Migrantes e a pandemia

Juíza extingue ação que quer derrubar portaria que regula entrada de estrangeiro

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19 de junho de 2020, 21h01

A Justiça não pode admitir ação civil pública que tem por objetivo obter a declaração de ilegalidade e, consequentemente, a suspensão dos efeitos de uma norma, sem apontar ato lesivo concreto. Afinal, não se deve usá-la como substitutivo de ação direta de inconstitucionalidade nem de meio para discutir tese.

Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Migrantes venezuelanos em Boa Vista (RR)
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com este entendimento, a 3ª Vara Federal de Porto Alegre extinguiu ACP ajuizada pela Defensoria Pública da União no Rio Grande do Sul contra a União, visando suspender os efeitos de alguns dispositivos da Portaria Interministerial 225, de 22 de maio de 2020, tomados como ilegais e inconstitucionais.

A norma federal, editada pelos ministérios da Casa Civil, da Justiça e Segurança Pública, da Infraestrutura e da Saúde, restringe, de forma "‘excepcional e temporária", a entrada de estrangeiros como medida de prevenção à infecção humana pelo novo coronavírus. No entanto, foi vista pela Defensoria como atentatória aos direitos fundamentais dos migrantes e refugiados, principalmente de venezuelanos.

A juíza federal substituta Thais Helena Della Giustina extinguiu a ação, sem resolver o mérito, por reconhecer a "inadequação da via eleita", em função da ausência de interesse processual, como prevê o artigo 485, inciso VI, do Código de Processo Civil. É que a autora pretende o reconhecimento da inconstitucionalidade e ilegalidade de dispositivos da referida norma, o que é incabível numa ação civil pública.

Segundo entendimento jurisprudencial consolidado — discorreu na sentença —, a ACP pode ser utilizada como instrumento de controle de constitucionalidade, desde que este fique ligado à causa de pedir. Ou seja, a invalidade de determinado ato normativo pode ser apreciada incidentalmente, como meio de resolução de um litígio concreto.

Discussão do direito em tese
"Não há, no caso dos autos, a delimitação de relação jurídica concreta, pretendendo, a parte autora, a declaração de invalidade da aludida portaria em tese. De fato, conquanto tenham sido noticiadas situações de pessoas atingidas pela Portaria Interministerial 225/2020, o objeto da presente demanda consiste, notadamente, na apreciação do direito em tese, o que se afigura incabível em sede de ação civil pública, sob pena de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal", escreveu a juíza.

A sentença extintiva foi proferida no dia 17 de junho. Cabe recurso de apelação ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).

Ação civil pública
De acordo com a inicial, o ato normativo discrimina, especialmente, os migrantes provenientes da Venezuela, pois cria restrições específicas, como a proibição de entrada mesmo nos casos de quem busca a reunião familiar. Também dificulta o trânsito migratório dos que possuem o Registro Nacional Migratório, dos que têm autorização de residência outorgada pelo governo brasileiro e dos que são reconhecidos como residentes fronteiriços.

O defensor regional de direitos humanos no Rio Grande do Sul (DRDH-RS) em exercício, Gabriel Saad Travassos, diz que esta e outras portarias interministeriais significam comportamento contraditório do estado brasileiro. É que o Brasil, desde 2019, reconheceu a ocorrência de graves e generalizadas violações de direitos humanos na Venezuela, o que justificou o reconhecimento, pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), do status de refugiado aos deslocados venezuelanos.

"Cabe ressaltar que a Resolução 2/18, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, exortou os estados a garantirem o reconhecimento da condição de refugiados às pessoas venezuelanas e respeitarem o princípio e direito à não devolução ao território venezuelano. Inexiste dúvida que qualquer ação em sentido contrário, amparada por essa Portaria interministerial, acarretará a responsabilização internacional do estado brasileiro, como se verificou em outros precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos", destacou.

Em face do relatado na inicial, a DPU requereu a suspensão dos efeitos dos dispositivos do artigo 4º, parágrafo 5º; artigo 5º, parágrafo 1º; e artigo 7º, incisos I a III — todos da Portaria Interministerial 225/2020. Também pediu a declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade da Portaria Interministerial e a condenação da União em se abster de editar novos atos normativos infralegais que, "à revelia dos preceitos constitucionais ou legais, prevejam tratamento discriminatório a migrantes de qualquer origem ou nacionalidade, a criminalização do migrante, a deportação imediata e a inabilitação do refúgio".

Clique aqui para ler a íntegra da Portaria Interministerial 225
Clique aqui para ler a sentença extintiva
5031124-06.2020.4.04.7100/RS

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