Consultor Jurídico

Ilegalidade do julgamento telepresencial por ausência de publicidade

23 de junho de 2020, 8h00

Por José Rogério Cruz e Tucci

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O artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, consagra, ao lado do dever de motivação dos atos jurisdicionais, o princípio da publicidade dos julgamentos: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

A publicidade é inserida, pela moderna doutrina processual, na órbita dos direitos fundamentais do cidadão, como pressuposto do direito de defesa e de imparcialidade e independência do juiz. Constitui ela, pois, um imperativo de conotação política, introduzido, nos textos legislativos contemporâneos, pela ideologia liberal, como verdadeiro instrumento de controle da atividade dos órgãos jurisdicionais.

A garantia em tela justifica-se na exigência de evitar a desconfiança popular na administração da justiça, até porque a publicidade consiste num mecanismo retórico apto a diagnosticar a falibilidade humana dos juízes.

Tendo-se presente a dimensão de seu significado jurídico-político, desponta, na atualidade, a necessidade de controle (extraprocessual) “generalizado” e “difuso” sobre o modus operandi dos tribunais no tocante à administração da justiça.

No que concerne à garantia da publicidade, verifica-se, de logo, que o vigente Código de Processo Civil, além de se manter fiel aos dogmas clássicos do processo republicano, assegura, como regra, nos artigos 11 e 189 a publicidade absoluta ou externa, mostrando considerável aperfeiçoamento em relação à antiga legislação.

Esclareça-se que publicidade absoluta ou externa é aquela que autoriza o acesso, na realização dos respectivos atos processuais, não só das partes, mas ainda do público em geral; publicidade restrita ou interna, pelo contrário, é aquela na qual alguns ou todos os atos se realizam apenas perante as pessoas diretamente interessadas e seus respectivos procuradores judiciais, ou, ainda, somente com a presença destes (chamado segredo de justiça).

Em primeiro lugar, como norma de caráter geral, praticamente repetindo o mandamento constitucional, dispõe o caput do artigo 189 do diploma processual que: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

A exceção vem preconizada no respectivo parágrafo único do artigo 11, bem como nos incisos do referido artigo 189.

Acrescente-se, outrossim, que no capítulo “Da Audiência de Instrução e Julgamento”, o artigo 368 do Código de Processo Civil, de forma incisiva (e até redundante), preceitua que: “A audiência será pública, ressalvadas as exceções legais”.

Assim sendo, salvo as exceções previstas na lei processual, o julgamento despido de publicidade irrompe viciado por flagrante ofensa ao princípio do devido processo legal.

Não obstante, mesmo antes do necessário distanciamento social sugerido pela Organização Mundial de Saúde, o julgamento em ambiente virtual intra muros, em nossa experiência jurídica, já havia sido implantado, a partir de prática instituída há considerável tempo pelo Supremo Tribunal Federal, por meio de adequada regulamentação. É certo que nos tribunais, para ser efetivada essa modalidade de julgamento colegiado, caracterizado pela ausência de publicidade, exige-se, ope legis, prévia concordância das partes. Nessa hipótese, embora postergada a publicidade do julgamento, dúvida não há de que a nulidade fica superada pelo interesse preferencial dos litigantes, manifestado de forma expressa ou tácita, em prol da duração razoável do processo (v., a propósito, Tucci, Em defesa da constitucionalidade do julgamento colegiado virtual, na obra coletiva recém publicada Impactos jurídicos e econômicos da Covid-19, coord. por Modesto Carvalhosa e Fernando Kuyven, São Paulo, Ed. RT, 2020).

Saliente-se, contudo, que em busca de adaptação como resposta à duradoura crise da pandemia do coronavírus, os tribunais de norte a sul do Brasil, com alicerce no artigo 937, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, e com providencial apoio do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, conseguiram pautar recursos em sessões telepresenciais, por meio de inúmeras plataformas digitais, respeitando-se as prerrogativas profissionais, visto que admitida a intervenção dos advogados que pretendem fazer sustentação oral. Desse modo, primeiramente o Supremo Tribunal Federal, seguido, já em abril, pelo Superior Tribunal de Justiça, e, em imediata sequência, pelos tribunais estaduais, em particular, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, apressaram-se em providenciar a introdução dessa espécie de julgamento à distância, denominado telepresencial.

Cumpre-me esclarecer que tal prática foi também instituída, no mesmo mês de maio passado, pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, como noticiei em coluna aqui publicada (Tradição da Suprema Corte dos EUA é quebrada pela Covid-19, 19.05.2020), e, outrossim, pelas cortes de justiça da Alemanha, da França e da Inglaterra, mantendo-se a publicidade, seja por disponibilização de áudio (EUA), seja pela possibilidade de qualquer interessado acessar o endereço eletrônico para assistir à sessão da respectiva turma julgadora. Foi desse modo que eu mesmo pude acompanhar a primeira sessão telepresencial da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, aberta ao público, ocorrida no dia 28 de abril p. passado, então presidida pelo ministro Moura Ribeiro.

Não é preciso dizer que, a despeito dessa nova modalidade de julgamento à distância, por meio de videoconferência, descortinar-se excepcional, é evidente que não podem ser postergados os princípios que regem os julgamentos em grau recursal, em especial, a publicidade.

Observe-se de passagem que essa inarredável premissa se impõe igualmente nas sessões públicas de certames acadêmicos no âmbito da Universidade de São Paulo. Com efeito, qualquer interessado, em tempos de pandemia, tem a possibilidade de acompanhar uma defesa de tese de doutorado ou de dissertação de mestrado, realizada por videoconferência, bastando que a acesse pelo link eletrônico previamente disponibilizado.

Embora reconhecendo-se todo o esforço do Tribunal de Justiça de São Paulo, mormente pelo significativo números de sessões semanais, visando a implementar julgamentos telepresenciais, fui informado, por vários colegas da advocacia, que, apesar de ser autorizada a participação do advogado para sustentar oralmente (aliás, como eu mesmo verifiquei, ao sustentar, no dia 16.06 passado, perante a 31ª Câmara de Direito Privado), não se tem admitido que interessados, advogados e/ou partes, possam assistir ao julgamento.

Ora, se isso de fato corresponder à realidade, diferentemente do que ocorre na esfera do julgamento virtual, que tem regulamentação própria, não tenho dúvida em afirmar que o respectivo acórdão poderá estar eivado de vício, uma vez que prolatado em cenário de inequívoco segredo, violando à toda evidência o disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição da República.

Certifiquei-me, a propósito, que a plataforma digital teams da Microsoft, que tem sido utilizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, permite que a sessão de julgamento seja disponibilizada coram populo, vale dizer, a qualquer interessado em assisti-la, sem que possa haver indesejada interferência externa durante toda a sessão. Basta que o organizador da sessão ative o pedido de ingresso de quem acessar o link, que deve ser previamente disponibilizado, quando da publicação da pauta de julgamento.

Aliás, com o precípuo fim de colaborar com o aperfeiçoamento dessa nova forma de julgamento, quando o advogado que se inscreveu para sustentar receber o link do cartório, permito-me sugerir que, para evitar longa espera à frente da tela (às vezes por mais de 2 horas), não custaria nada à serventia apontar ao advogado qual é o número de sua inscrição para a sustentação.

Tendo-se presente que o julgamento colegiado de segundo grau é ato dos mais importantes da prestação jurisdicional, a garantia da publicidade deve ser preservada a qualquer custo, sob pena de nulidade absoluta do processo!