Opinião

O 'roubo de contratos' na Covid-19 e as suas consequências jurídicas

Autores

  • Natália Zanelatto

    é advogada especialista em Direito Empresarial Internacional pela Universidade Panthéon-Assas (Paris II) e integrante do departamento corporativo da Andersen Ballão Advocacia.

  • Lívia Moraes

    é advogada do departamento corporativo do escritório Andersen Ballão Advocacia.

20 de junho de 2020, 18h10

Abalada pelos impactos da pandemia da Covid-19 mundo afora, a comunidade internacional foi novamente surpreendida com a possível adoção de medidas comerciais pelos Estados Unidos da América direcionadas à aquisição de bens necessários para prevenir e prestar assistência à saúde de sua população inclusive aqueles já adquiridos por outras nações.

No dia 4 de abril, os Estados Unidos foram acusados de redirecionar para si um conjunto de 200 mil máscaras que teria como destino original a Alemanha, em um ato descrito pelo ministro do interior alemão Andreas Geiseil como "pirataria moderna". As máscaras de modelo FFP2, que haviam sido encomendadas pela polícia de Berlim, nunca chegaram ao destino final originalmente acordado. Geisel afirmou que as máscaras foram "desviadas" para os Estados Unidos [1].

Casos semelhantes também foram reportados pela França e pelo Brasil, e têm sido descritos como "roubo de contratos" efetuado pelos norte-americanos, uma vez que estes supostamente estariam fazendo propostas financeiras mais altas do que as já firmadas entre os países e fornecedores chineses.

É o que teria se dado em 3 de abril, quando uma carga de 600 respiradores artificiais encomendada de um fornecedor chinês por estados do nordeste brasileiro não pôde embarcar do aeroporto de Miami, onde fazia escala, para o Brasil.

Em nota enviada à imprensa brasileira, a Casa Civil da Bahia informou que a operação de compra dos respiradores foi cancelada unilateralmente pelo vendedor. O valor final da compra, de R$ 42 milhões, ainda não havia sido pago pelo governo baiano. Após investigações, teria sido confirmado que os Estados Unidos ofereceram um valor mais alto pelos produtos quando estes aterrissaram em solo americano uma prática também apontada, por exemplo, pelo governo francês [2].

No Brasil, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse na mesma semana que a China havia recusado alguns pedidos de equipamentos brasileiros quando o governo dos Estados Unidos enviou mais de 20 aviões de carga ao país para comprar os mesmos produtos. "As compras que esperávamos concluir para poder abastecer o país nos foram retiradas", disse o ex-ministro em entrevista [3].

Após acusação pela França de que os americanos estariam comprando máscaras destinadas a outros países diretamente nas pistas dos aeroportos chineses, pagando em dinheiro vivo e em valores de três a quatro vezes superiores ao preço original, os Estados Unidos se manifestaram negando tais práticas. Todavia, autoridades francesas afirmaram a ocorrência desta prática reiterada e expressaram o descontentamento em relação ao assunto [4].

Caso confirmada, trata-se de prática condenável adotada pelos Estados Unidos diante da uma crise humanitária mundial que presenciamos. Essa situação impulsiona todos os Estados a buscarem no mercado global equipamentos de proteção pessoal (EPP) para garantir o tratamento dos que contraíram o vírus e a prevenção do contágio dos profissionais de saúde. Todas as encomendas "roubadas" de terceiros, produzidas na China, poderão ser levadas à disputa com a finalidade de reparar o dano aos compradores lesados por estes atos, após cuidadosa análise das circunstâncias e instrumentos contratuais aplicáveis.

Uma das principais preocupações após tal comportamento dos Estados Unidos seria a disseminação de tal prática por outros países, e não somente adstrita ao descumprimento dos contratos de fornecimento dos EPP ou de equipamentos como respiradores, mas também dos respectivos insumos e matéria-prima necessária para a produção destes.

A cadeia de suprimentos de matéria-prima para a fabricação de produtos é global, na qual "time is of the essence", isto é, o cumprimento dos prazos do contrato constitui a sua essência, e o seu descumprimento acarreta violação da obrigação principal do contrato. No presente cenário de pandemia, é inquestionável a aplicação de referida lógica, já que os pacientes acometidos por crises respiratórias e os seus médicos não podem tolerar atrasos nas entregas tampouco o podem os Estados que os protegem. Ainda, sob a perspectiva do comprador, ao receber a confirmação da venda pelo vendedor, aquele passa a esperar a entrega, e não mais seguir requerendo cotações e negociando nova entregas, aumentando ainda mais o atraso e o impacto do descumprimento.

Traçado esse cenário, a questão que estas notas buscam analisar diz respeito ao descumprimento do contrato de compra e venda internacional de mercadorias (EPPs ou equipamentos de saúde).

Nesse sentido, cumpre esclarecer que os principais players mundiais Brasil, Estados Unidos e China, inclusive são signatários da Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG). Diante da aplicação de referida convenção, devemos voltar atenção para o momento em que a violação contratual é ocasionada pelo vendedor, como no caso dos vendedores chineses que teriam descumprido a obrigação de entrega aos compradores originais, ao redirecionarem os bens a compradores norte-americanos.

O artigo 45, I, "b", da CISG estabelece que o comprador pode exigir perdas e danos se o vendedor deixar de cumprir alguma de suas obrigações nos termos do contrato ou de referida convenção.

Em um panorama geral, destaca-se que para reivindicar a indenização por perdas e danos não é necessário provar a culpa do vendedor, como é obrigatório em alguns sistemas jurídicos. Pode-se requerer indenização pelos danos resultantes de qualquer falha objetiva do vendedor no cumprimento de suas obrigações. O artigo 74 da convenção reflete o princípio da compensação total, por meio do qual a parte prejudicada possui o direito de exigir que todos os seus danos resultantes da violação contratual sejam compensados. Nesse caso, ela possui o ônus de provar, com razoável certeza, que sofreu perdas e sua extensão, ainda que não precise fazê-lo com precisão matemática [5].

Assim, as partes lesadas pela falta de entrega dos produtos comprados poderiam requerer a compensação de acordo com o artigo 74 da CISG, como explicado acima, além das multas contratuais acordadas entre as partes, fato que pode ser agravado caso comprovada a conduta reprovável, a depender de cada legislação.

A questão que se coloca, contudo, é: como comprovar os danos sofridos nos referidos casos? Isto é, como atribuir um valor às vidas perdidas em razão do descumprimento desses contratos? Como determinar que foi justamente a falta dos EPPs adquiridos que ocasionou a contaminação do corpo clínico no combate à pandemia? Como mensurar os impactos econômicos da prorrogação das medidas de isolamento social e lock-down decorrentes do aumento dos casos de mortes e contaminação? Nessa linha, uma análise superficial da CISG e da disciplina contratual não serão suficientes para apresentar as respostas e apenas o envolvimento de instituições supranacionais poderá lançar alguma luz sobre a responsabilização por tais práticas. 

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    Advogada, graduada em Direito pela UFPR e especializada em Direito Empresarial Internacional pela Universidade Panthéon-Assas (Paris II). Ela integra a equipe do escritório Andersen Ballão Advocacia desde 2007

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    é advogada, ex-assistant legal counsel da PCA (Permanent Court of Arbitration) em Haia (Holanda) e associada do departamento de Arbitragem e Mediação da Braz Gama Monteiro.

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