O equívoco dos vetos presidenciais à Lei 14.010/2020
22 de junho de 2020, 10h28
Veja a íntegra da nota:
NOTA TÉCNICA – Vetos a Lei n. 14.010/2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus.
1. O grupo interinstitucional de pesquisa “Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo” é integrado por pesquisadores da Universidade de Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade Federal do Piauí e da Universidade Federal do Mato Grosso; e vem a público manifestar sua discordância quanto aos vetos do Exmo. Sr. Presidente da República em relação aos artigos 4º, 6º, 7º, 9º e 11 da Lei n. 14.010/2020.
2. O Projeto de Lei do Senado n. 1.179/2020 que deu origem a Lei foi fruto da colaboração de membros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e das principais Universidades do País; recolhendo sugestões inclusive de membros deste grupo de pesquisa interinstitucional e de diversas agremiações científicas e especialistas no assunto.
3. As disposições contidas nos artigos vetados veiculam soluções adequadas para os problemas jurídicos vividos neste momento excepcional, buscando evitar o incremento na judicialização, que já se nota nos diversos foros do País. Ademais, verifica-se que as soluções apresentadas em tais dispositivos levaram em consideração as peculiaridades do direito nacional, e guardam similaridade com soluções adotadas em nações estrangeiras que também padecem dos efeitos da pandemia do coronavírus.
4. Em relação ao veto ao art. 4º, a mensagem de veto ao dispositivo lastreia a medida em uma suposta insegurança jurídica, tendo em vista a edição da Medida Provisória n. 931 de 2020, tratando de aspectos do funcionamento de sociedades anônimas, limitadas, etc. Ocorre que tal alegação não se sustenta, porquanto o dispositivo do art. 4º estabeleça restrições a realização de assembleias e reuniões presenciais até 30 de outubro, enquanto a Medida Provisória permita a realização de reuniões e assembleias de forma remota, facultando aos sócios a participação e votação a distância.
5. Quanto aos vetos aos artigos 6º e 7º, a Presidência da República justifica-os alegando contrariedade ao interesse público, porquanto o ordenamento jurídico já disponha de “mecanismos apropriados para a modulação das obrigações contratuais”, a exemplo da teoria da imprevisão e do instituto da resolução por onerosidade excessiva.
6. Tal justificativa, contudo, não tem relação com o artigo 6º da referida Lei, porquanto tal dispositivo estabeleça ressalva necessária quanto a aplicação da lei, a fim de não permitir a invocação dos desdobramentos da pandemia para se eximir do cumprimento das obrigações vencidas antes de 20 de março de 2020.
7. Também não se sustentam as razões apresentadas para o veto ao artigo 7º da Lei, que não se constitui em uma inovação no direito brasileiro, porquanto a doutrina e a jurisprudência nacionais já reputassem que a inflação, a variação cambial, a desvalorização da moeda, etc., não representam qualquer novidade na história brasileira recente. O caput do art. 7º, portanto, apenas reconhece tais realidades, que se constituem em fatos previsíveis para a pessoa razoável. Some-se a isto a ressalva necessária prevista nos §§ 1º e 2º do art. 7º, no sentido de excluir os contratos de locação de imóveis urbanos e os contratos de consumo do alcance da Lei sob análise, de modo que a revisão de tais espécies contratuais não devem se submeter às regras próprias do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado. A manutenção do veto ao art. 7º não é bem-vinda, a medida em que gera dúvidas quanto ao alcance da lei.
8. Em relação ao veto ao art. 9º, a Presidência da República assevera que tal medida se justifica em razão da preservação do interesse público, pois a suspensão de um dos expedientes de execução do contrato de locação por prazo relativamente longo caracterizaria uma proteção excessiva ao inquilino, em prejuízo do locador; além de configurar incentivo a inadimplência. Mais uma vez, o veto não se justifica. O impedimento temporário da concessão de liminares de despejo não inviabiliza o recurso a outros meios de execução dos contratos de locação, a exemplo da penhora em dinheiro, protesto judicial e da utilização de medida executivas atípicas. Ademais, considerar que tal medida se constitui em um estímulo a inadimplência parece presumir a má-fé dos inquilinos, o que se constitui em um preconceito infundado, que não encontra respaldo na realidade. O veto a tal dispositivo deve ser revisto, em nosso entender, tendo em vista a necessidade de cooperação para a efetividade das medidas de isolamento social durante o período da pandemia.
9. No que diz respeito as razões do veto ao art. 11, a Presidência da República alega que tais medidas explicitadas no dispositivo vetado retirariam a autonomia e a necessidade de deliberações por assembleia, restringindo a vontade coletiva dos condôminos. Parece-nos que tais razões também não encontram apoio na boa dogmática jurídica, que considera que o exercício do direito de propriedade deve ser limitado pelo bem comum. Tendo em vista as circunstâncias excepcionais da pandemia e a necessidade de isolamento social, o dispositivo em questão apenas explicita alguns dos deveres dos condôminos, positivados no art. 1.336 do Código Civil: “Art. 1.336. São deveres do condômino: II – não realizar obras que comprometam a segurança da edificação; IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes”. Ora, o ingresso indiscriminado e a circulação irrestrita de pessoas estranhas ao condomínio podem colocar em risco a saúde e a segurança dos condôminos, o que justifica a adoção das medidas temporárias e excepcionais pelo síndico nos termos do art. 11 da Lei da lei em questão.
10. Ademais, não se pode olvidar que tais disposições foram aprovadas unanimemente pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, após ampla escuta da comunidade jurídica e do Governo Federal. Rogamos para que tais vetos sejam rejeitados pelo Poder Legislativo Federal, a fim de proporcionar ao Povo brasileiro um conjunto de medidas jurídicas adequadas ao enfrentamento dos problemas que afetam a população neste período de pandemia do coronavírus.
Subscrevem esta nota, os líderes do grupo de pesquisa “Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo”:
Venceslau Tavares Costa Filho (Professor Adjunto – UPE), Silvano José Gomes Flumignan (Professor Adjunto – UPE), Torquato da Silva Castro Jr (Professor Titular – UFPE), Larissa Maria de Moraes Leal (Professora Adjunta – UPE), Roberto Paulino de Albuquerque Jr (Professor Adjunto – UFPE), Humberto João Carneiro Filho (Professor Adjunto – UFPE), Rafael Vieira de Azevedo (Professor Adjunto – UFRN), Renata Oliveira Almeida Menezes (Professora Adjunta – UFRN), Dante Ponte de Brito (Professor Adjunto – UFPI), Éfren Paulo Porfírio de Sá Lima (Professor Adjunto – UFPI) e Carlos Eduardo Silva e Souza (Professor Adjunto – UFMT).
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
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