Opinião

Constitucionalismo de caserna e o artigo 142 da Constituição

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22 de junho de 2020, 13h16

A reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril, data que nos rememora a fundação do Estado Português no Brasil, desnudou o modo de "fazer política" que em muito se distancia da liturgia e da imagem de formalidade esperadas. Naquela ocasião, o presidente Jair Bolsonaro fez uma citação direta ao artigo 142 da Constituição Federal, e chamou a atenção de especialistas ao dizer que as forças armadas poderiam intervir no país para restabelecer a ordem.

Essa forma de interpretar o papel das Forças Armadas como um poder moderador da República, capaz de usar sua "força" contra algum dos três poderes constituídos com fins de restauração da lei e da ordem é antiga, e pode ser classificada como um fantasma do período de ditadura. O jornalista Luiz Maklouf, em seu livro "1988: Segredos da Constituinte" [1], conta-nos sobre a tentativa dos militares de inserir no artigo 142, que trata das forças armadas, a ideia do poder moderador.

Porém, no decorrer da Assembleia Constituinte, Bernardo Cabral, à época relator da Constituinte, gerou uma grave crise institucional ao propor mudanças no texto original. Segundo José Sarney, isso fez com que os militares intervissem diretamente no processo para garantir que o artigo 142 contivesse redação que permitisse a intervenção das Forças na ordem interna.

Os relatos sobre essa crise são confirmados nas entrevistas de Nelson Jobin e Fernando Henrique Cardoso. Ao final, o acordo que prevaleceu, segundo Fernando Henrique e Jobin, era a permissão de intervenção na ordem interna, desde que a pedido de um dos poderes constituídos.

No livro, em entrevista concedida pelo general Leônidas Pires, ministro do Exército na ocasião e um dos protagonistas da suposta intervenção para garantir a atual redação do artigo 142, ele afirmou que de fato se envolveu nesse debate, e que seu intuito era que as Formas Armadas agissem como um poder moderador. Ao final, cita expressamente o jurista Ives Gandra para justificar sua posição.

Segundo Ives Gandra, referido dispositivo permitiria que as Forças Armadas atuassem como uma espécie de poder moderador da República, tal poder de moderar seria exercido em defesa da democracia e em situações (vale dizer, impossíveis de serem objetivamente definidas) em que um dos poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) "se sentisse atropelado por outro". A atuação das Forças Armadas seriam para supostamente repor "a lei e a ordem".

Toda a discussão envolve a leitura do artigo 142 da Carta, justamente por conter passagem que afirma ser possível que qualquer dos poderes acione as Forças Armadas para garantia da lei e da ordem. Porém, mesmo com essa suposta origem controversa, ao final o dispositivo não criou nenhuma espécie de poder moderador, assim como o sistema constitucional acolhido foi expressamente o de separação de poderes e seus respectivos mecanismos de freios e contrapesos. Do contrário, teríamos a concentração de poder típica de ditaduras, pois as Forças Armadas teriam aval constitucional para definir o conceito de garantia da lei e da ordem, assim como poderiam adotar um lado no varejo das disputas políticas, sendo capazes de intervir e usar a força das armas para calar divergências democráticas. Além de abrirem-se as portas para que militares pudessem combinar atos políticos com o lado que "oferece mais" vantagens, que normalmente seria o Executivo.

O tema ganhou força devido à instabilidade política no país e, em especial, após autoridades públicas (inclusive o presidente da República) expressamente defenderem essa visão, apoiando-se no jurista Ives Gandra, antigo partidário dessa visão sobre o artigo 142 [2]. Em recentes manifestações sobre o tema, o ministro Roberto Barroso, no dia 10 deste mês, ao tratar das Forças Armadas, afirmou que "presta um desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política" (Mandado de Injunção 7.311-DF). Em seguida, no dia 12, o ministro Luiz Fux afirmou que na Constituição Federal não se encontra nenhuma possibilidade de interpretação que permita o "emprego das Forças Armadas para a defesa de um poder contra o outro" (ADI n° 6.457-DF).

Em suas manifestações, os ministros explicam bem a origem do poder moderador, instituto de origem absolutista que tinha por finalidade essencial pôr o monarca acima de todos os demais poderes, concentrando o poder nas mãos de um único indivíduo ou instituição. Além de não haver qualquer menção a esse instituto autoritário em nossa Constituição, ela adotou o sistema de freios e contrapesos, em que as distintas funções de legislar, julgar e administrar são atribuídas a órgãos distintos que se controlam mutuamente, com o objetivo de impedir a concentração de poder e arbítrio.

Cabe afirmar, talvez fazendo um eufemismo de proporções épicas, que a interpretação de poder moderador na Constituição de 1988 é no mínimo incompatível com toda ordem constitucional e com a própria concepção de constitucionalismo moderno. Impedir a concentração de poder e arbítrio visa, única e exclusivamente, a impedir que o Estado seja usado como instrumento de opressão e destruição do ser humano e de suas liberdades, medidas comuns em governos autoritários como o nazista ou o das ditaduras da América Latina.

