Observatório constitucional

O paradoxo do juiz sem tribunal: ainda o inquérito das fake news

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20 de junho de 2020, 8h00

“There has arisen among modernist philosophers a certain paradoxism which has served to put them out of communication with those of their contemporaries who are merely modern. A writer who says that there are no truths, or that all truth is ‘merely relative’, is asking you not to believe him. So don’t.” Roger Scruton, Modern Philosophy: An Introduction and Survey1

1. Os paradoxos e o novo normal
A crise da Covid-19, como todas as outras que já acometeram a humanidade, introduziu, na linguagem corrente, um sem número de frases feitas e lugares comuns, entre os quais se destaca a aliteração ilógica e cacofônica do novo normal”.

Chavão no sentido clássico do termo, trata-se de uma fórmula em branco, usada a torto e a direito pelos nossos futurólogos/“tudólogos” para os prognósticos mais desencontrados sobre a vida pós-pandemia. O novo normal estaria associado a platitudes de toda ordem, porque em regra, uma platitude antes da pandemia continua sendo platitude após a pandemia.

No campo do direito, o “novo normal” parece ter inspirado uma indignação paradoxal contra certas condutas do STF. Escorada em clichês tautológicos, como “quem guarda os guardiões?”, parte dos “observadores” do Supremo apresenta proposições que não só falham em resolver os problemas diagnosticados, como ameaçam as condições de existência do próprio Tribunal.

Recentemente, a mídia brasileira tem divulgado supostas promessas que seriam feitas para autoridades acerca das vagas que surgirão no STF. Essa situação tem criado diversas perplexidades como, por exemplo, a leniência de autoridades a ataques inaceitáveis à Corte, entre os quais a propagação covarde de fake news que nada fizeram a não ser desmoralizar o STF, bem como ameaçar a sua existência mediante incitação a uma revolta popular ou militar. As futuras vagas também têm despertado interpretações alucinadas sobre o art. 142 da CF ou, num saudosismo melancólico e autocrático, o resgate de uma nova versão fardada do poder moderador.

É o que chamamos de o “paradoxo do juiz sem Tribunal”: nele incorre o sujeito que, pretendendo se candidatar ou candidatar alguém a uma futura vaga no STF, desencadeia ou intensifica ações que levam à extinção da própria instituição que o poderia acolher. É tamanha vontade de ir ou conduzir alguém ao STF que se ameaça a sua existência.

O intuito aqui não é uma condenação de nossos juízes sem Tribunal. Afinal, os paradoxos, tanto quanto os lugares comuns, são aspectos incontornáveis da condição humana. Na República, já se levantava que “ambição daquilo que a democracia assinala como o bem supremo [liberdade] (…)” poderia ser “a causa da sua dissolução”.2

Outro paradoxo famoso nos foi apresentado por Karl Popper, quem nos diz que se agirmos com tolerância ilimitada com os intolerantes, não estaremos preparados para proteger uma sociedade tolerante dos ataques da intolerância, com o que a própria tolerância desaparecerá.3

Façamos uso da advertência de Popper: reivindiquemos, em nome da tolerância, o direito de não tolerar a intolerância.4

O STF, assim como qualquer instituição de um Estado Constitucional, deve permanecer sob vigilância constante. O limite da crítica, no entanto, é sua natureza institucional. No âmbito acadêmico, talvez estejamos entre os principais críticos da atuação ativista da Corte. Dedicamos razoável espaço da nossa obra Processo Constitucional Brasileiro (entre outras) para diagnosticar decisões que, em nosso entender, são incorretas, bem como a propor caminhos alternativos.5

Nossas críticas, contudo, sempre foram absolutamente institucionais. Partimos de um compromisso intransigível com a democracia e com o papel fundamental que o STF desempenha na sua manutenção.6 Ataques covardes à Corte não podem, em hipótese alguma, ser o novo normal com que teremos de conviver. Do mesmo modo, discursos intolerantes não se justificam a partir da liberdade de expressão. E não há novo normal que o normalize.

