Opinião

Punições disciplinares não representam justa causa para a desfiliação partidária

Autor

  • Guilherme Barcelos

    é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) mestre em Direito Público pela Unisinos-RS pós-graduado em Direito Constitucional (ABDConst) e em Direito Eleitoral (Verbo Jurídico) graduado em Direito pela Urcamp-RS membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Membro do Conselho Editorial da Editora Juruá (Curitiba-PR) advogado e sócio fundador da Barcelos Alarcon Advogados (Brasília-DF).

19 de junho de 2020, 11h37

A fidelidade partidária é um dos temas mais controversos do direito eleitoral e partidário brasileiro, ao menos desde a resposta do TSE à Consulta n° 1398/2007 no sentido de que os partidos políticos têm o direito de preservar a vaga parlamentar obtida pelo sistema eleitoral proporcional, na hipótese de haver pedido de cancelamento de filiação ou transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda. Grosso modo, o titular da cadeira parlamentar obtida pelo sistema proporcional seria o partido político, não o candidato.

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Ainda em 2007, o TSE editou a Resolução n° 22.610/2007, com alterações pela Resolução n° 22.733/2008, passando a regulamentar o procedimento pelo qual o partido político poderia buscar a vaga parlamentar do candidato que, sem justa causa, tenha cancelado a sua filiação ou tenha fugado para outro partido. Trata-se, pois, da ação de decretação de perda de mandato eletivo por infidelidade partidária.

Os legitimados ativos para a propositura dessa ação são os seguintes: em primeiro lugar, o partido político, que deve acionar a Justiça Eleitoral (TREs ou TSE) no prazo de até 30 dias após o ato de desfiliação pura e simples do candidato ou de filiação do mesmo candidato eleito em outro partido. Na hipótese de o filiado a novo partido político ser ocupante de cargo eletivo (proporcional, afinal, o tema da fidelidade partidária não se aplica aos cargos majoritários), a Justiça Eleitoral intimará pessoalmente o partido político do qual o cidadão tenha fugado, ocasião na qual passará, a partir daí, a ser contado o prazo decadencial precitado (30 dias). Quedando-se inerte o partido prejudicado, poderão propor a mesma ação o Ministério Público Eleitoral e o sujeito imediatamente interessado na obtenção da cadeira a ficar vaga com a perda do mandato do trânsfuga (primeiro suplente do partido). Nessa hipótese, a ação deverá ser proposta no prazo de até 30 dias após o decurso do prazo do partido político prejudicado.

Quais seriam, então, as hipóteses de justa causa para a desfiliação partidária? De acordo com a atual redação da Lei n° 9096/95 (Lei dos Partidos Políticos LPP), as hipóteses são as seguintes: mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; grave discriminação política pessoal; e mudança de partido efetuada durante o período de 30 dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente. Trata-se, aqui, do artigo 22-A da LPP. Migração para um neófito partido político não mais se encontra prevista como hipótese de justa causa para a desfiliação partidária. E, para além das hipóteses legais em comento, há outra que merece o devido destaque, qual seja a anuência (autorização) expressa do partido político acerca da desfiliação do filiado ocupante de cargo eletivo, com consequente filiação a novo partido ou não, ocasião na qual o filiado trânsfuga também não incorrerá em infidelidade partidária.

De qualquer modo, indaga-se: o candidato teria algum instrumento processual apto à defesa antecipada dos seus interesses, no sentido de, na hipótese de cancelamento da filiação ou de mudança de partido, evitar ser acionado perante a Justiça Eleitoral pela incidência em hipótese de infidelidade partidária? A resposta é: sim. Trata-se, por oportuno, da chamada ação declaratória de justa causa para desfiliação partidária, na qual o candidato busca a Justiça Eleitoral (TREs ou TSE) visando a que esta declare a existência de hipótese de justa causa para a desfiliação, impedindo, com isso, que o candidato eleito perca o respectivo mandato. A ação se encontra prevista na Resolução TSE n° 22.610/07.

E é justamente isso o que vem ocorrendo nos últimos tempos perante o TSE, notadamente quanto a deputados federais sancionados pelos respectivos partidos políticos em razão da prolação de votos contrários às diretrizes programáticas das agremiações. Nesse cenário, votos a favor da Reforma da Previdência aprovada pelo Congresso Nacional em 2019, contrários à eventuais diretrizes partidárias, representam o quadro fático subjacente.

Partidos políticos como o PDT e o PSB fecharam questão (programática, não pragmática!), por suas direções nacionais, contra a reforma então em debate. Ocorreu, porém, que vários deputados das siglas, desrespeitando as diretrizes partidárias acerca do tema, votaram a favor da reforma, o que desencadeou, no seio das agremiações, a instauração de processos disciplinares contra os parlamentares dissidentes.

Eis, então, que o TSE começou a analisar essas demandas. Na sessão plenária de 12 de maio de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral iniciou o julgamento de uma ação declaratória de justa causa proposta pelo deputado federal Felipe Rigoni Lopes, do Espírito Santo, para que possa se desfiliar do Partido Socialista Brasileiro (PSB) sem perder o mandato (PET n° 060064166). O deputado alega que, após manifestar seu voto em prol da reforma, teria passado a sofrer grave perseguição pessoal por parte do partido, o que caracterizaria a devida justa causa para se desligar da agremiação. Felipe alega ainda que o partido teria descumprido uma carta-compromisso firmada entre ambos quando do ato de filiação. Após o voto do relator, ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, julgando improcedente a ação, pediu vista dos autos o ministro Luís Roberto Barroso. O julgamento se encontra suspenso.