O constitucionalismo em essência significa limitação do poder, tendo como um de seus pilares a separação de poderes (funções de legislar, administrar e julgar atribuídas a órgãos distintos), com instrumentos que permitam tais poderes o controle mútuo, sem a possibilidade de existência de alguma espécie de indivíduo ou órgão superior, moderador. A posição defendida por Ives Gandra e algumas autoridades públicas no país, portanto, afronta por completo o constitucionalismo moderno e brasileiro.

Na contramão do que dizem certos juristas, normas jurídicas ou discursos políticos podem ter, sim, palavras inúteis ou esvaziadas, principalmente para disfarçar o autoritarismo, e não faltam exemplos históricos. Em diversas ocasiões discursos autoritários foram usados sob a justificativa de defesa da democracia, ou sob um falso véu da liberdade, pelo que tudo indica a prática volta à moda no séc. XXI, afinal não chegamos ao "fim da História".

A partir da Constituição brasileira de 1934, o uso da frase "todo poder emana do povo" se tornou uma constante na história constitucional brasileira. Esse texto se torna uma forma de justificação para o poder tão forte que mesmo as Constituições vigentes durante nossos períodos ditatoriais, as Cartas de 1937, 1967 e 1969, mantiveram a afirmação, e sempre em seu artigo 1°. Sim, sempre iniciamos nossas Constituições autoritárias por uma falácia, por que será?

É interessante notar que a democracia se fortaleceu no ocidente a tal ponto que se tornou um símbolo até mesmo de regimes autoritários. Kelsen, talvez o maior jurista do século XX, parece que estava certo quando afirmou que a "substância da democracia não pode ser abandonada sem a manutenção do símbolo" [3]. O autor também afirma que "é bem conhecida a afirmação sarcástica: se o fascismo fosse implantado nos Estados Unidos, seria chamado de democracia", trata-se de uma distorção tão significativa do símbolo que ele passa a significar o extremo oposto.

Por certo que essa última frase de Kelsen é mera especulação histórica no que diz respeito aos Estados Unidos, porém, seria quase que uma profecia se tivesse sido utilizado como referência o Brasil. Isso porque, o Ato Institucional n° 5 [4], de 1968, sepultou de vez toda e qualquer discussão sobre democracia ou liberdade no país, porém, em seu primeiro parágrafo, dizia que: "Atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção". Surpreendente? Certamente não, como dito, fica o símbolo, subverte-se sua lógica e justifica-se o extremo oposto.

Devido a esse paradoxo do discurso, vale dizer que uma constituição nem sempre se identifica com o constitucionalismo moderno, é o que ocorre em regimes ditatoriais em que a vontade do(s) ditador(es) vale(m) mais do que a lei ou que a própria Constituição do país.

Sobre o tema, lembro ao leitor que o presidente Jair Bolsonaro, em 19 de abril, foi a um protesto em favor de intervenção militar e diante de faixas pedindo que militares atuassem contra o STF e o Congresso Nacional declarou: "Contem com o seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a democracia e garantir o que há de mais sagrado, a nossa liberdade".

O alerta aqui é simples, a legalidade em ditaduras se distorce e se afasta do constitucionalismo preconizado pelo Estado de Direito (vontade da lei). Conceitos essenciais para liberdade dos cidadãos são ressignificados para servirem ao regime, e não ao povo. Sem amarras e limitações, a legalidade passa a ser tão somente a compatibilidade do arbítrio com o texto legal, e por óbvio que a vontade de quem concentra o poder totalitário importa mais do que a lei, pois quando estas não forem compatíveis, ignoram-se ou mudam-se as normas.

Em resumo, diante de um poder moderador, de caráter essencialmente ilimitado e acima dos demais poderes, o arbítrio de quem concentra o poder não encontra limitação no Direito e, portanto, não existe constitucionalismo neste ambiente. Encerro firmando que, assim como não existe direito à defesa de um golpe armado, também não se encontra abraçado pelo constitucionalismo brasileiro a interpretação de que o artigo 142 da Constituição permite o uso das Forças Armadas contra qualquer dos poderes.

 


[1] Luiz Maklouf Carvalho. 1988: Segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. Pag. 51; 64; 117; 214-215.

[2] Ives Gandra da Silva Martins. "Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os poderes". ConJur. 28/5/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira.

[3] KELSEN, Hans. A Democracia. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pág. 140.

[4] "E veio o Ato Institucional 5, de 13,12,1968, Dia 13, uma sexta-feira, que na crendice popular é dia aziago, de muito azar. E foi um dos piores dias do Brasil, porque esse ato institucional foi o instrumento mais duro, mais cruel, que este país na sua longa vida de antidemocracia, de arbítrio, já teve". SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e poder Popular: Estudos sobre a Constituição. 1ª Edição, 2ª Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 107.

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