Opinião

Teorias negras importam na conquista de uma democracia real

Autores

  • Manuellita Hermes

    é doutoranda em Direito e Tutela na Università degli Studi di Roma 2 Tor Vergata procuradora federal assessora de ministro no STF e membro da Associação Internacional de Direito Constitucional (IACL-AIDC).

  • Rômulo Bittencourt

    é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA com especialização em Direito do Estado pela UFBA e advogado do Banco do Nordeste.

20 de junho de 2020, 6h37

O ressurgimento do debate racial no Brasil e no mundo, a partir dos casos de João Pedro e George Floyd, revelou, como corolário da campanha "vidas negras importam" (black lives matter), a necessidade de dar ar e luz aos intelectuais negros. As suas teorias também importam.

Importante abandonar a postura de negação da história colonial, da herança escravagista e de suas atuais consequências duradouras, para assumir “a responsabilidade de criar novas configurações de poder e de conhecimento” em “um percurso de consciencialização coletiva”[1], com discursos e ações efetivas que provoquem uma outra inclusão, verdadeiramente transformadora.

Compreender a gênese do discurso
A compreensão do que somos como nação pressupõe buscar no passado linhas de raciocínio que nos permitam refletir sobre as demandas do presente. Isso perpassaria pelo entendimento da projeção política de quem se propõe trazer definições esquemáticas sobre o Brasil. A interpretação de nossa edificação histórica é muito mais um balanço reflexivo sobre o devir do que propriamente uma retrospecção do passado.

Tradicionalmente, a historiografia sobre o tema alça a tríade formada por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior como referencial teórico acerca do pensamento sintético do Brasil. Entretanto, em nenhum desses autores a questão racial é tratada de forma centralizada, mesmo considerando o sistema escravagista como elemento estrutural da economia e da sociedade.

Com essas breves ponderações, não se está a afirmar que a temática nunca tenha sido desenvolvida; pelo contrário, intelectuais negros e negras estiverem imersos nesse debate, embora do ponto vista historiográfico sejam invisíveis. Isso reflete, em certa medida, as clivagens sociais e raciais que marcam o país. Durante todo século 20, pensadores negros como André Rebouças e Milton Santos — apenas para exemplificar dois marcos desse extenso período — já buscavam pensar formas de superação do escravismo que alinhavou o Estado brasileiro durante mais de três séculos.

Rebouças possuía como projeto nacional a realização de uma democracia rural, visando à superação do passado latifundiário e escravista, raiz das desigualdades do país, mediante criação de formas institucionais de manutenção do negro no sistema econômico. Suas reflexões derivam da necessidade de adequação do Brasil ao novo cenário econômico e político que se desenhava no final do século 19 com o fortalecimento de nações capitalistas industriais. Se, por um lado, pensava o reenquadramento do negro dentro das possibilidades de produção de riqueza; por outro, a sua trajetória de vida demonstrou que as promessas reformistas de viés liberal na recente República não anunciavam uma nova "era", mas o escamoteamento da população negra.

Já Milton Santos[2] tenta inserir o Brasil no cenário mundial, no século 21. Na sua visão, a globalização diluiria as diferenças, mas camuflaria as desigualdades, ainda latentes. Assim, descortinando esse fenômeno mundial que se alardeia como integrativo, o referido autor acaba também pensando no racismo como uma questão correlata desse processo, embora o identifique num espectro maior, isto é, integrante e intrínseco à própria globalização.

 Em reforço, mesmo durante as constantes crise que a República brasileira experimentou — seja pelas tensões dos anos 1930, seja pela instauração de um período ditatorial em 1964 — a intelectualidade negra esteve, segundo José Antônio dos Santos[3], tensionando esse debate em várias frentes, como a revisitação de temas históricos e o enaltecimento da cultura afrodescendente.

O espaço universitário
No âmbito universitário, a inserção do negro e dos estudos sobre epistemologias e metodologias negras, antirracistas e descoloniais simboliza o desiderato de quebra da hegemonia das universidades como centro de preparação das elites. Lembre-se que a instituição universitária, tal como hoje concebida, surgiu a partir de organizações desenvolvidas na Idade Média. À época, o denominado estudo universitário – studium solemne, studium privilegiatum, dentre outras nomenclaturas – teve como principais berços a cidade de Bolonha, na Itália, sede da Alma Mater Studiorum (a Universidade de Bolonha), e a Escola Catedral de Notre-Dame, que, mais tarde, seria a Universidade de Paris (Universitas magistrorum et scholarium Parisiensium). A partir de um desenho forjado em épocas medievais, com reunião de estudantes de diversas partes da Europa — que desejavam obter um uma formação diferenciada e sistematizada —, difundiu-se o modelo cultural sobretudo ocidental.

