Opinião

Direito ao silêncio seletivo no interrogatório judicial

Autor

  • Mathaus Agacci

    é advogado criminalista graduado em Direito pela Faculdade Cesusc doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA) sócio fundador do escritório Mathaus Agacci Advocacia Criminal e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

22 de junho de 2020, 19h48

Na última segunda-feira (15), viralizou na internet gravação de audiência de instrução de julgamento, ocorrida na Justiça Federal de Santos, na qual a magistrada que presidia a solenidade indeferiu o ato de interrogatório do acusado, pelo fato dele informar que só responderia as perguntas formuladas pelo seu defensor.

Na visão da julgadora, a escolha do acusado feriria o princípio do contraditório e, para além disso, impediria que o juízo, para quem a prova é dirigida, formasse sua livre convicção no julgamento do feito, em insofismável despautério com o devido processo legal.

Diante do ocorrido, pedimos vênia para citar o Ilustre Min. Marco Aurélio de Melo: "vivemos tempos estranhos". A decisão da r. magistrada, sem embargo, é o exemplo perfeito da cultura inquisitória inveterada na prática de nosso processo penal, imperando a desconstrução do acusado como sujeito de direitos.

É preciso rememorar que o interrogatório —notadamente após o advento da Lei nº 10.792/2003 — deixou de possuir a natureza jurídica de meio de prova, constituindo-se em meio de defesa e, diga-se, o mais puro meio de defesa, na medida em que é a oportunidade procedimental adequada para que o acusado, querendo, se defenda da acusação que lhe foi feita perante a autoridade que irá sentenciá-lo.

Com efeito, se assim não fosse, a Lei nº 11.719/2008, não teria alterado o artigo 400 do Código de Processo Penal, transferindo o interrogatório do acusado para o último ato da instrução do feito, para que, com base em todos os elementos produzidos em seu (des)favor, possa o réu, querendo, expor sua versão dos fatos, respondendo as perguntas que julgar convenientes —para sua tese defensiva, podendo, inclusive, mentir — em puro exercício da ampla defesa e contraditório.

Diante do acima exposto, não temos dúvidas de que a natureza jurídica do interrogatório é de meio de defesa e, como dito, o mais puro meio de defesa, de modo que somente será, em segundo plano, meio de prova, caso o acusado queira abrir mão de seu sagrado direito ao silêncio.

Há de se ressaltar, outrossim, que no interrogatório o contraditório é do acusado, pelo fato de que neste ato defender-se-á, querendo, da acusação (ataque) que lhe foi feita. Admitir ser o "contraditório" no aludido ato do membro do parquet (como mencionou a dd. Magistrada na audiência comentada) é permitir-se um duplo ataque ao acusado, ferindo-se a ampla defesa, o devido processo legal e a paridade de armas.

E mais, permitir-se o "contrário" do ato de interrogatório ao magistrado, como quis fazer parecer viável a dd. Magistrada em sua fundamentação da decisão oral, acarretaria em quebra da imparcialidade por parte do julgador, o que não se admite em nosso sistema processual.

Por todas essas razões não há outra conclusão acertada ao caso narrado senão àquela de que ao acusado —pela ampla defesa, contraditório, paridade de armas, direito ao silêncio e a não autoincriminação, além da própria razão de ser do processo penal acusatório — outorga-se o direito de responder as perguntas de quem quiser, total ou parcialmente, pois o direito ao silêncio seletivo é garantia constitucional e processual do acusado.

Em matéria de processo penal, forma é garantia. A estrita observância das formas processuais, que exprimem, no processo penal acusatório, a salvaguarda do cidadão aos arbítrios do Estado, representa, nada mais, nada menos, do que a certeza de observância aos direitos e garantias que o sistema normativo confere a qualquer pessoa acusada em procedimento criminal.

Ao fim e ao cabo, a triste realidade é estarmos discutindo, em pleno ano de 2020, desdobramentos tão básicos de princípios constitucionais insculpidos na Carta Política de 1.988, violando-se, pela negativa de vigência destes direitos, o sistema acusatório, agora, positivado na lei processual. Atos judiciais como àquele visto no vídeo mencionado indubitavelmente não encontram amparo nos sistemas legais de qualquer nação que se pretende verdadeiramente democrática.

dizia Lênio Streck: "Se o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia. É nessa ordem".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!