma imediata, o que demandará tempo (por mais contraditório que isto possa parecer) e aportes financeiros, ambos escassos no atual cenário.


1 CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Brian. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Grace. Porto Alegre: Sérgio Fabbri, 1988.

2 É isto que consta na tradução brasileira: CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Brian. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Grace. Porto Alegre: Sérgio Fabbri, 1988. p. 31.

3 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 84.

4 Sobre os modelos de assistência jurídica ver: ALVES, Cleber Francisco Alves. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, França e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

5 Neste sentido, constatando que o Brasil é um país de modernidade tardia: SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais entre proibição de retrocesso e avanço do poder judiciário? Contributo para uma discussão. In NETTO, Luísa Cristina Pinto; BITENCOURT NETO, Eurico (Coord.) Direito administrativo e direitos fundamentais: diálogos necessários. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 175-214.

6 GRINOVER, Ada Pellegrini. Acesso à justiça e o Código de Defesa do Consumidor. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 116-117.

7 Por todos, ver: GONÇALVES FILHO, Edilson; MAIA, Maurílio Casas; ROCHA, Jorge Bheron. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.

8 O modelo de fatores determinantes de vulnerabilidade foi melhor desenvolvido em: GONÇALVES FILHO, Edilson. Defensoria Pública e a tutela coletiva dos direitos: teoria e prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 187

9 Buscando catalogar os diversos tipos de vulnerabilidade: ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da defensoria pública. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 303-. No nosso entender, trata-se de enumeração não exaustiva.

10 Esta última expressão foi usada, dentre outros, por Fernanda Tartuce, em transmissão realizada via Instagram, disponível nas publicações deste autor naquela plataforma.

11 GONÇALVES FILHO, Edilson. Defensoria Pública e a tutela coletiva dos direitos: teoria e prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 184.

12 Neste aspecto, é digno de nota o projeto de Global Access to Justice, que busca atualizar os estudos sobre o acesso à justiça realizados pelo Projeto de Florença, em escala mundial.

13 BAUMAN, Zygmunt. Plínio Dentzien (trad.). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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