Opinião

Portugal e o controle judicial da política pública do pós-crise

Autores

  • Clara Meneses

    é professora do IDP e doutoranda em Administração Pública na Universidade de Lisboa mestre em Políticas Públicas pela Hertie School of Governance (ALE) especialista em Direito Público pela UnB e Procuradora da Fazenda Nacional.

  • José Roberto Afonso

    é economista epós-doutor em Administração Pública pela Universidade de Coimbra.

22 de junho de 2020, 15h01

A crise sanitária, econômica e social da Covid-19 alcança todos os países e terá impactos diferenciados e mais negativos do que a crise financeira de 2008, concentrada nas maiores economias. Naquela época as políticas econômicas emergenciais para socorrer sobretudo o sistema financeiro e o empresariado provocaram forte aumento das dívidas e das despesas dos governos, resultando, nos anos seguintes, em medidas fiscais voltadas a reduzir tal endividamento público. Muitas lições poderão ser úteis para já se ir refletindo agora, ainda que não se tenha superado o estágio de enfrentamento da crise sanitária, porque, quando resolvida, será preciso voltar a ajustar as contas públicas.

Muito já tem sido comentado sobre a política tida como muito bem sucedida de Portugal para enfrentar a Covid-19. Talvez também possa contribuir com lições para o Brasil que pós pandemia precisará fazer um ajuste fiscal tão ou até mais forte que se fez na virada da década passada no país europeu. Dentre as lições, se pode focar no papel do Poder Judiciário no contexto das políticas fiscais tomadas em tempos de crise.

Em particular, o artigo propõe uma abordagem interdisciplinar própria da ciência da Administração Pública, trazendo a lente da Teoria do Equilíbrio Pontuado, complementada com um olhar jurídico e um pouco econômico. Busca-se descrever a atuação do Tribunal Constitucional (TC) português de 2010 a 2014, no controle de constitucionalidade das políticas de ajustamento orçamentário e de corte remuneratório aos trabalhadores do setor público. Tal estudo se torna mais relevante em face da crise de saúde pública do Covid-19, uma pandemia que vem causando milhares de mortes e que deixará um rastro de crise econômica de enormes proporções e, no seu bojo, de tensões institucionais vindouras sobre as políticas públicas de combate aos seus efeitos.

Na época, a crise da dívida soberana atingiu vários países europeus, mas alguns cujas dívidas eram maiores sofreram mais: Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, e ficaram sujeitos a resgate financeiro. A dívida pública do país alcançava cerca de 90% do PIB (por curiosidade, patamar em torno do qual deve girar atualmente a dívida brasileira), e a dívida do sector privado chegava a cerca de 260% do PIB. Em maio de 2011, o governo português fechou acordo de resgate financeiro[iii] e medidas de austeridade com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional — que ficou mais conhecida como troika. Na implementação da política, algumas metas foram cumpridas por Portugal, outras não, mas também houve outras em que o governo foi além do que a troika estipulara. Algumas medidas foram executadas antes mesmo da assinatura do acordo[iv], como medida preparatória para a assinatura:

Em 2011, ainda antes da chegada da Troika, o Executivo decidiu aplicar cortes salariais entre os 3,5% e os 10% nos funcionários públicos com salários acima dos 1.500 euros. No ano seguinte, os cortes foram alargados aos trabalhadores da administração pública portuguesa com vencimentos acima dos 675 euros — os cortes variavam entre os 2,5% e os 12%[v].

Tais medidas, como era de se esperar, despertaram intenso questionamento na agenda política macro do país, e as leis orçamentárias que as veicularam foram alvo de questionamento no TC. No seu conteúdo, os julgamentos adotaram a técnica da ponderação de princípios, cuja inerente subjetividade deixava espaço para o desenvolvimento do posicionamento judicial de acordo com o contexto e fase da crise e, consequentemente, uma mudança de política.

A Teoria do Equilíbrio Pontuado de Baumgartner[vi] enfatiza a interação das instituições políticas e no processo decisório marcado pela racionalidade limitada, e propõe que as alterações em políticas públicas são incrementais na maioria do tempo, recortada por momentos pontuais de drástica ruptura. Utilizando os conceitos dessa teoria, a participação do TC na conformação da política pública ocorreu mediante integração como um novo ator institucional, após o tema dos sacrifícios exigidos de grupos da sociedade entrar na agenda política macro, cujo conflito subjacente o Judiciário foi chamado a estabilizar. Esse acesso à formação da agenda dá-se por conta da mudança da via da política, com possível surgimento de janela de oportunidade e, alternativa ou simultaneamente, surgimento de controvérsia tendente à redefinição da imagem da política pública.