No Brasil, o estudo privilegiado, solene, elitista, restrito a uma parte da sociedade, assiste, séculos mais tarde, à insistência de projeção do aspecto racial sobre a arena pública. São exemplos de iniciativas com grandes repercussões: a implementação do regime de cotas raciais nas Universidades (Lei nº 12.711/12) e do ensino obrigatório do estudo de história e cultura afro-brasileira (Lei nº 11.645/08). Estes momentos normativos são conquistas de espaços, modificando o cenário brasileiro.

Prestigiam-se o princípio da igualdade e a mobilidade social proporcionada a partir do curso universitário. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 186/DF, decidiu acerca da constitucionalidade da reserva de vagas com base em critério étnico-racial para ingresso em instituição pública de ensino superior, garantiu a observância do princípio da igualdade material e a reversão do histórico quadro de desigualdade da sociedade brasileira, refletido também no âmbito acadêmico.

O debate envolve a implementação e a manutenção dos direitos sociais, bem como, especificamente: a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, da Constituição Federal); a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV, CF); o direito à educação (arts. 6º e 205, CF); a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF); o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino (art. 206, III, CF); e a autonomia universitária (art. 207, CF).

Sob um outro prisma, a promoção do princípio da igualdade; o estímulo à mobilidade social, proporcionada a partir do curso universitário; e o resgate da cultura negra por meio de epistemologias e metodologias próprias e antirracistas.

Valorização da intelectualidade negra
O momento atual pode ser comparado ao ambiente acadêmico após a década de 80 (período que coincide com a redemocratização do Brasil e a ampliação dos Programas de Pós-Graduação em todo país), que contribuiu para escancarar as assimetrias raciais que ainda lastreiam a sociedade brasileira.

É necessário retirar da invisibilidade iniciativas universitárias que cumprem o importante papel de integrar as demandas sociais e raciais. E além disso: devem ser pulverizadas, divulgadas, valorizadas.

 A título de exemplo, no âmbito da produção científica na Bahia (que possui tradição em pesquisas históricas sobre o período colonial brasileiro), há grupos de pesquisa desenvolvidos como ponto de intersecção entre as demandas sociais e as investigações realizadas nas Universidades, como o grupo Escravidão e Invenção da Liberdade, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da UFBA. Seus resultados evidenciam experiências de negros(as) como sujeitos protagonistas no processo histórico de construção do país em contraposição a uma visão idílica ou mesmo esquemática em modelos explicativos da escravidão.  

Os limites deste trabalho não permitem expandir o tema, embora possam ser mencionadas obras coletivas do referido grupo[4], verdadeiros frutos dessas novas abordagens epistemológicas. Existem vários outros, em diversificadas áreas de atuação, como pode ser visualizado no repositório de grupo de pesquisa do CNPq.

Democracia real
O acesso aos vestígios do passado não se restringe à reconstrução histórica; como já anunciou Le Goff[5], esse procedimento diz muito mais da atualidade do que propriamente sobre o que se passou. Afinal, são disputas de memórias que sempre estão em jogo, de modo que todas tensões que por ora estão em evidência merecem estar em sincronia com todo percurso já vivido. Por estas razões, trazer à tona teorias e sujeitos é um posicionamento indispensável para o momento presente.   

A construção de uma democracia efetiva pressupõe o caminho da equidade. Insta dar projeção e, por conseguinte, possibilitar a circulação do pensamento negro, nas suas dimensões relativas ao conteúdo, à autoria e ao espaço de produção. Imperativo, na mesma linha, ressignificar o contexto social que silencia e torna invisível a palavra negra. Tais medidas buscam afastar um posicionamento fundado em uma matriz secular que não mais se sustenta.

Fomentar e dar evidência à produção intelectual, inclusive a jurídica, negra e antirracista é indubitavelmente parte fundamental do processo de conquista de uma democracia real.


[1] KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano.  Rio de Janeiro: Cobogá, 2019, p. 11-12.

[2] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006 [2000].

[3] SANTOS, José Antônio. História e Cultura afro-brasileira e movimento negro. Momento, v. 22, n. 2, jul./dez. 2013, p. 39-64.

[4]  REIS, J. S.; AZEVEDO, E. (Org.). Escravidão e suas sombras. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2012; e SAMPAIO, Gabriela dos Reis; CASTILLO, L. E. (Org.); ALBUQUERQUE, W. (Org.). Barganhas e Querelas da Escravidão: tráfico, alforria e liberdade, séculos XVIII e XIX. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2014.

[5] LE GOFF, J. História e Memória. São Paulo: Ed. Unicamp, 1996. [original dos ensaios: 1987-1982] [original do livro: 1982].

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    é doutoranda em Direito e Tutela na Università degli Studi di Roma 2, Tor Vergata, procuradora federal, assessora de ministro no STF e membro da Associação Internacional de Direito Constitucional (IACL-AIDC).

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    é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA, com especialização em Direito do Estado pela UFBA e advogado do Banco do Nordeste.

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