Opinião

Segurança jurídica nas compras governamentais durante a Covid-19

Autor

  • Eduardo Grossi Franco Neto

    é procurador do Estado de Minas Gerais advogado mestrando em Direto Administrativo pela UFMG pós-graduado em Ordem Jurídica pela Escola Superior do Ministério Púbico do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) e em pós-graduado em Advocacia Pública pelo IDDE-MG e procurador-chefe do Centro de Serviços Compartilhados da SEPLAG-MG.

22 de junho de 2020, 10h34

Paradoxalmente, a nova malha normativa publicada para permitir ao gestor público uma rápida e segura capacidade de resposta para o enfrentamento da Covid-19 também traz consigo uma enorme insegurança jurídica. Isso porque normas novas sempre dependem da consolidação de interpretações (notadamente pelos órgãos de controle), o que, invariavelmente, demanda tempo. Tempo é o luxo de que o profissional de compras não dispõe em situações de calamidade pública.

Os riscos inerentes aos processos licitatórios são potencializados nas compras públicas emergenciais, que precisam ser concluídas em curtíssimo espaço de tempo, gerando uma grande sensação de insegurança aos profissionais envolvidos em aquisições governamentais.

O princípio da segurança jurídica, que pode ser extraído do texto constitucional [1] e de diversas outras passagens legislativas, é expressamente previsto no artigo 2º, caput, da Lei nº 9.784, de 1999, e no inciso XIII do parágrafo único, que estabelece a vedação da aplicação retroativa de nova interpretação de lei no âmbito da Administração Pública [2].

A segurança jurídica existe quando a atuação estatal é previsível, sujeita a regras fixas, com estrita relação com a estabilidade jurídica [3].

Sentir-se seguro é antever como estável aquilo que se espera. Assim, essas seriam as palavras-chave para definir segurança jurídica: previsibilidade, proteção da confiança e respeito à boa-fé [4].

Se fossemos traduzir o significado de segurança jurídica no atual contexto da Covid-19, poderíamos dizer que os gestores públicos e profissionais de compras governamentais nada mais desejam do que saber como devem agir, de maneira que exista previsibilidade da análise dos seus atos pelos órgãos de controle (interno e externo), a fim de evitarem possíveis condenações nas esferas administrava, cível e criminal.

Entre as diversas medidas de prevenção sugeridas pela OCDE [5] nas compras públicas realizadas em período de pandemia, está a transparência, com a máxima abertura de informações e a disponibilização em dados abertos [6].

Todavia, não há efetividade na veiculação pública de informações se o conteúdo delas não guardar fidedignidade com os motivos que levaram os agentes públicos a tomarem decisões. Daí a necessidade de relembrarmos do princípio da motivação, que impõe à autoridade administrativa o dever de expor, explicitamente, os fundamentos de fato e de direito em que se fundamentam sua decisão [7].

Na Lei nº 9.784, de 1999, o princípio da motivação encontra expressa previsão (artigo 2º e artigo 50: "Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos").

Se existe uma razão específica que levou o servidor público a decidir pela dispensa de licitação emergencial em detrimento do pregão express (ambos previstos na Lei nº 13.979, de 2020), por contratar uma empresa inidônea ou, ainda, por dispensar a cotação de preços, ela deverá estar explicitada nos autos. É o famoso "contar o caso".

No contexto de insegurança jurídica, a MP 966 dispôs acerca da responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relativos à pandemia da Covid-19. Imediatamente, a norma foi alvo de diversas críticas, tanto contrárias quanto favoráveis a sua publicação. Compactuamos com a opinião segundo a qual o conteúdo da MP 966 já está na LINDB e no Decreto nº 9.830/19, o que tornaria desnecessária sua a edição.

A partir da análise do regime extraordinário de compras púbicas da Covid-19, identificamos os novos maiores riscos (sem olvidar dos já existentes) nos procedimentos de aquisição: 

1) Contratação de empresa sancionada (artigo 4º, §3º, Lei nº 13.979/20);

2) Dispensa da estimativa de preços (artigo 4º-E, §2º, Lei nº 13.979/20);

3) Contratação por valor superior ao anteriormente estimado (artigo 4º-E, §3º, Lei nº 13.979/20);

4) Contratação de empresas irregulares fiscal, trabalhista, habilitação, seguridade social (artigo 4º-F e artigo 3º, Lei nº 13.979/20; parágrafo único, Emenda Constitucional nº 106);

5) Pagamento antecipado (MP 961); e

6) Deflagração de processo de aquisição sem prévia dotação orçamentária (artigo 3º, I, da Lei Complementar nº 173, de 2020);

Para evitar os esses seis riscos, listamos três atitudes cumulativas (extraíveis da LINDB):

Como primeira atitude, e de acordo com os artigos 20 e 21 da LINDB, o gestor público deverá indicar nos autos as consequências de não proceder da maneira que foi efetivada.