2. Forbearance como justificativa para a existência inquérito das fake news. Ou sobre como nos indignamos mais com o procedimento do que com os fatos que o motivaram
O alvo mais frequente dos ataques ao STF tem sido o inquérito das fake news (INQ 4781), neste texto, não analisaremos todos os pontos jurídicos a ele referentes. Nosso enfoque será relacionado à justificativa institucional desse inquérito. Argumenta-se pela ilegalidade na instauração e condução de uma investigação pelo próprio Tribunal para apurar atos em que a própria Corte seria a ofendida.7

Para segmentos da sociedade e de juristas, parece aceitável que a Corte Constitucional sofra toda ordem de ataques covardes, inclusive a partir de fake news, desmoralizando a atuação do Tribunal e questionando sua própria existência. Noutro giro, aos olhos vigilantes desses “observadores” do Supremo, seria inaceitável que o Tribunal se utilizasse de um inquérito para realizar uma defesa institucional, na falta de quem o defenda. Para tais “observadores”, o STF – diante de graves ameaças – deveria ser espectador inerte do lamentável espetáculo de degeneração atualmente promovido no Brasil.8

De nossa parte, além dos fundamentos legais e regimentais, entendemos que o inquérito se justifica por uma questão de forbearance.

Segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, a tolerância mútua seria o primeiro dos guard-rails da democracia.9 É uma das regras implícitas desse regime: para que uma democracia exista, é imprescindível que os atores políticos se aceitem mutuamente como atores legítimos, tratando suas divergências dentro da arena das normas constitucionais.

O forbearance seria a segunda defesa, e consiste basicamente no ato de se conter no exercício de um direito ou poder legalmente estatuído.10 Quando o respeito mútuo e a tolerância entre os atores institucionais acabam, o que resta, na ausência da abstenção, é a arbitrariedade.

Nesse sentido, entendemos que o inquérito das fake news, numa perspectiva institucional, justifica-se como um modo de “legítima defesa” institucional contra agentes que, a que tudo indica, já não consideram mais a existência do Tribunal como algo legítimo ou necessário. Esse é o novo normal que o obscurantismo autocrático desses agentes nos apresenta mediante o uso degenerado da liberdade para se atacar espaço fundamental da própria democracia: a jurisdição constitucional.

Mais: um inquérito dessa natureza, dizem os críticos, deveria ser instaurado a pedido do Procurador-Geral da República. A PGR, no entanto, não o fez na ocasião.

Contudo, deveria a PGR decidir se investiga ou não atos de selvageria institucional contra o STF? Eis o preço da má compreensão da ideia de discricionariedade: a violação da separação harmônica dos poderes (CF 2º), já que o Ministério Público, calcado numa suposta discricionariedade, deixa de investigar atos atentatórios à existência do STF.

Já tivemos a oportunidade de defender aqui na ConJur o sistema acusatório, aprimorado, entre nós, pelo pacote anticrime, com a introdução do juiz de garantias no Código de Processo Penal (CPP 3º-B). Nossa indignação, contudo, não pode ser seletiva. A existência de um sistema acusatório não pode prescindir da existência de uma Jurisdição Constitucional independente.

 

Vale destacar que o Tribunal tem conduzido o Inquérito com a proporcionalidade exigida. A ADPF 572, que o questiona, não tem poupado esforços para ouvir todos os interessados e implementar os ajustes necessários ao prosseguimento das investigações. Inclusive, a PGR, outrora absolutamente omissa, tem sinalizado pela necessidade de manutenção do referido inquérito.

No dia 17.06.2020, o STF formou maioria para, no bojo da ADPF 572, manter o inquérito das fake news. O norte dos votos favoráveis ao inquérito não foi outro: a necessidade de, com supedâneo na legalidade vigente, eliminar atos contrários à democracia em seu nascedouro.

A selvageria intrapoderes, provocada por alguns segmentos, bem como as omissões das instituições responsáveis pela investigação e persecução penais são a verdadeira contramão do diálogo. Diante disso, reservamo-nos o direito de, com Karl Popper, permanecermos intolerantes com a intolerância.

3. Ainda sobre o inquérito das fake News: o CPP 3º-A como óbice processual?
No julgamento da ADPF 572, que contesta a Portaria que instaurou o inquérito das fake news, a (CONAMP), na condição de amicus curiae, defendeu a remessa do inquérito ao Ministério Público: "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição". A Associação parece fazer referência ao CPP 3º-A como óbice ao inquérito. Não gostaríamos de deixar esse argumento sem resposta.

