Opinião

A penhora online em um Judiciário alheio à crise

Autor

  • Marcello Antonio Fiore

    é sócio-diretor da Fiore Advogados vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP graduado em Direito pela PUC-SP pós-graduado em Direito Econômico e Financeiro pela PUC-SP pós-graduado em Business Administration pela Harvard Business School e pós-graduando em Filosofia do Direito pela Harvard University.

23 de junho de 2020, 6h33

Há poucos dias noticiou-se que a Justiça, o Banco Central e a Fazenda Nacional irão lançar uma nova plataforma denominada Sisbajud em substituição ao hoje operacional Bacenjud com o intuito de "resolver problemas de funcionalidade e liberação de valores" oriundos de arresto. Contudo, os envolvidos não encaram o problema real da origem da penhora online e concentram-se apenas na funcionalidade da ferramenta.

A filosofia do direito de Jeremy Bentham ensina que na aplicação da lei a coisa certa a fazer, individual ou coletivamente, é maximizar o nível geral de distribuição de justiça. Fazer o maior bem para o maior número de pessoas possível.

Porém, boa parte do poder judiciário, detrás da mesa, trancado em casa, com soldo intocado, alheio à crise que assola empregados e empregadores, parece ter se esquecido das aulas básicas de filosofia do direito, tornando-se autômatos frios que já não discernem entre a lei e a justiça.

A lição de Juan Couture foi olvidada por boa parte daqueles que, na academia, juravam lutar pelo Direito, mas se um dia encontrassem o Direito em conflito com a Justiça, escolheriam a Justiça. Alguns tecno burocratas de plantão, ignorando da instabilidade econômica, estão se esculpindo protagonistas do naufrágio do quadro econômico e social do país, aplicando cegamente a lei — e a ferramenta — sem cogitar a realidade porta afora.

É usual trombar com decisões determinando a penhora online e o arresto de valores das contas de empresas e empresários, acreditando que este é um "ótimo momento" para privar a companhia e/ou os sócios do pouco dinheiro que possuem para enfrentar a necessidade de pagamento de salários sem geração de receita ou a mesa vazia nas próprias casas.

Será que antes de ativar o arresto ponderam se é justo e digno que se subtraia valores da conta da empresa que se encontra com atividades suspensas e sem faturamento para satisfazer anseios de bancos, do fisco ou de grandes corporações que não estarão sujeitas a falir nesse momento?

Será que acreditam ser virtuoso subtrair os poucos valores da conta do sócio que não possui nenhuma renda para subsistência digna, já que ele não é alcançado por nenhuma medida de suporte governamental, lutando diuturnamente para pagar suas despesas pessoais básicas e para se manter empreendendo no Brasil?

Colocam-se no lugar do devedor e se perguntam por que aquela situação está ocorrendo, ou o motivo da inadimplência não os interessa, pois o judiciário se tornou uma máquina de apertar botões sem se preocupar com o efeito social de suas ações?

É certo que existem alguns devedores contumazes, mas não é justo tratar qualquer devedor em dificuldade, especialmente em tempos de crise severa, como criminoso convicto sem direito a defesa. Nem todo devedor está inadimplente porque deseja o ferrete idêntico àqueles usados na corte de Luiz 13 para marcar os desonrados. A grande maioria luta com seriedade e não é justo generalizar a má intenção.

Está faltando bom senso na aplicação da lei quando um juiz, alheio a todas as dificuldades daqueles que compõem a livre iniciativa — protegida no artigo primeiro da Constituição Federal — determina a constrição de valores da conta dos nitidamente menos favorecidos a favor de instituições financeiras, do fisco ou grandes corporações que experimentaram lucratividade grotesca nos últimos anos, quando existem muitos outros meios de garantia e satisfação da suposta dívida.

Para reparar com urgência essa ordem absurda que impõe dificuldade de sobrevivência à empresa e ao empresário, é que se deverá lembrar dos ensinamentos de Benthan e Couture, bem como da necessidade de interpretação da lei objetivando seus fins sociais como sintetiza o artigo 5º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro.

O judiciário absorto precisa acordar e assumir a sua quota de responsabilidade em distribuir a justiça e não a letra fria da lei a casos que fogem ao cotidiano dos tempos normais. Necessita focar na manutenção da atividade da empresa, do emprego de seus trabalhadores, e dos interesses dos credores conforme urgência pontual, que deve ser verificada antes da concessão de qualquer ordem que possa prejudicar a vida das pessoas físicas e jurídicas envolvidas no processo.

Hão de ser analisados, no mínimo superficialmente, os casos em que a penhora efetivamente é aplicável para não agir com o tique da ação repetitiva de Chaplin em Tempos Modernos, fazendo o mesmo movimento sem olhar para o mundo que está fora da janela.

Não se prega obviamente a suspensão completa e irracional de qualquer ordem de penhora online. O que se roga, pela falta absoluta de realidade de parte do judiciário, é que num processo em que um banco, o fisco ou grandes corporações figuram como cobradores, não se imponha ainda mais dificuldade a quem está morrendo, quando a própria lei garante a cobrança por meios menos contundentes (artigo 620 do Código de Processo Civil).

Num famoso caso de filosofia do direito um motorista em alta velocidade poderia escolher entre atropelar e matar cinco trabalhadores que estavam em uma estrada, ou desviar e aleijar seriamente apenas um que estava no acostamento. Nenhuma escolha parece boa o suficiente, mas entre uma e outra, devemos escolher fazer o bem para o maior número de pessoas possível. É isso que se espera do judiciário no momento de crise.

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    é sócio-diretor da Fiore Advogados, vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP, graduado em Direito pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Econômico e Financeiro pela PUC-SP, pós-graduado em Business Administration pela Harvard Business School e pós-graduando em Filosofia do Direito pela Harvard University.

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