Estado da Economia

A importância da análise econômica do Direito - parte 2

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

21 de junho de 2020, 12h36

Spacca
No meu texto anterior nesta coluna, defendi a importância de abordagens econômicas para múltiplas situações de interesse jurídico.

Recebi diversas reações positivas ao meu texto, notadamente porque alguns colegas localizaram em minha abordagem algo mais amplo e libertador do que uma abordagem mais tradicional do que se costuma denominar como análise econômica do direito (AED). Também recebi pedidos de outros colegas versados naquela literatura específica de que eu avançasse no tema, não me limitando a criticar a base tradicional e histórica da AED. Igualmente, foi escrito um artigo coletivo criticando a eleição da minha oposição a certos aspectos da AED, sobretudo a minha censura a uma abordagem normativa (não descritiva) em detrimento do direito posto e a minha alegação de que, a depender do modelo econômico a ser adotado, as conclusões (resultados) de certos estudos poderão ter caráter ideológico (liberalismo exacerbado).

Muito embora as críticas do texto anterior estivessem endereçadas àqueles que utilizam abordagens mais tradicionais, bem como a possíveis usos normativos exagerados, volto ao tema nesse novo texto.

Múltiplas são as formas de interação entre economia e direito. Existem abordagens mais descritivas e outras mais normativas (de como o direito pode ser aperfeiçoado). E, nesse último caso, podem existir abordagens de como uma norma pode ser posta ou alterada (imaginem estudos de como um sin tax pode ser elaborado e estar apto a produzir os resultados esperados pelo seu formulador) e, ainda, baseadas em argumentos de como os aplicadores do direito (autoridades, juízes, ministros do STF) deveriam tomar decisões, a partir de cenários hipotéticos das consequências de sua escolha.

Admiro profundamente tais abordagens e trabalho com algumas delas. Todavia, quanto ao último aspecto de uma abordagem normativa – aquela que busca defender uma forma de interpretação do direito por seus aplicadores –, tenho ressalvas, já que a julgo mais problemática e cheia de armadilhas, muito embora raramente encontraremos alguém que defenda decisões que ultrapassem o direito posto de forma explícita (para isso existem as sutilezas da ponderação de princípios). Além disso, há formas distintas de se estudar o consequencialismo jurídico: desde aqueles que o defenderão como possível elemento de compreensão de uma norma posta, àqueles que o justificarão apesar da norma posta). Este é um aspecto que não será possível desenvolver em detalhes nessa oportunidade, preocupando-me, sobretudo, a segunda alternativa.

Por acreditar ser mais útil e, sobretudo, mais educado, deixarei mais claro que tipo de crítica faço a partir da teoria da argumentação. Se existe algum autor que preencha os requisitos da abordagem que critico ou não, confio que o leitor poderá fazer seu próprio juízo, sem a necessidade da participação de terceiros. Para tanto, volto ao tema elegendo um recorte específico, a saber, o uso de argumentos econômicos na produção de uma norma-decisão individual e concreta. A escolha justifica-se porque os demais e vários usos de uma abordagem econômica foram amplamente elogiados em meu texto anterior e fazem parte de minha atuação.

Devo explicitar que meu pensamento (aqui resumido e com notas de rodapé mais detalhadas) parte de considerações hermenêuticas (a partir de uma crítica ao representacionalismo e ao essencialismo de inspiração wittgensteiniana[1]), que me levaram à teoria da argumentação (em bases descritivas, de inspiração wittgensteiniana e toulmiana[2]) para estudar o uso de argumentos microeconômicos em decisões jurídicas[3]. Defendo, agora normativamente, o uso de uma abordagem ainda mais econômica – porque plural e transparente[4] – e o positivismo jurídico hodierno não inclusivo[5].

Avançando no tema da AED, as abordagens pós-Chicago reúnem vários desenvolvimentos teóricos na economia e na análise econômica do direito que surgiram após a consagração do pensamento de Chicago. Utiliza-se, aqui, a expressão “abordagens” para não passar a falsa impressão de existência de uma tal escola do pensamento. O que as une é uma crítica mais ou menos incisiva ao pensamento hegemônico anterior, seja sem abandonar a tradição neoclássica (isto é, em geral rompendo com a parte mais política e normativa da Escola de Chicago), seja buscando alternativas metodologicamente mais ambiciosas[6].

