Academia de polícia

Infiltração Policial: entre ampliações normativas e desconfianças constitucionais

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

23 de junho de 2020, 9h43

Spacca
A infiltração (tradicional) de agentes,1 conforme destacado em nosso Manual de Inquérito Policial,2 representa mais um método oculto (e polêmico)3 de investigação criminal, bastante em voga nas atuais metodologias de segurança pública e instrução processual penal, especialmente no contexto da chamada “criminalidade organizada”.

Ocorre, no entanto, que essa técnica de busca por fontes informativas ou probatórias, assim como os demais instrumentos extraordinários de investigação, traz consigo, além de problemas éticos e consideráveis riscos à integridade física e psicológica do agente infiltrado, limitações a inúmeros direitos fundamentais como a intimidade, a inviolabilidade domiciliar e o sigilo das comunicações não só dos investigados4 como também de terceiros.

Daí a necessidade, segundo o Min. Rogério Schietti, “de que essas novas formas de investigação passem pelo filtro de ponderação frente aos direitos fundamentais, mesmo porque é de difícil sustentação ética o recurso estatal a meios tão invasivos”, em que, como o ora analisado, “a ação de agente público se desenvolve com o recurso ao engodo, à dissimulação e à mentira”.5

A infiltração (presencial) de agentes, assim entendida aquela realizada mediante contato direto (ou seja: em espaço físico), foi inicialmente vetada quando da edição da Lei n. 9.034/1995. O inciso vetado dispensava autorização judicial e excluía antecipadamente o caráter antijurídico das condutas praticadas pelo agente infiltrado,6 o que foi considerado pelo Presidente da República à época contrário ao interesse público.7

No ano de 2001, por ocasião da promulgação da Lei n. 10.217, o instituto foi incorporado à então “Lei de Crime Organizado” (Lei n. 9.034/1995), porém sob nova redação, que mencionava, dentre outras coisas, a necessidade de autorização judicial circunstanciada.8

Um dos aspectos controvertidos dessa previsão normativa ficou por conta da inclusão de “agentes de inteligência” no contexto das investigações criminais ocultas por infiltração. O que gerou bastante polêmica na doutrina9 e jurisprudência10, inclusive quanto à sua (in)constitucionalidade.

A Lei n. 10.409/2002, que tratava, dentre outras coisas, de medidas relacionadas ao controle e à repressão ao tráfico de drogas, também previa a infiltração de agentes, restrita, contudo, às agências policiais em atividades de investigação criminal.11 O que mantido em sua atual referência na Lei de Drogas (art. 53, I, da Lei n. 11.343/2006).12

Em 2013, com a publicação da Lei n. 12.850, que revogou a antiga legislação de “crime organizado” (Lei n. 9.034/1995), a infiltração por policiais13 em atividade de investigação14 ganhou disciplina mais específica para além de simples menções normativas conforme se depreende dos artigos 3º, inciso VII, bem como 10 a 14 da citada legislação.

Não custa lembrar que essa técnica especial de investigação já constava em diplomas internacionais reconhecidos pelo Brasil nas áreas de criminalidade organizada transnacional (art. 20 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – Decreto nº 5.015/200415) e de corrupção (art. 50 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – Decreto nº 5.687/200616).

O agente infiltrado, conforme Marllon Sousa, “pode ser definido como o servidor público, concursado, diretamente ligado aos órgãos de investigação policial (Polícias Civil e Federal), pertencente aos quadros da carreira de agente de investigação, previamente selecionado e treinado para ser infiltrado em organizações criminosas, cujo escopo é angariar provas necessárias para o desmantelamento das atividades ilícitas e a consequente atribuição de responsabilidade criminal aos autores de delitos cometidos por meio do grupo criminoso”.17

Não se confunde, portanto, com o informante (aquele que, sem pertencer aos órgãos de segurança ou agências de persecução penal, colabora, normalmente de forma anônima, com o esclarecimento da notícia-crime mediante o fornecimento de dados sobre a materialidade e/ou autoria), com o delator (aquele que, integrando determinada associação ou organização criminosa, além de confessar a sua participação delitiva, colabora com as agências estatais para o esclarecimento do fato, recuperação do produto do crime ou identificação de coautores ou partícipes em troca de algum benefício penal e/ou processual penal) ou mesmo com o agente provocador (aquele servidor público, em geral de carreira policial, que instiga terceiro à prática delitiva com o objeto de flagrar sua empreitada criminosa e submetê-lo ao sistema de persecução penal).18

Vale lembrar que a admissibilidade da infiltração policial, restrita incialmente aos crimes praticados por organizações criminosas (art. 10, § 3º, da Lei n. 12.850/2013), acabou estendida a outras espécies delitivas por modificações legislativas posteriores. Nesse sentido, a partir de 2016, passou a ser cabível às hipóteses de terrorismo (art. 16 da Lei n. 13.260/2016), bem como, desde 2020, quando entrou em vigor a Lei n. 13.964/2019, também ao campo da lavagem de dinheiro (art. 1º, § 6º, da Lei n. 9.613/1998).