De início, vale mencionar que o artigo que antecede o CPP 3º-A permite, expressamente, a interpretação extensiva e aplicação analógica da lei processual penal, bem como sua suplementação por "princípios gerais de direito".

Além disso, sabe-se muito bem do caráter extraordinário da situação. Não há notícia, na história brasileira, de ataques tão contundentes a uma instituição do Estado, oriundos de parcela dos outros poderes. O STF não possui uma Procuradoria própria que o defenda e, se a PGR não se dispõe a promover o inquérito, incumbia ao próprio Tribunal iniciá-lo. Do contrário, seria defender uma atuação discricionária sem limites por parte da PGR. Relembrando que esse suposto vício de iniciativa já teria sido corrigido mediante manifestação da PGR em defesa da manutenção do inquérito.

Podemos fazer uma analogia com a CF 5º LIX, a qual garante o direito fundamental à ação penal privada subsidiária da pública, se esta não for intentada no prazo legal. A Constituição reconhece a possibilidade de a mora temporal das instituições encarregadas da persecução penal causar grandes prejuízos. Por obvio, não ignoramos que uma das características mais conhecidas dos direitos fundamentais é a de serem direitos garantidos aos cidadãos contra o Estado. A analogia serve, tão somente, para demonstrar que a defesa do Supremo é de interesse de toda a sociedade, considerada a sua função de guardião da Constituição e de instância contramajoritária na proteção de direitos.

Assim, nos parece razoável pensar que o CPP 3º-A merece uma leitura constitucional, a partir de uma arguição de nulidade parcial sem redução de texto, que exclua a variante interpretativa que, em tese, impediria o STF de instaurar inquéritos para sua própria proteção institucional, perante ameaças reais, na inércia dos responsáveis pela investigação criminal. Afinal, a inação da PGR causaria uma situação ainda mais gravosa de inconstitucionalidade, na medida em que perpetuaria ataques contra o STF e deixaria sem apuração supostas ações criminais, inviabilizando a realização inquérito para subsidiar suas verificações. Por essa razão, andou bem a PGR ao se posicionar pela manutenção do inquérito. Nesse ponto, não se trata de uma defesa indiscriminada pela instauração “ex officio” de inquérito pelo Judiciário. O que efetivamente pontuamos é o caráter extraordinário da situação de ataque à Suprema Corte que justificaria o uso do RISTF 43 em razão da inércia à época, e ora corrigida, da atuação da PGR.

Trata-se de uma medida extraordinária, não de exceção. 11 Como já anotamos, “Abandonemos, agora, a exceção, adotando, em seu lugar, o extraordinário. Não se trata de determinar o soberano fora da regularidade, como Carl Schmitt preceitua, mas de estabelecer medidas extraordinárias dentro de um regime jurídico-constitucional. Na primeira, medidas atípicas são tomadas para a solução de problemas atípicos. No segundo, somos convidados a pensar de forma diferente os mecanismos já existentes para enfrentar aquilo que nos ameaça.12

4. As fake news sobre o inquérito das fake news
A situação brasileira é tão caótica que criamos uma espécie de metalinguagem paradoxal: produzir fake news sobre o inquérito que busca apurar fake news.

O problema das fake news é, em parte, mundial e encontra-se exponencialmente agravado pela atual sociedade de plataformas que vivemos. 13 Como identificá-las e combatê-las são questões que estão nas agendas das grandes democracias do mundo. Não podemos mais coadunar com a ideia de que a liberdade de expressão (CF 5º IV) assegura um direito à perpetuação de manifestações extremistas, ou, ainda, um direito à compreensão de que não existem verdades, mas tão somente narrativas.

Iniciamos o texto com uma citação certeira de Roger Scruton: alguém que afirme a inexistência de verdades pede para ser desacreditado. Da mesma forma, quem só afirma a existência de narrativas igualmente pede pela marginalização de seu discurso.

Incumbe-nos, portanto, desmentirmos uma última fake news: a condução do inquérito pelo Supremo Tribunal Federal não retira do Ministério Público a titularidade da ação penal, que deverá ser exercida se presentes indícios concretos. E adiantamos: não se trata de competência discricionária.