A questão é controversa. Porém, não é das mais complexas.

Note-se que o artigo 17 da Constituição Federal é categórico ao assegurar a autonomia partidária, sendo que o artigo 14 da LPP, seguindo o horizonte constitucional, assenta previsão no sentido de que o partido é livre para fixar, em seu programa, seus objetivos políticos e para estabelecer, em seu estatuto, a sua estrutura interna, organização e funcionamento.

Já a filiação partidária estabelece um vínculo jurídico entre o cidadão e a entidade partidária. É regulada nos artigos 16 a 22-A da Lei 9.096/95 (LPP), bem como no estatuto da agremiação. Só pode se filiar a um partido quem estiver no pleno gozo de seus direitos políticos e atenda aos requisitos postos na lei e em seu estatuto. O princípio da autonomia partidária assegura à agremiação o poder de definir as regras e os critérios que entender pertinentes para a admissão e o regime de continuidade dos filiados, o que deve ser fixado no estatuto, sendo assegurada a igualdade de direitos e deveres (LPP, artigo 4º).

É prerrogativa partidária, portanto, perquirir a responsabilidade dos seus filiados, mandatários ou não, pela violação dos deveres partidários, que deve ser apurada e punida pelo órgão competente, na medida do que disponha o estatuto partidário. Havendo, então, violação das diretrizes partidárias por parte dos seus filiados, o partido político possui o direito de buscar a responsabilização dos dissidentes, desde que eventuais medidas disciplinares ou punições estejam previstas no estatuto partidário e, evidentemente, que seja assegurado o devido processo legal ao filiado (artigo 23 da LPP).

O exercício, então, de uma prerrogativa partidária não poderia, em tese, representar grave perseguição pessoal, nem de longe. Salvo, evidentemente, situações excepcionais como a própria utilização da prerrogativa partidária, sem elementos concretos a indicar transgressões, simplesmente para perseguir filiados. Nas hipóteses, parece não haver nada disso. O que há, ao contrário, é o descumprimento, por parte dos filiados, de programas partidários, diretrizes partidárias, o que autoriza, claramente, que o partido busque, internamente, as respectivas responsabilizações, observadas as respectivas normas estatutários, bem como o devido processo legal.

Ocorre que a questão em comento ganhou certo relevo, sobretudo a partir das referências a "cartas-compromisso" entre filiados e partidos políticos, que dariam certa liberdade àqueles para que votassem de acordo com as respectivas consciências, ainda que em desacordo com os programas partidários. O argumento é válido? Sim, como defesa, sim.

Porém, não há uma linha sequer, seja na Constituição, seja na Lei dos Partidos Políticos, seja na Resolução TSE n° 22.610/07, a atribuir valor jurídico às indigitadas "cartas-compromisso", a ponto de a sua inobservância vir a representar justa causa ao filiado. Essas cartas, em verdade, não possuem qualquer relevância sob o prisma jurídico.

A improcedência dessas ações parece ser o caminho, portanto. E, nesse ínterim, acertou o ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto ao proferir voto pela improcedência da referida PET n° 060064166. A vingar a normatividade dos textos constitucional, legal e de resolução, a improcedência da demanda deverá se impor. Assim como de outras demandas similares que também desaguaram no TSE.

Não tendo havido expulsão (hipótese na qual o parlamentar poderia prosseguir no exercício do mandato), estando devidamente justificada a instauração do processo disciplinar, respeitado o devido processo legal e, enfim, sendo proporcional a reprimenda imposta ao filiado, ainda que o mandato eletivo no Brasil não seja imperativo, nada há a reclamar.

O contrário, com o devido e merecido respeito, seria chancelar, por via transversa, eventuais candidaturas avulsas atípicas candidatos ditos independentes, ainda que filiados a partidos políticos. A filiação partidária, enfim, é condição constitucional de elegibilidade, restando assim prevista, pela pena do Constituinte Originário (!), no artigo 14 da CF. Somente pela via do legislador constituinte derivado poderia tal realidades ser modificada, assim sendo. E o cidadão, uma vez filiado, deve obediência ao programa partidário correspondente. Se dele discordar, que busque outro, arcando, no caso dos mandatários eleitos pelo sistema proporcional, com as consequências jurídicas do ato a incorrência, salvo existente efetiva hipótese de justa causa ou com a expedição de uma carta de anuência do partido político, em hipótese de infidelidade partidária, com a perda do direito de ocupar a cadeira parlamentar.  E a busca não seria nada difícil, diga-se de passagem, afinal, possuímos hoje no Brasil cerca de 35 partidos políticos devidamente constituídos. A oferta é grande, enfim.

Autores

  • é advogado, sócio fundador do escritório Barcelos Alarcon Advogados, mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS), pós-Graduado em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) e em Direito Eleitoral pela Verbo Jurídico, membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), professor de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral, professor da pós-graduação em Direito Eleitoral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Escola Judiciária do Tribunal Regional do Estado do Rio de Janeiro (EJE-TRE).

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