Opinião

O 'novo normal' do Direito na pós-Covid-19

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19 de junho de 2020, 7h02

A pandemia da Covid-19 fez da incerteza um sentimento generalizado em indivíduos e organizações. Uma crise sanitária sem precedentes aliada à globalização acentuada, que permitiu sua exponencial evolução torna qualquer vislumbre de previsibilidade uma tarefa distante dos mais variados setores econômicos. O que se sabe, no entanto, é que o impacto será inevitável. Diante desse cenário, como fica o mercado jurídico em um mundo transformado?

Quando a pandemia ainda era assunto recente, Thomas Friedman defendeu a ideia de que o planeta que conhecemos já é passado; propôs, ainda, que a Covid-19 fosse um marco histórico, um divisor de águas, para um mundo antes e depois de sua ocorrência. Partindo do mesmo pressuposto, Yuval Harari nos contemplou com os dilemas éticos e sociais que enfrentaríamos no contexto da crise: liberdade versus privacidade e individualidade versus solidariedade. As ideias de Harari e Friedman seguem linhas distintas, mas nos demonstram que a Economia, atrelada a uma sociedade em vertiginosa transformação, seria invadida de forma nunca antes vista por uma avalanche de novos hábitos e expectativas.

É verdade que a profissão jurídica, antes tida como um inabalável pilar de nossa estrutura social, nos últimos anos tem sido relacionada cada vez mais à inovação e à interferência de novas tecnologias. Ainda que esse trabalho tenha sido mais uma admissão de um fato inegável já foi demostrado em inúmeras oportunidades que não há uma "Advocacia 4.0" e, sim, uma atividade que, desde sua criação, é afetada por novas tecnologias e sequentes evoluções sociais —, não é possível imaginar que o ecossistema do Direito, por assim dizer, será isento dos efeitos da pandemia.

Isso não significa, entretanto, que devemos encarar a realidade como um "novo normal", como tem sido amplamente defendido. Primeiro, porque o termo é impreciso em sua origem: uma sociedade em ininterrupta transição, como a que vivenciamos atualmente, vive um "novo normal" a cada segundo. Segundo, e mais importante: assumindo que há um marco a.c. e um d.c. (antes e depois do coronavírus), como proposto por Friedman, falar em "novo normal" significa admitir que não evoluímos nada até agora e, mais sério ainda, que após a pandemia teremos um estado de inércia associado a uma sensação de normalidade.

Em suma, o "novo normal" do Direito, assim como em qualquer outro setor econômico, é um conceito simplista demais para ser usado no campo real. O que temos durante a pandemia, nesse sentido, é uma grande aceleração das transformações tecnológicas e multidisciplinares que já eram percebidas e que continuarão ocorrendo, talvez em menor velocidade, quando o contato social e seus desdobramentos retornarem à rotina dos indivíduos.

O que isso significa, em termos práticos, para os agentes desse mercado tão tradicional, que gradativamente vêm aprendendo a aceitar a mudança como axioma de suas atividades?

O principal viés da transformação, indiscutivelmente, é o tecnológico. Assim como em outras muitas profissões, o contato físico provou-se superestimado e o advento das plataformas de conexão remota permitiu a plena realização das atividades sem a necessidade de deslocamentos e reuniões presenciais. É evidente que há uma série de obstáculos a serem superados, como os relacionados à inclusão digital, por exemplo, mas o fato é que é possível, sim, exercer o Direito à distância.

Essa vertente tecnológica também diz respeito à adoção de ferramentas em prol da eficiência e colaboração, como por exemplo plataformas interativas para organizações de diferentes portes. A ideia é utilizar a tecnologia para um trabalho cada vez mais compartilhado e multidisciplinar, cumprindo assim uma adequação da profissão às práticas e expectativas das gerações mais novas.

Além disso, a pandemia nos ensina objetividade e acessibilidade. Questões como linguagens rebuscadas, complexas e compreendidas apenas pela classe profissional já vinham sendo objeto de discussão anterior mas a evolução rápida da situação de crise nos mostra diariamente o valor que uma comunicação direta e simples tem para o acesso à Justiça e demais funções sociais do Direito.

Não obstante, é inegável que o momento em que vivemos representa uma revisão, talvez mais ampla do que parece, de virtudes. Nesse sentido, é possível admitir categoricamente que seres humanos, elementos mais importantes de qualquer relação jurídica, passarão a valorizar mais certas ações e posturas do que outrora. No Direito, saem de cena a rigidez e a formalidade, dando lugar a uma postura mais flexível e colaborativa. Consequentemente, valores já presentes na profissão, como empatia, diversidade e interdisciplinaridade, por exemplo, assumem papel de destaque e contribuem para uma crescente relevância do alinhamento de expectativas para qualquer vínculo interpessoal, seja este cliente-escritório, judiciário-cidadão, comprador-vendedor, entre tantos outros com os quais lidamos diariamente.

Feitas essas considerações, todavia conclui-se que não há de se falar em um "novo normal" para a advocacia ou para qualquer outra profissão, organização ou setor econômico. Defensores dessa ideia esquecem-se que a sociedade vive uma história de contínua transição e essa capacidade de adaptação é o que nos define como seres humanos. Quando isso é compreendido, fica claro que não há um "novo", mas apenas um "normal", em constante evolução. Ou entendemos que desaprender e reaprender hábitos, costumes e convicções é algo fundamental para nossa sobrevivência ou sofreremos muito com qualquer mudança. Eis um ótimo momento para incorporar isso.

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