Com efeito, ao proferir voto na ADPF 572, o min. Alexandre de Moraes foi certeiro ao afirmar, em mais de uma oportunidade: titularidade da ação penal pelo MP não significa exclusividade no âmbito investigatório. Quando uma investigação aponta para a existência de criminoso que na deep web já dispunham da planta arquitetônica do STF, como trazido pelo mesmo Ministro, nos parece evidente que medidas precisam ser tomadas.

Ouçamos os já longínquos alertas de Konrad Hesse: “se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio14.

5. Conclusão. Ambivalência do fogo
O encerramento deste texto se dá dois dias após extremistas terem lançados fogos contra o STF.

Como ensinava Bachelard, o fogo é o meio de explicação nos domínios mais variados. Ele seria capaz de explicar tudo, porque constitui a ocasião das lembranças mais imperecíveis das experiências pessoais e decisivas de cada um. Ou seja, tudo que muda lentamente se explicaria pela vida, em contrapartida, tudo que muda rápido se explica pelo fogo. 15

Para o que mais nos interessa, o fogo é o elemento da explicação das contradições ínsitas do ser-humano, “dentro todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura”. 16 O fogo, também e de maneira ambivalente, sempre serviu para rituais catárticos e de purificações. Torçamos para que os fogos que desejam destruir a instituição STF sirvam para promover uma catarse no reacionarismo cujo erro trágico é não conceber que constitucionalismo é um movimento irrefreável de defesa da democracia e direitos fundamentais.

Se esse texto não conseguiu diminuir a frustação dos juízes sem tribunal ou esclarecer os aspectos concernentes ao inquérito das fake news, que ao menos a dualidade do fogo sirva para que a barbárie em chamas ilumine algumas das mentes obscurantistas, promovendo uma desparadoxificação civilizatória.


1 Roger Scruton. Modern Philosophy: An Introduction and Survey, Bloomsbury Reader, 2012, edição para kindle, p. 14. Destaques nossos.

2 Platão. A República, 9ª ed.,, Fundação Calouste Gulbenkian, 562a-563a, p.392-394. Ver ainda: (Karl Popper. The open society and its enemies, vol. I: the spell of Plato, Londres: George Routledge & Sons, 1945, p. 109.

3 Cf. Karl Popper, op. cit., p. 226.

4 Ibidem.

5 Ver Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 3ª ed., SP: RT, 2019, cap. 10, p. 1283 e ss.

6 Com efeito, dedicamos uma nota específica na abertura da 3ª ed. do Processo Constitucional Brasileiro a uma defesa do STF. (Georges Abboud. Op. cit., p. 17-19).

7 Está em julgamento da ADPF 572, ajuizada pela Rede Sustentabilidade, rel. Min. Edson Fachin, onde o partido questiona a Portaria GP n.º 69, de 14 de março de 2019, que determinou a abertura do Inquérito.

8 Igualmente defendendo o inquérito das fake news, ver Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Diogo Bacha e Silva. Inquérito judicial do STF: o MP como parte ou "juiz das garantias"?, In: Consultor Jurídico, 28.05.2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/opiniao-inquerito-stf-mp-parte-ou-juiz-garantias.

9 Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. How democracies die. Nova York: Crown, 2018, p. 102.

10 Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 4ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 1321, no prelo.

11 Cf. Pedro Serrano. Autoritarismo e golpes na América Latina, São Paulo: Alameda, 2016, passim.

12 Georges Abboud. Como decidir em tempos de crise?, In: Estado da Arte, 30.04.2020. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/como-decidir-tempos-crise/

13 Cf. Georges Abboud, Nelson Nery Junior e Ricardo Campos (org.) Fake News e Regulação, 2.ª ed., SP: RT, 2020.

14 Konrad Hesse. A força normativa da Constituição, Porto Alegre: SAFE, 1991, p. 25.

15 Gaston Bachelard. A Psicanálise do fogo, SP: Martins Fontes, 1994, p.11.

16 Ibid. p. 11.

Autores

  • é advogado e professor de Processo Civil da PUC-SP e do programa de mestrado em Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF). Tem mestrado e doutorado em Direito pela PUC-SP.

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