Em Portugal, se há por exemplo uma situação grave e urgente como a da pandemia da Covid-19, desperta-se a possibilidade de decretação de estado de emergência ou de sítio (CRP, Artigo 134.º[vii]). Certo é que os desafios que a Corte Constitucional enfrenta em situações desse jaez são imensos. A tarefa dos juízes constitucionais precisa ser de conciliar a necessidade com a moralidade e juridicidade, e zelar para que os fins não justifiquem os meios. A legislação urgente editada para combate à crise que fundamenta um estado de emergência ou de sítio se sujeita, em um Estado de Direito, ao controle de sua constitucionalidade, fazendo valer o sistema de freios e contrapesos.

Em que pese a ausência de previsão, o TC português lançou mão da criação jurisprudencial de um estado de exceção financeira e reconheceu legítimo considerar como constitucionais determinadas normas editadas por ocasião desse estado, normas que, com mesmo conteúdo, não seriam consideradas do mesmo modo em um estado de normalidade, que Urbano[viii] chama de "direito de crise, de necessidade ou emergencial".

Pode-se apontar alguns dos parâmetros sobre os quais o controle de constitucionalidade deve ser exercido. Diante de uma situação urgente e excepcional, existindo dúvida razoável sobre a constitucionalidade de determinada política pública, deve-se optar pela manutenção da norma jurídica no ordenamento. Em poucas palavras, in dubio pro políticas anticrise. A presunção da constitucionalidade e juridicidade nas normas emanadas, aqui consideradas as veiculadoras de políticas públicas anticrise, são fortalecidas, e os imperativos de necessidade assumem um peso maior do que o habitual nessa ponderação.

Um olhar atento sobre o contexto político e econômico é essencial, em cotejo com as políticas públicas adotadas, para a adequação destas com a finalidade de combate à crise. Apesar do reforço dos imperativos de necessidade, se as medidas excepcionais exorbitam dos motivos que a justificam, então devem ser apreciadas de acordo com as normas e modus operandi e valores típicos do período de normalidade. Para Urbano[ix], um exemplo é o corte permanente de uma prestação social fundamentada em uma crise, temporária por natureza. Ao mesmo tempo, essa avaliação dos motivos políticos é delicada, e o risco oposto é o próprio julgamento tocar o campo do ativismo judicial e resvalar na interferência entre os Poderes[x].

No período inicial que se seguiu ao acordo da troika, mediante a técnica de ponderação, as decisões do Judiciário consideraram constitucionais os cortes de salários dos trabalhadores do setor público, o que em uma situação de normalidade teria resultado diverso. Assim inaugurava-se a criação jurisprudencial do estado de exceção financeira[xi].

O acórdão paradigmático desse primeiro período foi o Acórdão 396/2011[xii], que examinou o Orçamento de Estado de 2011 (Lei 55-A/2010). A lei havia reduzido de 3,5% a 10% das remunerações dos trabalhadores da administração pública. Foram incluídas as remunerações de agentes políticos dos cargos dos três poderes, presidente da República, primeiro-ministro, parlamentares, magistratura e Ministério Público[xiii]. O TC entendeu que os salários podiam ser reduzidos, uma vez que em Portugal não há garantia constitucional à irredutibilidade de salários[xiv].

Na terceira fase, o Acórdão 353/2012[xv] é considerado um divisor de águas, que atribuiu contornos mais restritos à exceção. Desta feita, a política fiscal suspendeu por um ano o subsídio de férias e natal dos funcionários públicos para fins de austeridade. A jurisprudência da crise criou nesse momento a "cláusula da transitoriedade temporalmente limitada dos sacrifícios" e firmou que o limite temporal da janela de excepcionalidades seria o termo do Programa de Assistência Econômica e Financeira — PAEF com a troika, isto é, até 2014. Nesse ponto, à semelhança da modulação de efeitos existente no Brasil, o julgamento declarou a inconstitucionalidade da norma mas salvaguardou seus efeitos até o final do ano, pelo que não teve efeito prático financeiro, mas passou o alerta político.

O Acórdão 187/2013[xvi] foi paradigmático da terceira fase. A cláusula da transitoriedade temporalmente limitada de sacrifícios foi utilizada para declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas relativas à suspensão do pagamento de férias aos servidores e aos professores contratados e, ainda, da tributação de auxílio-doença e auxílio-desemprego.

O tema, por si só, apresenta ambiguidade própria da lógica política. A sua imagem oscilou entre o discurso da necessidade de equilíbrio fiscal e de cumprimento de acordos internacionais até a inexigibilidade de sacrifícios continuados pelos trabalhadores da função pública e o amparo à igualdade proporcional.