Por fim, nos limites estreitos desta coluna, impende mencionar que, dentre os inúmeros requisitos legais estabelecidos para a autorização judicial dessa medida extrema (e absolutamente controvertida19), forçosa a comprovação de sua indispensabilidade para a regular instrução do caso penal.

Segundo Tavares e Casara, “há aqui a necessidade de um duplo controle do requisito da ‘imprescindibilidade’: tanto no momento da autorização da operação de infiltração (controle prévio sobre a imprescindibilidade da operação) quanto no momento da admissão da prova pelo juiz da causa (controle posterior sobre a imprescindibilidade da prova)”.20

Nesse sentido, oportuno sempre lembrar que, ao menos em um Estado de Direito, não há lugar para engodos retóricos ou cláusulas discursivas abertas como “fundamento” (simulado) à implementação de métodos extraordinários de busca por fontes de prova; a comprovação fática quanto à “absoluta necessidade da medida”21 constitui exigência do devido processo legal.


1 Há outra modalidade de infiltração policial, denominada por alguns de “virtual” ou “cibernética”, inserida no ordenamento brasileiro por ocasião da Lei n. 13.441/2017 e posteriormente ampliada ao contexto das organizações criminosas pela Lei n. 13.964/2019, que não será objeto desta coluna.

2 MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 211-213.

3 Conforme Stefan Braun, “uma ideia tão sublime como a do processo penal, que pressupõe reconhecer os homens como indivíduos livres, retrocede em face do ridículo de uma desafortunada paródia a James Bond (…) Com a investigação encoberta o ordenamento processual penal (StPO) transmite uma sensação de falta de seriedade e a situação é muito séria para ser descrita com esse sarcasmo” (BRAUM, Stefan. La Investigación Encubierta como Característica del Proceso Penal Autoritário. In: ROMEO CASABONA, Carlos María (Org.). La Insostenible Situación del Derecho Penal. Granada: Comares, 2000, p. 04).

4 “Desde el punto de vista estrictamente procesal, la actividad del agente encubierto afecta gravemente a distintos derechos fundamentales de las personas investigadas. No solamente significa una injerencia continuada en su vida privada, atentado contra el derecho a la intimidad, sino que también determina restricciones de su derecho de defensa, tanto durante la instrucción como durante el juicio oral (DELGADO MARTÍN, Joaquín. El proceso penal ante la criminalidad organizada. El agente encubierto. In: PICÓ I JUNOY, Joan (org.). Problemas actuales de la Justicia Penal. Barcelona: J.M. Bosch, 2001, p. 101).

5 STJ – Sexta Turma – RHC 57.023/RJ – Voto Vencido Min. Rogério Schieti Cruz – j. em 08.08.2017 – DJe de 16.08.2017.

6 Texto Vetado. Lei n. 9.034/1995. Art. 2º……….. “I – a infiltração de agentes de polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer coparticipação delituosa, exceção feita ao disposto no art. 288 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, de cuja ação se pré-excluí, no caso, a antijuridicidade”.

7 Mensagem de Veto n. 483, de 03 de maio de 1995: “(…)O inciso I do art. 2º, nos termos em que foi aprovado, contraria o interesse público, uma vez que permite que o agente policial, independentemente de autorização do Poder Judiciário, se infiltre em quadrilhas ou bandos para a investigação de crime organizado. Essa redação, como se pode observar, difere da original, fruto dos estados elaborados por uma subcomissão, presidida pelo Deputado Miro Teixeira, que tinha como relator o Deputado Michel Temer, criada no âmbito do Comissão de Constituição e Justiça e Redação, que, de forma mais apropriada, condicionava a infiltração de agentes de polícia especializada em organização criminosa à prévia autorização judicial. Além do mais, deve-se salientar que o dispositivo em exame concede expressa autorização legal para que o agente infiltrado cometa crime, pré-excluída, no caso, a antijuridicidade, o que afronta os princípios adotados pela sistemática do Código Penal”.

