Público x privado

12 homens e o julgamento: a arte explica a vida

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22 de junho de 2020, 13h44

Sempre achei que a literatura e a ficção são as melhores formas de entender a realidade. Para além do debate dos fatos, na ficção podemos dar maior vazão às potencialidades da imaginação e testar as diversas possibilidades do ser humano. Particularmente, o cinema é rico em buscar os limites e as possibilidades que nos permeiam.

Spacca" data-GUID="luiz-inacio-adams-spacca1.png">Uma das obras cinematográficas mais significativas a tratar da institucionalidade judicial é o filme 12 Homens e uma Sentença (12 Angry Men), de 1957, baseado em uma peça para a televisão, dirigido por Sindney Lumet, estrelando Henry Fonda no papel principal. O filme teve uma segunda versão em 1997, com Jack Lemon no papel principal e com o intenso George C. Scott,  que, em certos aspectos, supera versão original. A história, que os americanos denominam de "courtroom drama" (drama de tribunal) desenvolve-se no julgamento de um rapaz de 18 anos, de origem latina, que fora acusado de matar o próprio pai.

O filme inicia na sala de julgamento, em que o Juiz que conduz o caso orienta os 12 jurados antes de irem à sala reservada na qual deliberarão sobre o caso. Imediatamente o filme passa para a sala na qual os doze homens permanecerão durante o decorrer do filme até o veredito final.

Já no início os jurados discutem o caso como de rápida solução e o 1º jurado (nenhum deles se identificada pelo nome pessoal, apenas pela posição no Júri) organiza a votação. E aqui ocorre a primeira surpresa: um dos jurados se posiciona pela inocência do jovem acusado. Este voto isolado gera um verdadeiro impasse, já que, como decorrência da presunção de inocência e forma de garantir que o a decisão seja tomada para além de qualquer dúvida razoável, o júri tem que ser unânime. No caso em particular a exigência é mais imperiosa já que o crime de assassinato é punido com a pena capital.

Não quero narrar todo o filme que traz um drama rico e denso em que cada um dos jurados revela no julgamento as suas paixões, convicções e prioridades. Cada ser humano é apresentado em um universo complexo de realidades e perspectivas que faz com que percebamos o quanto é arriscado o ato de julgar outro ser humano. Todavia, também está presente um ator invisível e persistente, que é revelador e regulador destas ambivalências das paixões humanas, que pulam do puro preconceito à nobre dignidade:  o sistema jurídico institucional.

Dúvida razoável, presunção de inocência, contraditório e ampla defesa, são atores invisíveis neste drama que consegue, de maneira inigualável, representar a realidade das nossas cortes. É um drama humano, da mesma forma que a justiça é profundamente humana e falível. Drama que se intensifica quando a justiça deixa de ser uma meta daqueles que devem aplicá-la.

O filme é universal porque nos permite compreender outras realidades, incluindo a brasileira, na aplicação da Justiça. Vamos encontrar no ambiente do Estado todos as facetas humanas presentes no filme: a heroica, a preconceituosa, a amargurada, a indiferente, a mais preocupada com o jogo de futebol do que a Justiça. No caso do Brasil, tudo isto é comprimido em um sistema burocrático que Arnaldo Godoy, comentando o sempre atual livro de Lima Barreto Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, nos alerta para como um assassino de talentos.

Em vários aspectos, vamos encontrar os mesmos personagens no Brasil, com um diferencial: a realidade burocrática torna amorfa todo senso de justiça e qualquer escolha que destoa disso é rejeitada e muitas vezes punida.

Mas o que nos é apresentado pela obra cinematográfica é  que as garantias constitucionais, que são parâmetros de defesa do cidadão em face do monopólio da força estatal, devem ser vividas para serem efetivas. Não basta a norma existir no papel para que capaz de estabelecer garantias se elas não são vividas por aqueles que ela deve proteger.

O sistema burocrático, deixado própria sorte, amortece e neutraliza o poder libertador e protetor da Constituição. Não existisse o Jurado 8, seja Henry Fonda, seja Jack Lemon, a condenação de pena de morte seria aplicada e a discussão da dúvida razoável sequer existiria. Neste sentido, importantíssimo o alerta contra a  resposta conformista da burocracia tradicional ,  algo que Hanna Arendt já alerta, em Eichmann em Jerusalém, 1963, por servir à banalização  do mal. Da mesma forma, Steven Levitsky & Daniel Ziblatt mostram como as democracias são solapadas por um sistema meramente formal em um simulacro de participação da sociedade (Como as Democracias Morrem, 2018).

A importância das garantias constitucionais, fruto de séculos de conquistas civilizatórias, a importância de que elas não sejam apenas normas escritas, mas vividas no dia a dia dos tribunais. Deixar a lógica conformista da burocracia dominar é eliminar estas mesmas conquistas, matando os talentos que devem sustenta-las. Felizmente, como nos mostra o enredo do filme 12 Homens e uma Sentença, uma pessoa homem dedicada  é capaz de tornar estas conquistas vivas.

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