Opinião

Pandemia da Covid-19, crise institucional e autorrestrição judicial

Autor

20 de junho de 2020, 9h16

– I –

Em graves crises como a da pandemia da Covid-19, o Executivo deve ser sempre o protagonista no combate às causas e na formulação das soluções. Contudo, mais uma vez, o Judiciário tem dividido ou mesmo assumido esse protagonismo. Em todo o país, há decisões de diferentes instâncias judiciais determinando o lockdown em algumas cidades; suspendendo total ou parcialmente decretos de flexibilização do isolamento social; direcionado recursos orçamentários para o combate à Covid-19; impondo oferta de leitos de UTI e até construção de hospitais de campanha.

O STF assentou a competência concorrente entre União, Estados, DF e municípios concernente às medidas emergenciais; flexibilizou regras da LRF e da LDO para o cumprimento dessas medidas; determinou que agentes públicos devem tomar medidas com observância estrita de critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias; impôs que o governo federal mantivesse a divulgação na íntegra de dados referentes ao contágio e às mortes. Tudo isso em um ambiente de manifesta crise institucional entre o tribunal e a presidência da República, cujo ponto mais alto são as investigações criminais em face de aliados políticos e apoiadores do presidente (inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos).

Com efeito, em tempo de pandemia e de permanentes crises políticas e institucionais, muito tem se falado no dever de autorrestrição ou autocontenção judicial, principalmente por parte do STF. Todavia, ao contrário de seu adversário histórico "ativismo judicial", a autorrestrição não tem recebido um estudo mais analítico, conceitual e categorizante. Compreender a autorrestrição é essencial para que se possa não só identificar o ativismo, mas também avaliar seus pontos positivos e negativos. O estudo conjunto permite saber melhor quando uma das duas posturas adjudicatórias se justifica, ou quando nenhuma das duas está em jogo. O propósito deste texto é contribuir em alguma medida para este estudo, refletindo também sobre a atuação do Judiciário, e do STF em particular, diante de nosso dramático momento.

– II –

O historiador estadunidense Arthur Schlesinger Jr. foi pioneiro na utilização pública do termo "ativismo judicial", apresentando-o como oposto à "autorrestrição judicial". Ele examinou a formação da Suprema Corte de 1947 e dividiu-a em três grupos de juízes: "campeões do ativismo judicial"; "campeões da autorrestrição judicial"; e "juízes que eram o equilíbrio de forças". Juízes ativistas chegam a substituir a vontade do legislador porque acreditam que devem atuar fortemente na promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias, dos destituídos e dos indefesos. Juízes autocontidos possuem visão diferente: a Suprema Corte não deveria intervir no campo da política, e sim agir com deferência à vontade do legislador. Tratar-se-ia, para o autor, de um "conflito fundamental sobre a própria função do judiciário em uma democracia" [1].

O Justice Felix Frankfurter era, para Schlesinger, o modelo de juiz autocontido. Frankfurter defendia que o juiz deveria separar as convicções particulares de justiça substantiva do dever funcional na Corte e, por isso, sempre atuou com igual deferência ao legislador tanto conservador como liberal. Foi um juiz que adotou a autorrestrição como princípio de adjudicação que valia "para todas as estações" [2]. Acreditava que a Constituição conferia amplíssima margem de conformação ao legislador. Afinal, "pode ser tão ativista pretender que as palavras da Constituição provejam todas as respostas quanto ignorar seu texto em ordem a alcançar resultados que suceda a aprovar" [3].

A abordagem de Schlesinger revela que as divergências são, enfim, uma disputa sobre o lugar da Suprema Corte no sistema de governo norte-americano; sobre a extensão na qual a corte está permitida a intervir sobre o campo da política. Mais do que um embate jurídico-metodológico, a discussão é de ordem político-institucional. O autor, de um modo geral, tomou partido da autorrestrição: "os maiores interesses da democracia nos Estados Unidos requerem que a Corte retraia ao invés de expandir seu poder". Contudo, advertiu que o ativismo seria justificado caso "ameaçadas as liberdades que garantem a própria participação política dos indivíduos" [4]. Schlesinger não recusou o ativismo em absoluto, apenas não o aceitava como rotina institucional da democracia norte-americana.

