Diário de Classe

A crise política dos anos 20 e os riscos para o Estado de Direito

Autores

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

20 de junho de 2020, 10h42

Foi numa segunda-feira, mais precisamente em 23 de março de 1919, que cerca de 100 pessoas banais reuniram-se na Piazza San Sepolcro, em Milão, para lançar um movimento político que em poucos anos derrubou a democracia italiana. O movimento, organizado em forma de grupo paramilitar, inicialmente foi denominado por seus fundadores como Fasci Italiani di Combattimento, e pouco tempo depois deu origem ao Partido Nacional Fascista. Uma organização criada para representar os ressentidos do pós-Primeira Guerra Mundial, que, movidos pelo sentimento de “vitória amputada” – expressão criada pelo poeta Gabriele D’Annunzio –, buscavam expressar seus sentimentos mais bestiais.

Essa história é contada por Antonio Scurati em seu livro M: o filho do século. Escrito em forma de romance e lançado em 2019 no Brasil, M é só o primeiro volume de uma trilogia sobre o fascismo e seu grande líder, o ditador Benito Mussolini. Apesar de ser uma obra literária, Scurati escreveu seu romance com base em uma aprofundada pesquisa documental, o que permite ao leitor um conhecimento muito detalhado das entranhas do fascismo e de toda a violência que esta ideologia política perpetrou contra seus opositores.

Em M, Scurati nos relata diversos casos de extrema violência e brutalidade. De um movimento político pequeno e inexpressivo, nascido em 1919; o Fasci Italiani di Combattimento tornou-se um movimento de massas por meio dos massacres de opositores. As expedições para assassinar os inimigos do fascismo e queimar suas casas, seus sindicatos e partidos funcionaram como sua principal peça de propaganda.

Era com sangue que os novos integrantes da organização assinavam suas carteirinhas de filiação. O que permite a afirmar que ninguém foi enganado ao aderir ao fascismo de Benito Mussolini. Os italianos tinham acesso às notícias dos crimes praticados pelas esquadras dos camisas negras. No entanto, o gosto pela violência e a banalidade do mal serviram para engrossar as fileiras do fascismo.

Um dos assassinatos relatados no livro é o caso do deputado socialista Giacomo Matteotti. O parlamentar foi sequestrado e assassinado pelos camisas negras em junho 1924, após proferir dois discursos no Parlamento em que denunciava os atos de violência praticados pelos fascistas durante a última eleição, e que, por esse motivo, deveria torná-la inválida. Em democracias, críticas parlamentares como a de Matteotti seriam debatidas e analisadas por intermédio da via institucional, dentro da normalidade jurídica do Estado de Direito. Acontece que em 1924, em pleno governo fascista de Benito Mussolini, as instituições democráticas já haviam naufragado. E fazer oposição a este governo havia se transformado numa atividade de risco.

Em um momento que a democracia brasileira sofre duros ataques do presidente da República e de seus asseclas mais fanáticos, a leitura de M serve como uma advertência para os democratas. É preciso reagir enquanto ainda há tempo! Na Itália, de 1919, o fascismo teve espaço para nascer, desenvolver-se e conquistar o poder. As instituições não reagiram e acabaram pagando um preço muito elevado por sua inércia. Houve até quem imaginou poder controlar o fascismo se aliando a ele, como no caso dos liberais na eleição de 1921. Na época o jornal liberal Corriere della Sera escreveu um editorial avisando aos críticos que, “a chapa não é para ser comentada, é para ser votada”[1]. Desse modo os liberais ajudaram os fascistas a conquistarem algumas cadeiras no parlamento e a darem mais um passo rumo à destruição das instituições.

A história nunca se repete, mas com o livro de Scurati podemos acessar uma experiência política que chegou ao nível mais elevado da doença do autoritarismo político: o Estado totalitário. A conivência das instituições e da sociedade civil com o fascismo foi responsável pela destruição do Estado de Direito. No passado, os camisas negras usaram as milícias para assassinar seus inimigos políticos e ocuparam o Parlamento para acabar com ele. A estratégia era manter um pé nas ruas e outro na institucionalidade com o propósito de inaugurar uma era sem democracia. Hoje, muitas décadas após o fim do fascismo na Itália, o que vemos no Brasil é um presidente que diuturnamente estimula ataques contra o Congresso Nacional, o STF e a imprensa. O sistema que Bolsonaro quer destruir chama-se Constituição de 1988. Se o objetivo for alcançado, o Brasil tomará um rumo sombrio.

Uma Constituição, por si só, não protege um país. O que garante sua normatividade é o compromisso das instituições e da sociedade civil com a sua defesa. Desde de 2013 vem crescendo a pressão sobre a Constituição de 1988. E não faltam exemplos nesse sentido: polarização política, impeachment sem crime de responsabilidade, moralismo lavajatista, etc. E depois de tudo isso houve quem imaginou que um homem que cultua a ditadura militar de 1964 e que admira um torturador seguiria a liturgia democrática da presidência da República. Histórias como a que foi relatada pelo romance M nos mostra que nunca devemos subestimar um adepto do autoritarismo político.

[1] SCURATI, Antonio. M: o filho do século. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019, p. 379.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista CAPES/PROEX. Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é professor de Direito constitucional no Ceuclar (Batatais-SP), doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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