Uma dessas abordagens seria a nova economia institucional (notadamente os custos de transação)[7], bem como a economia comportamental, a relativizar o caráter racional das decisões do agente econômico. Se alguns autores contemporâneos de AED realmente se libertaram do lastro do critério de maximização de eficiência econômica identificada como eficiência produtiva (como aparece em Robert Bork ou na primeira parte da obra de Richard Posner), cada leitor poderá checar a partir de sua própria leitura. Do mesmo modo, se autores atuais que citam a economia comportamental se libertaram do rígido pressuposto de racionalidade das decisões dos agentes (base neoclássica tradicional) ou se apenas fizeram uma atualização de literatura para dar lustro de atualidade, isso caberá a quem quiser criticar um conjunto de autores específicos. Minha proposta é estabelecer pressupostos hermenêuticos e de teoria da argumentação para compreender a metódica jurídica (direito em sua realização diuturna) e para estudar como os argumentos econômicos são postos nas decisões concretas que busco estudar.

A economia, como o direito, não é uma ciência exata, não é una e sequer neutra (e aqui qualquer tentativa de chegar a um consenso será tão infrutífera quanto uma disputa religiosa). Assim como não se pode afirmar qual a decisão correta do direito, tampouco pode se garantir qual o resultado objetivo das consequências que modelos econômicos podem revelar, mesmo naqueles mais próximos de uma abordagem empírica (como a da econometria), o que não retira da análise econômica a sua importância. A literatura econômica funciona como um mercado, também ela é determinada pela demanda de uma específica época histórica[8].

Por delimitação de espaço, tratarei, nesse texto, apenas da teoria dos jogos, para buscar, em seu seio, uma abordagem que entendo interessante, em oposição a outra, que julgo problemática. Tanto uma como outra serão descritas em termos gerais e hipotéticos, já que não se trata de discutir uma análise concreta[9].

A teoria dos jogos está no centro de muitas das revisões propostas à ortodoxia[10]. Trata-se de um dos ramos da matemática que estuda situações de tomada de decisão de diversos tipos, procurando demonstrar eventuais estratégias naquelas interações em que o resultado não dependerá apenas da decisão de um único agente e nas quais os agentes estarão envolvidos em situações de ganhos e perdas.

A teoria dos jogos pode comportar várias aplicações. Em minha pesquisa, sobretudo como forma de se garantir a harmonia com a base teórica acima mencionada, o uso dos jogos na teoria da argumentação que julgo preferível é aquele baseado na modelagem de cadeias de decisões, isto é, de sua formalização para apreciação crítica de possíveis resultados esperados. Não se abandona a perspectiva de que ainda se trata de uma prognose, sendo a formalização apenas uma riquíssima forma de demonstração e análise de possíveis condutas. Todavia, eventuais usos normativos a favor de um consequencialismo forte não são defendidos em minha pesquisa[11].

Essa falta de consenso sobre os possíveis usos da teoria dos jogos na economia é reconhecida por especialistas. Ariel Rubinstein, professor da Universidade de Nova York e de Tel-Aviv, chama a atenção para certas aplicações sem sentido da teoria dos jogos em estudos não específicos[12]. Para o autor, há aqueles para quem a teoria dos jogos deveria ser usada como forma de dar uma boa previsão de comportamento em situações estratégicas[13]. Como contra-argumento, lembra o autor que muitas das situações analisadas podem gerar predições contraditórias, além de se dever levar em conta as dificuldades inerentes em tentar antecipar condutas nas ciências sociais. Ou seja, devemos lidar com o fato de que a prognose é, em si mesma, um jogo e aqueles que fazem a previsão são, eles próprios, jogadores desse jogo[14].

Tal abordagem amolda-se aos nossos pressupostos hermenêuticos e de teoria da argumentação. Julgo que a teoria dos jogos possa ser abordada como elemento argumentativo de decisões, que continuam sendo jurídicas do ponto de vista positivista (teste do pedigree). Seu uso não deve encorajar eventual consequencialismo forte, pois sua aptidão empírica é fraca[15]. A raiz do problema é de natureza epistemológica e não técnica.

Defendo que o instrumental econômico na aplicação do direito ao caso concreto faz parte do campo da teoria das provas – ou, mais especificamente – a garantia (Warrants) teórica de como fundamentos iniciais e dados (Data e Grounds) podem justificar uma decisão e não o campo da fundamentação última da norma-decisão (Backing) jurídica[16].