8 Lei n. 9.034/1995. Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: (…) V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial

9 Nesse sentido, a posição de Flávio Pereira: “Discordamos do legislador brasileiro, ao permitir que agentes de inteligência possam se infiltrar em organizações criminosas para os fins previstos na Lei 9.034/1995, vez que estaria sendo desvirtuado o labor daqueles, cujo objetivo precípuo é o de busca de informações tendentes à manutenção da ordem e da segurança nacional no caso do agente da Abin ou outros fins diversos, como no caso de um agente de inteligência da Receita Federal, e não de informações e provas a serem úteis à eventual persecução penal. Não se pode confundir inteligência de Estado com inteligência criminal, vez que os objetivos destes métodos de obtenção de dados e informações são diametralmente opostos” (PEREIRA, Flávio Cardoso. A Moderna Investigação Criminal: infiltrações policiais, entregas controladas e vigiadas, equipes conjuntas de investigação e provas periciais de inteligência. In: CUNHA, Rogério Sanches; GOMES, Luiz Flávio; TAQUES, Pedro. Limites Constitucionais da Investigação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 115-116).

10 STJ – Quinta Turma – HC 149.250/SP – Rel. Min. Adilson Vieira Macabu (Des. Conv. TJ/RJ) – j. em 07.06.2011 – DJe de 05.09.2011.

11 Lei n. 10.409/2002. Art. 33. “Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos na Lei n. 9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios: I – infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações”.

12 Lei n. 11.343/06. Art. 53. “Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios: I – a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes”.

13 “(..) a ação infiltrada poderá ser executada exclusivamente por agente de polícia, não mais por agentes do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin)” (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 02 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014, p. 560). No mesmo sentido: GOMES, Luiz Flávio; DA SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações Criminais e Técnicas Especiais de Investigação: questões controvertidas, aspectos teóricos e práticos e análise da lei 12.850/2013. Salvador: Juspodium, 2015, p. 392.

14 Segundo Adrino Bini, apenas estariam autorizados a empregar essa metodologia investigativa especial os órgãos da polícia civil e federal (BINI, Adriano Krul. O Agente Infiltrado: perspectivas para a investigação criminal na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em Ciências Policiais) – Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna – ISCPSI, Lisboa, 2017, p. 108).

15 Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – Decreto nº 5.015/2004. Artigo 20. “Técnicas especiais de investigação. 1. Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada”.

16 Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – Decreto nº 5.687/2006. Artigo 50. “Técnicas especiais de investigação. 1. A fim de combater eficazmente a corrupção, cada Estado Parte, na medida em que lhe permitam os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno e conforme às condições prescritas por sua legislação interna, adotará as medidas que sejam necessárias, dentro de suas possibilidades, para prever o adequado recurso, por suas autoridades competentes em seu território, à entrega vigiada e, quando considerar apropriado, a outras técnicas especiais de investigação como a vigilância eletrônica ou de outras índoles e as operações secretas, assim como para permitir a admissibilidade das provas derivadas dessas técnicas em seus tribunais”.

17 SOUSA, Marllon. Crime Organizado e Infiltração Policial – parâmetros para a validação da prova colhida no combate às organizações criminosas. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 135-136.

18 MOSCATO DE SANTAMARIA, Claudia B.. El Agente Encubierto en un Estado de Derecho. Tesis (Doctorado en Derecho Penal y Ciencias Penales) – Universidad del Salvador, Buenos Aires, 2000, p. 14-16.

19 Alexis Couto de Brito é enfático na crítica: “(…) as desvantagens decorrentes do agente infiltrado são muito maiores que as possíveis vantagens, o que, por si só, deslegitima a atuação do Estado neste sentido (…) a existência de outros institutos tão eficazes quanto a infiltração corrobora para sua não aplicação, e servem de lápide a um instituto que, cada vez mais, vem sendo sepultado pela dogmática internacional” (BRITO, Alexis Couto de. Agente Infiltrado: Dogmática Penal e Repercussão Processual. In: MESSA, Ana Flávia; CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães (Org.). Crime Organizado. 02 ed. São Paulo: Almedina, 2020, p. 264).

20 CASARA, Rubens; TAVARES, Juarez. Prova e Verdade. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 77.

21 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Estudos Críticos sobre o Processo Penal Brasileiro e Outros Ensaios. v. 4. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 50.

Autores

  • é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

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