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Solidariedade e vulnerabilidade coletiva: desvitimização e prevenção à violência

Autor

  • Celeste Leite dos Santos

    é promotora de Justiça idealizadora do Memorial Avarc em memória às Vítimas da Covid-19 coordenadora do grupo de trabalho do projeto de lei do Estatuto da Vítima e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.

22 de junho de 2020, 10h23

O Projeto Mente Saudável visa instituir modelo Interinstitucional e Social de Atuação com membros do Ministério Publico, Policia Civil, Policia Militar, Forças Internacionais da Paz, profissionais da área da advocacia, jornalismo e da saúde (medicina, enfermagem, psicologia, assistência social), empresários (Yescom, Cwist, Tamoio), organizações não governamentais (Movimento do Ministério Público Democrático, Sindicato dos Delegados de São Paulo, FAM, AJJMackenzie, ABFIP, Grupo de Estudos de Percepções Cognitivas na Interpretação da norma da PUC/SP, ASA, etc), bem como profissionais da área de tecnologia e engenharia.

A sociedade e as instituições se uniram em uma só rede com o escopo de combater o trauma histórico, coletivo e cultural gerado pelo novo coronavírus. Nosso objetivo é cuidar daqueles que cuidam e acolher as pessoas em situação de vulnerabilidade social em razão da pandemia causada pelo COVID-19. Para acolher as famílias foi criado memorial virtual em parceria com o Projeto Avarc, já tendo sido protocolizado pedido formal de destinação de local para prestação de condolências às vítimas de COVID-19 à Secretaria Municipal do Meio Ambiente de São Paulo.

Cuida-se de estratégia articulada de desvitimização, preventiva à ocorrência de doenças e proliferação da violência em nossa sociedade. Para tanto a plataforma do projeto disponível em www.higiamentesaudavel.com.br oferece canais de diálogo direto com a sociedade consistentes em acolhimento emocional (abordagem na psicologia das crises e emergências) pelo período de até um mês, acolhimento jurídico (advogados e estudantes de direito ajudam no esclarecimento de dúvidas, orientação sobre redes de apoio às vítimas e auxiliam o preenchimento de dados), acolhimento espiritual em um canal de denúncias da prática de crimes. No período de março a maio foram atendidas 27.982 pessoas nas diversas áreas de atuação do projeto. O setor emocional é liderado pelas professoras Jônia Lacerda, Shirlei L. Zolfan e, as psicólogas Daniela de Souza Ferreira, Maria Luisa Facury e Tatiana Rolim. O acolhimento espiritual é liderado pelos professores e padres Antonio Bogaz, Licio do Vale e pelos pastores Jair Miranda, Delvane Almeida e pelo pastor Jasiel Souza de Araújo. O setor jurídico é liderado pelas advogadas Ana Paula Talarico, Amanda Nucci, Evelyn Moraes de Oliveira, Emily Giuliano, Lays Helena Dolivet, Lauana Silva Souza e Pedro Pereira Gomes. No Ministério Público lideram os promotores de justiça Lucia Bromerckenkel, Jaime Nascimento, Carlos Paciello, Pedro Elias. Representando a polícia militar temos o capitão Rogério S. Julio e a capitã Flávia March (Campanha Vizinhança Solidária da Polícia Militar do Estado de São Paulo). Na magistratura o setor é liderado pelo juiz de direito Rodrigo Tellini e pela juíza Mônica Machado. Na polícia civil lideram a Raquel Galinatti, o Octacilio Andrade Júnior, Maria Luisa Rigolin e Gabriela Carvalho.

Para o atingimento dessas finalidades o eixo vitimização coletiva é tão ou mais importante que o desenvolvimento das tradicionais estratégias de combate à criminalidade e a cura da doença, pois abarca não apenas a prevenção à prática de crimes, mas também traumas, violência e conflitos sociais.

Considerando o papel de cada um dos atores na gestão da presente crise política, de saúde pública, econômica, jurídica e social, estão sendo implementadas estratégias que colocam em evidência os deveres de solidariedade de todos os membros da sociedade e a necessidade de tomada de decisões compartilhadas com base em informações transparentes e fidedignas que permitam gestão adequada dos danos individuais e coletivos causados.

O projeto visa o combate à traumatização e à exclusão social gerada pelo novo modelo econômico e social pautado por padrões de trabalho e relacionamentos no qual o acesso a ferramentas tecnológicas torna-se vetor estratégico em um ambiente de interação predominantemente virtual (ciberespaço). A partir da segunda década do século XXI a solidariedade passa a ser vista não apenas como um valor, mas verdadeiro e próprio dever constitucional. Na teoria do crime temos a inserção da figura do injusto penal restaurável, com possibilidades preventivas infinitas, local tradicionalmente ocupado pelo estudo do injusto penal e do injusto penal culpável (Celeste Leite dos Santos, Injusto Penal e Direitos das Vítimas. Curitiba, Juruá, 2021).

A socialidade é característica inerente ao ser humano, razão pela qual a mudança da forma como as conexões sociais são estabelecidas impõe a adoção de medidas que permitam a transição entre o modelo vigente até a primeira década do século XXI para modelo social interativo implementado na Era Pós Contemporânea. Nesse sentido, Marilene Araújo preceitua que se a unidade do Direito podia ser proclamada pelo soberano ou revelada como a vontade divina e organizada em um território, o Ciberespaço conduz a um mundo com muitas vozes, fluxos de dados, de redes de comunicação abertas e com múltiplas finalidades, altamente interativo, horizontalizado e desterriorializado. O Ciberespaço – radical ciber, do grego piloto – é uma variação cibernética – a arte de governar – , surge não apenas de um mediador de relações, mas como um piloto das relações humanas atuais”. (Araújo, Marilene P. O hiperciclo do Direito: os desafios do Ciberespaço, o jogo e as regras, p. 14. Tese de doutorado defendida na PUC/SP, 2020).

As profundas transformações sociais evidenciam a busca de sentido na sociedade pós contemporânea, ainda se adaptando a conviver em um ambiente em que o contato pessoal transforma o outro em seu inimigo. A interatividade possível é medida pelo intercâmbio recíproco de informação, daí o modelo proposto de abertura das instituições e da sociedade para construção de novo modelo de interatividade, abandonando-se o modelo burocrático que impede a geração de soluções e opções criativas, sobretudo diante de situações de crise.

Busca-se mudar a forma como o sistema penal historicamente se relaciona a sociedade representada pelo cidadão com as instituições estatais, por meio do:

I – o incentivo à participação da comunidade na gestão de conflitos;

II – a tomada de decisões compartilhadas;

III – a construção de saber multidisciplinar em parceria com especialistas e universidades;

IV – desenvolvimento de espaços lúdicos compartilhados para propiciar o bem estar físico, psíquico, social e espiritual.

V – a restauração das relações sociais e a manutenção do Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal prevê o Estado Social e Democrático de Direito como aquele que assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. Com isso abandona-se a ficção de um Estado alheio aos agentes públicos que o compõem e uma sociedade desvinculada de seus cidadãos. O estar distante não significa isolamento, mas oportunidade de comprometimento e crescimento.

Autores

  • é promotora de Justiça, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), gerente e coordenadora do Projeto Avarc do MP-SP e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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