Opinião

O sequestro de bens a favor da Fazenda pública

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19 de junho de 2020, 15h20

No diálogo platônico "Crátilo: sobre a justeza dos nomes"[1] foi empreendido um debate de Sócrates com Hermógenes e Crátilo, a respeito da origem dos nomes. Se para o Hermógenes o nome é o resultado de uma convenção, para Crátilo, os nomes fazem parte da natureza dos objetos. Platão defendeu uma posição intermediária, ao reconhecer que existe certo grau de convencionalismo, todavia, as pessoas não poderiam ficar trocando o nome das coisas à vontade, porque, nesse caso, a linguagem se tornaria impossível, devendo existir uma ordem nas coisas e na linguagem.

É premente a teorização do "sequestro" previsto no Decreto-lei nº 3.240/41, a começar pelo nome dado ao instituto. Sequestro "é a retenção da coisa litigiosa, por ordem judicial, quando presente dúvida acerca de sua propriedade ou origem"[2]. Essa é, inclusive, a leitura do art. 125 do CPP. Todavia, para o Decreto-lei, o “sequestro” em favor da fazenda pública é admitido qualquer que for a origem do bem.

Ou seja, não há compatibilidade semântica entre o nome conferido ao instituto do sequestro do Decreto-lei e o do CPP, o que conduz a uma aporia da noção da medida assecuratória, seus requisitos e limites, que inevitavelmente influirá no dever de fundamentação do ato decisório.

Um sem número de acautelamentos tem sido amparado pelo Decreto-Lei 3240/41, que sujeita a "sequestro" os bens das pessoas indiciadas ou denunciadas por crimes que resulte em prejuízo para a fazenda pública, de um lado, e locupletamento ilícito em benefício próprio, do outro (art. 1), desde que haja indícios veementes de responsabilidade pessoal (art. 3). É que, nos termos do art. 4 deste Decreto-lei, o sequestro pode recair sobre todos os bens, independente de sua origem. Esta é, inclusive, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.[3]

Embora o entendimento atual seja no sentido de que as medidas assecuratórias do CPP não teriam revogado o Decreto-Lei, ainda não houve o necessário enfrentamento pelo Supremo Tribunal Federal sobre a sua recepção pela Constituição Federal. Um diploma, que retira da parte investigada ou acusada que sofre os efeitos da medida de “sequestro”, a possibilidade de propor embargos (art. 1, parágrafo 2), não prevendo qualquer outra ação própria ou recurso para insurgência quanto ao acautelamento dos bens, não pode se amoldar ao marco de democratização decisória instituído pela Constituição Federal. A rigor, há clara vedação às garantias do contraditório, do devido processo (que se impõe seja constitucional), e da inafastabilidade da jurisdição.

Não se refuta que a própria Constituição Federal tutela a medida em face da violação ao direito de ação, intentada pelo Decreto-lei, com a previsão do mandado de segurança. Todavia, o espaço cognitivo dessa ação constitucional é extremamente limitado, exigindo prova pré-constituída para demonstrar o direito líquido violado.

Nessa linha de raciocínio, em face da medida de “sequestro” em favor da fazenda pública não está o investigado autorizado a produzir prova, de forma contraditória, em procedimento específico, para demonstrar a ausência dos requisitos do acautelamento de bens. Essa violação é gravíssima, porquanto há uma clara vedação à construção de um provimento, pelo processo jurisdicional, em que haja fruição efetiva dos direitos e garantias constitucionais àquele que sofre os efeitos da decisão de indisponibilidade.

Procedendo a um recorte dos procedimentos investigatórios e ações penais por crime contra a ordem tributária, tem-se que o sequestro de quaisquer bens da parte, independente da licitude ou ilicitude de sua origem, pelo Juízo Criminal, tem potencialidade para decorrer em uma cobrança indireta de tributos. Uma vez acautelado o bem para sanar o prejuízo da fazenda pública (o tributo suprimido ou reduzido), tem-se que o Ministério Público ou Juízo Criminal pode vir, reflexamente, a substituir o ente fazendário na cobrança de impostos, eis que na prática, a perda do bem sequestrado deve gerar o efeito da extinção da obrigação tributária.

Quanto a esse fundamento, importante rememorar a jurisprudência do STF, no sentido de proibir a implementação de meios de cobrança indireta de tributos[4], permitindo-se, pela via do debate crítico, uma possível conclusão de que estaria o Juízo Criminal substituindo a autoridade fazendária competente na cobrança de impostos, já que esta detém uma séria de medidas executórias eficazes (inclusive de natureza cautelar), hábeis a tutelar o seu direito ao ressarcimento do prejuízo sofrido pela supressão ou redução do tributo.