Como segunda atitude, a autoridade administrativa deve discorrer, nos autos, acerca da necessidade e a adequação da medida imposta ou seja, o porquê de aquela ação ser mais pertinente que outras eventualmente disponíveis. É o que consta do artigo 20, parágrafo único, da LINDB. Essa ponderação de valores é uma técnica decisional que se instrumentaliza pela razoabilidade e proporcionalidade, por meio de elementos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito [8].

Todavia, é possível que, mesmo após realizar uma ponderação de necessidade, adequação e proporcionalidade, o administrador público se veja diante de mais de uma solução possível e adequada. Nesses casos, os órgãos de controle devem reconhecer que existe uma certa margem de avaliação do gestor, havendo uma liberdade administrativa decisional quase que privativa, afastando, em determinados casos, a reforma ou substituição do ato pelos órgãos de controle, notadamente em homenagem ao princípio da separação de poderes (ao menos quando se fala de controle externo), que impõe ao controlador o respeito às margens de ponderação ínsita ao comando do administrador público [9].

Essa margem decisória, evidentemente, jamais pode ser vista como liberdade para se decidir contra a finalidade pública [10].

Como terceira atitude, a autoridade deve apontar, nos autos, os obstáculos e as dificuldades reais que enfrentava no momento da tomada da decisão e as exigências das políticas públicas a seu cargo (o artigo 22 da LINDB).

Tomemos como exemplo, em uma dispensa de licitação por emergência, a necessidade de pagamento antecipado para receber equipamentos de proteção individual (EPIs). O agente público deve explicitar, se ele não contratasse daquela forma, quais os riscos a população correria, com a respectiva indicação do interesse público a justificar a medida e da excepcionalidade da situação (risco de vida de parte substancial da população e necessidade de preservação da saúde pública, por exemplo).

Isso envolve demonstrar no processo, também, como vem agindo o mercado de EPIs, juntando aos autos tanto a exigência, por parte da empresa, de receber o pagamento antecipado, quanto o fato de não haver outras empresas que, na mesmas condições comerciais, pudessem firmar contrato com a integralidade do pagamento após o recebimento das mercadorias. Deverão ser juntados os comprovantes de tentativas de contato com o maior número possível de empresas do ramo, a fim de evidenciar que foram esgotadas as tentativas de se encontrar outros fornecedores que pudessem preencher os requisitos em se tratando de uma aquisição ordinária.

Deve ficar claro o grau de urgência em que a decisão precisou ser tomada, a volatilidade dos preços, do mercado e da oferta e procura, bem como que a previsão de pagamento antecipado era condição indispensável para contratação e que se mostraria inviável a adoção do procedimento ordinário de aquisição e de execução de despesas públicas.

Essas três medidas nada mais são do que a mais perfeita tradução de um velho conhecido (muitas vezes esquecido): o princípio da motivação, o qual impõe ao agente público o dever de justificar seus atos formalmente. A motivação sempre foi (e continuará sendo) a viga mestra da segurança jurídica do gestor público. A necessidade de sua observação deve ser repetida, diariamente, como um novo (velho) mantra da salvação de todo e qualquer agente público: motivação é a salvação, motivação é a salvação, motivação é salvação…

A ausência de motivações e justificativas nos autos dos procedimentos de compras governamentais é causa de grande parte das condenações em órgãos de controle [11], devendo ser diuturnamente combatida e evitada.

Com essas medidas preventivas, os agentes de compras públicas e os gestores disporão de maior segurança jurídica, afastando acentuadamente a possibilidade de responder pessoalmente por dolo ou erro grosseiro.

 


[1] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. até a EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 – São Paulo: Atlas, 2017, p. 211.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 245.

[3] MEDAUAR, Odete. Segurança jurídica e confiança legítima. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da UniBrasil. Jan/Jul 2008. Disponível em https://bityli.com/aHHEc, acesso em 13.06/2020.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 762-764.

[5] Disponível em <https://bit.ly/2BJ9wEj>, acesso em 13/6/2020.

[6] "Ensuring maximum openness of information, including open data, as well as full disclosure of the measures used and their destination, stored in an accessible location".

[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 347.

[8] MONTEIRO, Thiago Lins. Um contributo para o estudo da ponderação de interesses no direito administrativo. In: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; CASTRO, Sérgio Pessoa de Paula (Coord.). Tendências e perspectivas do direito administrativo: uma visão da escola mineira. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 307-356.

[9] Idem, p. 399/340.

[10] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 82.

[11] ABREU, Elias Mauad de; NETO, Eduardo Grossi Franco. 70 Grandes Erros em Licitações e Contratos: Teoria, Legislação e Jurisprudência. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2019. p. 20.

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    é procurador do Estado de Minas Gerais, advogado, mestrando em Direto Administrativo pela UFMG, pós-graduado em Ordem Jurídica pela Escola Superior do Ministério Púbico do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) e em pós-graduado em Advocacia Pública pelo IDDE-MG e procurador-chefe do Centro de Serviços Compartilhados da SEPLAG-MG.

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