Opinião

O artigo 3º da Lei nº 14.010 e a violação ao princípio da isonomia

Autor

  • Acácia Regina Soares de Sá

    é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) mestre em Políticas Públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) coordenadora do grupo temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJDFT integrante do grupo de pesquisa de Hermenêutica Administrativa do UniCeub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura (Enfam).

20 de junho de 2020, 6h16

Com a aprovação no dia 10 de junho de 2020 da Lei nº 14.010/20 que dispôs sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia da Covid-19, ficaram impedidos ou suspensos os prazos prescricionais a contar de sua vigência até 30 de outubro de 2020, excetuando-se as hipóteses previstas em leis específicas.

A edição do diploma legal acima mencionado se deu, conforme previsto em sua própria ementa, por conta da pandemia de Covid-19 que veio impôs o distanciamento e o isolamento social, o que dificultou a propositura de determinadas ações, além de trazer consigo questões de ordem social e econômicas que também acabam por influenciar nas referidas ações.

De fato, diante do quadro social e econômica no qual nos encontramos, a edição da referida lei visa atender os anseios da sociedade abalada com a presente crise. No entanto, temos que refletir sobre a situação das ações em face do Poder Público, isso porque o diploma legal em comento é taxativo em se referir ao regime jurídico das relações privadas, o que exclui as ações em face da fazenda pública.

Nesse sentido, a Lei n.º 13.979/20 que tratou das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública para o combate ao coronavírus previu apenas em seus art. 6º-C e 6º-D que não correriam os prazo processuais em desfavor da administração, como os prazos contra os acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade, suspendendo a também o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas no regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, na lei que trata do exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, na lei que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira e nas outras normas aplicáveis a empregados públicos e, suspendeu ainda, a o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na lei de licitações, na lei do pregão e na lei que tratou do RCD (Regime de Contratação Diferenciada).

Diante desse quadro, é necessário questionar se ausência de previsão quanto à prescrição nas relações entre particulares e a administração pública não fere o princípio da isonomia, isso porque as regras de prescrição não admitem interpretação analógica ou extensiva, tema já pacífico entre os civilistas, conforme sustentam Washington de Barros Monteiro e Yussef Said Cahali, entre outros, trazendo a baila ainda as palavras de Pontes de Miranda nesse sentido “as regras jurídicas sobre prescrição hão de ser interpretadas estritamente, repelindo-se a própria interpretação analógica”.¹

Dessa forma, contatando-se a impossibilidade da aplicação das disposições do art. 3º da Lei n.º 14.010/20 às relações entre particulares e o Estado, já que não é possível realizar sua interpretação analógica ou extensiva, podemos então chegar a um conclusão, ainda preliminar, a inexistência de regra similar em relação as relações acima elencadas fere o princípio da isonomia, isso porque trata particulares de forma desigual a depender da parte contra quem litigem, se um outro particular ou se um ente federado.

Imaginemos a situação de um particular que cobra uma dívida de outro particular, na atual situação, teve o prazo prescricional para ingressar com a presente ação suspenso, no entanto se um outro particular em condições similares tiver uma dívida a ser cobrada de um Estado não se beneficia de tal suspensão ante a impossibilidade da ausência de previsão legal, ante a impossibilidade de utilização da interpretação analógica ou extensiva quanto ao tema, o que, par de todas as prerrogativas das quais gozam os entes federados, não se justifica no presente caso, já que as razões para criação do art. 3º da Lei n.º 14.010/20, expostas no início do presente texto são comuns a todos, independentemente da parte da adversa.

Assim, diante da situação acima exposta, fica clara a violação ao princípio da isonomia, já que não se trata aqui da utilização da expressão “tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades”, já que a crise sanitária, econômica e social atinge a todos.

1. Miranda, Pontes de. Tratado de direito privado, Tomo VI. Rio de Janeiro. Editor Borsai. 1970. p.317.

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    é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, professora de Direito Constitucional e Administrativo da Escola de Magistratura do Distrito Federal–ESMA, especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina–UNISUL e mestranda em Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília–UNICEUB.

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