À semelhança, a jurisprudência de crise do TC se desenvolveu entre esses pólos[xvii]. Na medida em que as políticas anticrise foram reiteradas, o TC passou de um período inicial de tolerância, autorrestrição e legitimador do legislador, tendo em vista o período excepcional ao qual o Estado português estava sujeito, à uma atuação interferente que culminou com a mudança da política fiscal e a invalidação dos cortes remuneratórios, já ao final do período da troika. Essa última fase termina com a pontuação da política pública, isto é, de interrupção do equilíbrio.

Enfim, se no caso da saúde os governos e as nações não tiveram tempo e condições para preparar adequadamente para enfrentar a pandemia, por outro lado, desde já se sabe que, no futuro, precisarão pagar a conta da atual guerra social e econômica. Experiências passadas recentes e ainda mais de países com instituições tão próximas como a portuguesa poderá jogar alguma luz ao debate e às decisões políticas no Brasil.

Obs.: "Segurança na crise: as experiências de Portugal e do Brasil diante da calamidade" serão tema de webinar promovido pela TV ConJur e IDP, em 23/06/2020, às 11h de Brasília ou 15h de Lisboa, com participações de Gilmar Mendes, Ministro do STF, Vitalino Canas, ex-secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros de Portugal, Jorge Cabral, Embaixador português no Brasil, e José Roberto Afonso, professor do IDP. A transmissão poderá ser acompanhada no Youtube pela TV ConJur e pelo canal IDP, bem assim o seu vídeo estará disponível nos mesmos veículos.

*Opiniões exclusivas dos autores e não das instituições a que pertencem.

[iii] Programa de Assistência Económica e Financeira — PAEF que emprestou €78 mil milhões de euros.

[iv] Infoeuropa Biblioteca (n.d.). Tradução do Conteúdo do Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades de Política Económica. https://infoeuropa.eurocid.pt/opac/?func=service&doc_library=CIE01&doc_number=000046743&line_number=0001&func_code=WEB-FULL&service_type=MEDIA. Retrieved, May, 19, 2020.

[v] Coelho, Claudio Carneiro Bezerra Pinto. (2017) O “Novo” Constitucionalismo em tempos de austeridade fiscal e o papel das cortes constitucionais no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário. ISSN: 1980-1995. DOI – 10.18838/2318 v. 12, n. 2 Jul/Dez.

[vi] Baumgartner, F. R., & Jones, B. D. (1993). Agendas and instability in American politics. Chicago: University of Chicago Press.

[vii] Assembleia Constituinte (1976), Constituição da República Portuguesa — V Revisão Constitucional. Versão online no site: http://www.parlamento.pt/const_leg/crp_port/index.html.

[viii] Urbano, Maria Benedita (2013). Estado de Crise Económico-Financeira e o papel do Tribunal Constitucional. In A Crise e o Direito Público, VI Encontro de Professores Portugueses de Direito Público, Gonçalves, Pedro et al (Coord.), Instituto de Ciências Jurídico-Políticasda Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa.

[ix] Idem.

[x] Barroso, Luís Roberto.  (2008) Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do Estado: Rio de Janeiro, n. 13.

[xi] Carvalho, Osvaldo. (2013) O Estado de Necessidade Econômico-Financeiro e Direitos Fundamentais, Revista Interscienceplace, edição 27, volume 1, artigo no 9, Outubro/Dezembro. 163-213.

[xii] Tribunal Constitucional. (2020, June 12) . https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html

[xiii] Carvalhal, Ana Paula. (2012, November). Crise econômica e redução dos salários em Portugal. Observatório Constitucional. https://www.conjur.com.br/2012-nov-03/observatorio-constitucional-crise-reducao-salarios-portugal. Retrieved May, 22, 2020.

[xiv] Em Portugal a irredutibilidade de vencimentos decorre da legislação infraconstitucional: art. 89, alínea d, do Regime do Contrato de Trabalho em Fundações Públicas e art. 129, 1, alínea d, do Código do Trabalho.

[xv] Tribunal Constitucional. (2020, June 12). https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html

[xvi] Idem.

[xvii] Blanco de Morais, Carlos (2018). Curso de Direito Constitucional: Teoria da Constituição em tempo de crise do estado social. Tomo II. Coimbra: Almedina.

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    é professora do IDP e doutoranda em Administração Pública na Universidade de Lisboa, mestre em Políticas Públicas pela Hertie School of Governance (ALE), especialista em Direito Público pela UnB e Procuradora da Fazenda Nacional.

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    é economista e contabilista, professor do IDP, investigador do CAPP da Universidade de Lisboa, doutor em Economia pela Unicamp e mestre pela UFRJ.

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