O estudo do emprego de argumentos microeconômicos para construir a norma jurídica deveria ser o de uma análise da gramática dos argumentos e não o de uma teoria epistemológica (ou a defesa apriorística de que uma determinada visão da economia a guiar as decisões jurídicas). Ou seja, na construção decisões, a economia estaria ao lado da aplicação do direito vigente e não a serviço de uma forma de apresentação de resultados não postas por normas jurídicas. Aqueles que creem no caráter neutro da economia certamente não se localizarão nas linhas desse texto, o que significa, tão somente, os distintos pontos de partida adotados.

[1] Temos plena consciência de que não existe um trabalho rigorosamente wittgensteiniano, por não se tratar de um filósofo sistemático. Quando muito, pode-se mencionar certa abordagem wittgensteiniana, ou uma atitude wittgensteiniana. Ver Norman MALCOLM, Ludwig Wittgenstein: a Memoir, Oxford: Clarendon Press, 2009, p. 53. Sobre a complexidade da obra e a abertura para várias interpretações, ver Georg Henrik von WRIGHT, “A Biographical Sketch”, in Ludwig Wittgenstein: a Memoir, por Norman Malcolm, Oxford: Clarendon Press, 2009, p. 20.

[2] No estudo da teoria da argumentação (jurídica), como defendido por Stephen Toulmin, o importante não será estudar como se chega a conclusões, mas sim em como – após chegar a elas – os argumentos são apresentados para lhe dar apoio (Stephen TOULMIN, The Uses of Argument, udpdated, Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 17).

[3] Sobre a concretização jurídica, muito embora não se possa defender a referibilidade entre o resultado da aplicação (norma jurídica construída) e o texto normativo (pretensamente, o ponto de partida) – ao menos não do ponto de vista da teoria do conhecimento –, será no campo da argumentação jurídica que se permitirá um mínimo de controle do processo, a saber, regras procedimentais preestabelecidas, necessidade de fundamentar a decisão jurídica construída e o sistema processual estatal, que possui regras que uniformizam sentidos e impedem a discussão interminável (expedientes de uniformização de jurisprudência, limite de recursos processuais, trânsito em julgado, etc). Isso significará ver e descrever os argumentos em cada campo tal como são, reconhecendo como funcionam; não propondo-se a explicar por que, ou a demonstrar que eles têm necessariamente de funcionar. O que se pede, numa frase, não é teoria epistemológica, mas análise epistemológica” (Stephen TOULMIN, Os Usos do Argumento, p. 368-369)

[4] Josef Drexl chega a cunhar a expressão even more economic approach para defender o uso mais intensivo da economia, mediante seu aprofundamento (não deixando de lado a importância do papel das instituições e sem olvidar a importância de modelos evolucionistas e abordagens empíricas). Ver Josef DREXL, “Wettbewerbsverfassung”, in Europäisches Verfassungsrecht: theoretische und dogmatische Grundzüge, org. Armin von Bogdandy e Jürgen Bast, Dordrecht [u.a.]: Springer-Lehrbuch, 2009, p. 940.

[5] O complemento “contemporâneo” cumpre apenas essa função de ressaltar que existe um debate metodológico em que se contesta construtos que pregam o retorno ao moralismo, a proeminência do Poder Judiciário na construção do Estado de Direito, a ênfase aos aspectos programáticos da constituição, à ponderação dos princípios, ao uso argumentativo exagerado na proporcionalidade e da razoabilidade, tudo isso a partir de importações de teorias surgidas em contextos históricos, sociais, constitucionais e ideológicos muito distintos. Em termos ainda mais redutores: trata-se de um positivismo jurídico não inclusivo.

[6] Para um interessante balanço entre as abordagens de economia industrial tradicional, de Chicago e Pós Chicago em distintos temas de antitruste, ver Benjamin KLEIN e Andres V. LERNER, “Introduction: The Economics Revolution in Antitrsut Law”, in Economics of Antitrust Law, vol. 1, Cheltenham, Northampton: Edward Elgar Publishing, 2008, p. ix-xliv.