– III –

Extrai-se, assim, que a deferência em favor dos outros poderes apresenta-se como elemento clássico da formulação da autorrestrição judicial. Não obstante, esse não é o único elemento. A prudência, como mecanismo de preservação da própria autoridade judicial, também se revela fundamento que dá sentido à autorrestrição judicial. A abordagem entre deferência e prudência pode ser tida, portanto, como a fórmula adequada para contornar os defeitos de indefinição e polissemia do termo.

A origem desses elementos deve ser buscada nos debates que marcaram o surgimento do constitucionalismo democrático nos Estados Unidos e a definição inicial do papel do Judiciário no sistema político. Ao tempo da Convenção Constitucional, nas discussões sobre quem teria autoridade para interpretar e definir os sentidos do texto da Constituição, não havia dúvidas, mesmo entre os que discordavam sobre todas as outras questões fundamentais, que a judicial review apenas poderia ser exercida com a mais absoluta restrição judicial (judicial restraint). Isso significava que os juízes deveriam agir com modéstia, devendo evitar, a todo custo, interferir nas decisões dos outros poderes. Todavia, não havia consenso entre as "facções constituintes" sobre quais eram os fundamentos nem a exata medida dessa modéstia.

Os republicanos acreditavam na autorrestrição como um exercício de deferência aos outros poderes em homenagem ao autogoverno popular (a visão Jeffesrsoniana da autoridade judicial perante uma sociedade democrática). Conquanto igualmente defendessem a autorrestrição judicial, os federalistas não invocavam razões democráticas, e sim "de prudência e de conveniência política: algo necessário para assegurar e preservar a autoridade judicial (em vez de popular), através da minimização dos riscos do excesso (judicial)" [5].  

O primeiro fundamento observa valores políticos e se encaixa na teoria do constitucionalismo democrático: as cortes devem cumprir o papel de guardiã da constituição em favor do autogoverno popular. O segundo fundamento observa valores de estabilidade institucional: as cortes devem respeitar as decisões dos outros poderes, evitando agir de forma agressiva a ponto de produzir reações políticas adversas (political backlash) e, com isso, proteger a capacidade de cumprir seu papel institucional. No primeiro caso, a deferência é um valor político-democrático; no segundo, a prudência configura uma postura de caráter político-institucional. Longe de serem adversários, esses elementos podem ser complementares.

Considerados esses fundamentos, penso que a autorrestrição judicial pode ser conceituada como a filosofia adjudicatória ou mesmo a prática decisória que consiste em retração do poder judicial em favor dos outros poderes, seja por deferência político-democrática, seja por prudência político-institucional. É possível, desse modo, sistematizar as medidas de autorrestrição segundo os critérios de deferência e prudência, o que significa esquematizar e categorizar diferentes posturas decisórias levando em conta o(s) fundamento(s) da conduta judicial autocontida. Atento à essa distinção, Richard Posner descreveu duas posturas básicas: I) autorrestrição estrutural (structural self-restraint); e II) autorrestrição prudencial (prudential self-restraint[6].

Clique aqui para ler a íntegra do artigo

 


[1] SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 75-77.

[2] MENDELSON, Wallace. The Influence of James B. Thayer upon the Work of Holmes, Brandeis, and Frankfurter. Vanderbilt Law Review Vol. 31 (1), 1978, p. 80.

[3]  WILKINSON III, J. Harvie. Cosmic Constitutional Theory. Why Americans Are Losing Their Inalienable Right to Self-Governance. New York: Oxford University, 2012, p. 35.

[4] SCHLESINGER Jr., Arthur M. The Supreme Court: 1947. Fortune Vol. 35 (1), 1947, p. 208 e 212.

[5] KRAMER, Larry D. Judicial Supremacy and the End of Judicial Restraint. California Law Review Vol. 100 (3), 2012, p. 626.

[6] Cf. POSNER, Richard A. The Federal Courts, Challenge and Reform. Cambridge: Harvard University Press, 1999, p. 314-328.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!