De outro ângulo, a teorização do acautelamento em favor da fazenda pública é necessária para se alcançar qual seria a legítima fundamentação para se decretar a medida assecuratória, quando se está diante de um ilícito penal que tenha causado prejuízo à fazenda pública.

A lógica de se decretar o acautelamento de bens no processo penal é a tutela dos interesses econômicos da parte, preservando os bens para uma eventual ação civil ex delicti, destarte, para garantir a reparação do dano ocorrido pelo cometimento da infração penal.

Mesmo se considerado não revogado, ou recepcionado pelo Constituição, o próprio Decreto-lei nº 3.240/41 estabelece parâmetros vinculantes de fundamentação, para estabilização decisória. Um seria a necessária materialização do suposto prejuízo da fazenda pública, numa relação de causa e efeito com o locupletamento ilícito. Nesse sentido, o sequestro de "todos os bens" encontra um limite preciso, que seria a quantificação do alegado prejuízo, e sua relação com o enriquecimento ou acréscimo patrimonial ilícito. O segundo, é evidente, mas necessário se destacar, que é ser o acautelamento de bem de titularidade da parte indiciada ou acusada, e não de seu cônjuge, parceiro, sócios, ou terceiros que tenha relação de propriedade com esses bens, mesmo que em sociedade. Isso porque o próprio decreto-lei precisou a necessária prova da veemência dos indícios de responsabilidade da parte para o sequestro.

Tratam-se de fundamentos que devem ser arguidos e provados pelo Ministério Público e enfrentados na decisão, numa cognição sobre o "sequestro" de bens tratado no decreto-lei. Somam-se a eles outros ínsitos à natureza de qualquer medida acautelatória que, repita-se, no viés ora tratado, tem relação com a preservação dos bens para garantia da reparação do dano, no juízo cível, numa clara relação de Direito Civil e os requisitos das cautelares do art. 300 do CPC, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora.[5]

Especificamente em relação ao fumus boni iuris, o próprio Decreto-lei elege a narrativa fática e jurídica mínima e indispensável para o acautelamento. Já em relação ao periculum in mora, trazer sua noção do processo civil para o penal revela-se necessário, ante o interesse patrimonial a ser resolvido na esfera civil, ex vi do disposto no art. 9 do Decreto-lei 3.240/41. Ademais, enquanto o processo penal bem sedimentou a noção do periculum libertatis, ao tratar de cautelar de natureza pessoal, é o processo civil quem teorizou o periculum in mora, relacionada a cautelar de natureza real.

Essa conceituação, no contexto da principiologia que ampara o processo civil, está ligada ao perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, consoante o art. 300. Ainda, segundo esse artigo, a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão.

O que se revela é a necessidade de se demonstrar e provar o periculum in mora nas medidas cautelares, inclusive naquela inserta no Decreto-lei em referência, afinal, está-se diante de medida que impacta o direito constitucional de propriedade e a presunção de inocência.

O risco de dano, no viés da processualidade democrática, não deve ser presumido ou encontrado em hipotética gravidade da conduta que se apura. Ele deve ser provado, mesmo que por fortes e significativos marcos de dilapidação patrimonial.

Por evidente, a matéria posta demanda uma teorização crítica do instituto do acautelamento de bens, para se conhecer sua natureza  (se penal ou civil); seu procedimento (se necessário um processo incidental e autônomo); se indispensável a intervenção da parte que potencialmente será beneficiada pela medida (a fazenda pública), dentre várias questões, afinal, nesse breve ensaio tratou-se de direitos e garantias constitucionais vinculantes à legitimação decisória do acautelamento real, que no marco do Estado Democrático de Direito impõe-se seja democrático e demarcado pela legalidade e espaço efetivo de construção do provimento.


[1] CRÁTILO-PLATÃO Diálogo sobre a Justeza dos Nomes, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1994 (tradução do grego Pe. Dias Palmeira)

[2] PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de processo penal. 17 ed. São Paulo: Atlas, p. 313.

[3] STJ – AgRg no AREsp 1267816/RN; AgRg no RMS 60.570/MS; STJ – RCDESP no Inq 561-BA, AgRg no RMS 24083-PR;   STJ – EDcl no RMS 29943-SP, REsp 1133763-DF, REsp 149516-SC.

[4] Nesse sentido, são as súmulas definidas pelo STF: Súmula 70: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos

[5] Aury Lopes Júnior faz precisa relação entre as cautelares penais de natureza real, com os requisitos das cautelares próprios do Código de Processo Civil. LOPES JR. Direito Processual Penal. 10 ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 917.

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