[7] Ver Richard POSNER, Para Além do Direito, p. 434 e, sobretudo, 450-467. Sobre a Nova Economia Institucional, ver Nicholas MERCURO e Steven G. MEDEMA, Economics and the Law: From Posner to Post-Modernism, p. 130-156. Sobre a eficiência econômica na Escola de Chicago, ver Nicholas MERCURO e Steven G. MEDEMA, Economics and the Law: From Posner to Post-Modernism, p. 57-69. Para um balanço rico em detalhes do law and economics, ver Richard POSNER e Francesco PARISI, “Law and Economics: An Introduction”, in Law and Economics Volume 1: Theoretical and Methodological Foundations, Cheltenham, Glos ; Lyme, N.H.: Edward Elgar Pub., 1997, p. ix-li. Richard Posner assinala que a grande diferença entre a nova economia institucional e a análise econômica do direito está no ceticismo ou não, respectivamente, na maximização racional da utilidade. Richard POSNER, Para Além do Direito, p. 466.

[8] Herbert HOVENKAMP. The Antitrust Movement and the Rise of Industrial Organization” in Texas Law Review, vol. 68, 1989, p. 167.

[9] Os processos que julgam atos de concentração no âmbito do CADE estão cheios de exemplos de pareceres interessantes envolvendo teoria dos jogos a sustentar os interesses contraditórios das partes envolvidas. Trato de alguns casos emblemáticos em meu livro.

[10] Tratei do tema de forma mais detida, incluindo uma abordagem histórica, no livro Economicização…, pp. 101-112 e 155-163.

[11] Ao comentar a obra de Eric Rasmusen, Ayres chama a atenção para o caráter não mecânico de solução de jogos, ao contrário dos modelos microeconômicos de maximização da utilidade, ver Ian AYRES, “Playing Games with the Law”, Stanford Law Review 42 1989: 1297. No mesmo sentido, “A teoria dos jogos, por seu turno, busca desenvolver modelos bastante simplificados de análise, particularmente por intermédio da construção de matrizes de jogadores, estratégias e pagamentos, para caminhar pelos campos pantanosos da incerteza quanto aos padrões de ação dos outros. Seu potencial para a construção de modelos de aplicação é bastante reduzido, servindo, principalmente, como uma heurística capaz de incrementar a consciência dos tomadores de decisão e, particularmente, possibilitar que se tracem cenários em que, por exemplo, seja preferível converter um jogo não-cooperativo em cooperativo, iniciando uma troca de informações cuidadosa quando se imagina, por exemplo, que a situação seja de aversão ou indiferença comuns”. In: José Augusto Fontoura COSTA, Decidir e Julgar: Um Estudo Multidisciplinar sobre a Solução de Controvérsias na Organização Mundial do Comércio, São Paulo: Tese Titularidade FDUSP, 2009, p. 79.

[12] “[…] But game theory is not a box of magic trick that can help us play games more successfully. There are very few insights from game theory that would improve one’s game of chess or poker. These games are only used in game theory as convenient illustrations.

So is game theory useful in any way? The popular literature is full of nonsensical claims to that effect”. Cf. Ariel RUBINSTEIN, “Afterword”, in Theory of Games and Economic Behavior, por John von Neumann e Oskar Morgenstern, Sixtieth-Anniversary Edition, Princeton, Oxford: Princeton University, 2004, p. 634.

[13] Ariel RUBINSTEIN, “Afterword”, p. 634.

[14] Ariel RUBINSTEIN, “Afterword”, p. 634. O autor menciona uma segunda categoria de pesquisadores, que acreditam que a teoria dos jogos teria o poder de melhorar a performance nas interações estratégicas da vida real. No mesmo sentido, incluindo diversas entrevistas com alunos sobre escolhas em jogos clássicos, a colocar em xeque o potencial de racionalização do estudo, ver Ariel RUBINSTEIN. Economic Fables. Cambridge: Open Book Publishers, 2012, pp. 91-145.

[15] “[…] Game theory does not tell us which action is preferable or predict what other people will do. If game theory is nevertheless useful or practical, it is only indirectly so. In any case, the burden of proof is in those who use game theory to make policy recommendations, not on those who doubt the practical value of game theory in the first place”. Ariel RUBINSTEIN, “Afterword”, p. 634.

[16] Uso as expressões típicas do layout de Toulmin. Sobre isso, o meu já citado livro sobre a economicização.

Autores

  • é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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