Olhar econômico

Processo administrativo tributário em perspectiva

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

18 de junho de 2020, 8h00

Spacca
A Justiça Tributária, no ambiente econômico nacional, pressupõe, de um lado, a elaboração de sistema intrinsecamente justo, que onere cada sujeito compativelmente à sua respectiva capacidade contributiva; e, de outro, a simplificação dos procedimentos e obrigações acessórias, a serem cumpridos pelos contribuintes. A redução da litigiosidade tributária junto ao Poder Judiciário, que se vê às voltas com milhões de ações tributárias e execuções fiscais, relaciona-se com ambas as perspectivas; e impõe o desenvolvimento e utilização de meios não judiciários, também conhecidos como alternativos, de resolução das questões tributárias. Esse caminho foi trilhado pela Lei 13.988/2020, que fixou requisitos e condições para a realização de transações no âmbito da cobrança de créditos tributários e não tributários da União e suas autarquias e fundações.

Inobstante, a relevância dessa possibilidade, o contencioso administrativo continua a ser o principal método não judiciário de resolução de conflitos tributários no Brasil. Impugnações e recursos apresentados pelos contribuintes e julgados por colegiados no âmbito da administração dos entes tributantes, dentre os quais se destaca o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), responsável pelos julgamentos administrativos na esfera federal.

Várias são as vantagens dos tribunais administrativos: (i) composição formada por julgadores com elevada capacidade técnica na área tributária, garantindo profundidade na análise dos casos; (ii) baixo custo para o contribuinte, tendo em vista a inexistência de exigência de depósitos ou garantias para a realização da defesa; (iii) automática suspensão da exigibilidade dos tributos, por força do art. 151, III, do CTN[1];  (iv) procedimento mais simples e célere que o processo judicial; e (v) o contribuinte ainda possui a via judicial, sem prejuízo de outros meios alternativos, caso a impugnação seja julgada improcedente.

O contencioso administrativo vem sofrendo modificações relevantes, com o intuito de aperfeiçoá-lo, dentre as quais: (i) a implementação de uma nova sistemática de resolver os empates, por meio do art. 19-E, recém inserido na Lei 10.522/2020; e (ii) a nova sistemática de julgamentos virtuais.

Os julgamentos no Carf são regidos pelas regras estabelecidas no Decreto 70.235/1972, ato normativo com natureza jurídica de lei ordinária. Seus colegiados são compostos paritariamente. Dos oito julgadores, metade representa os contribuintes; e metade a Fazenda Nacional. Até o advento da Lei 10.522/2020, a presidência cabia a representante da Fazenda, que em caso de empate resolveria o litígio com voto de qualidade, nos termos do art. 25, § 9º, do citado decreto: “Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o  voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes.” (não há grifo no original)

O novel artigo 19-E da Lei 10.522/2020, mudou tal sistemática, ao estabelecer, verbis:

Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte. (não há grifo no original)

Conforme a regra revogada, o presidente da turma possuía competência para, consoante sua convicção, decidir sobre empates, quer favorável, quer desfavoravelmente ao contribuinte [2]. Após a alteração legislativa, passou a viger a regra que, em caso de empate, deve prevalecer o entendimento pró-contribuinte.

A mudança legislativa suscitou controvérsias, tendo sido, inclusive, contestada sua constitucionalidade formal e material. Em razão de as ADI 6.399 (PGR), ADI 6.403 (PSD) e ADI 6.415 (Anfip) terem seguido o rito sumário (art. 12 da Lei 9.868/1999)[3], sem medida liminar suspensiva de seus efeitos, seu dispositivo foi aplicado pelo Carf, em julgamentos recentes.

Prévia às questões tratadas nas ADIs, discute-se a pertinência ou não da medida. Será que ao invés de se modificar sistemática nonagenária do procedimento administrativo federal — que adota o voto de qualidade — , poder-se-ia incrementar a imparcialidade do órgão por outras medidas pontuais, menos radicais?[4]

As ADIs trazem questionamentos de ordem formal a ser analisadas pelo Supremo Tribunal Federal: (i)  a incongruência entre a versão original da Emenda 09, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL/CE), e a versão aglutinada, ao final, no PLV 02/2020 (decorrente da conversão da MP 899/2019), aprovada pelo Congresso Nacional, com substancial alteração em seu conteúdo (que inicialmente se referia somente à exclusão das multas); e (ii) a acusação de ocorrência de contrabando legislativo, devido à suposta falta de pertinência temática desse dispositivo com o conteúdo original da MP 899/2019, que versara sobre a regulação do artigo 171 do CTN, que prevê a transação tributária.

Questionam-se, ademais, aspectos materiais, oriundos da contrariedade em relação à presunção de legitimidade dos atos administrativos (que opera em sentido contrário à presunção de inocência dos réus e acusados), ao se exigir julgamento majoritário para a manutenção da exação, em sentido contrário ao que o Poder Judiciário aplica no caso de empates no julgamento de mandados de segurança.

Há debates também sobre a dinâmica de utilização da nova regra: (i) sobre o alcance, ou seja, a que tipo de casos e de processos administrativos a nova regra se aplica?; e (ii) retroatividade ou não do art. 19-E, aos casos já julgados administrativamente.

Relativamente ao primeiro ponto, há diversas opiniões: a) o dispositivo deve ter uma interpretação literal ou restritiva, aplicando-se apenas “ao processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”; b) o artigo deve ser interpretado ampliativamente ou por analogia, por razões de coerência procedimental e de igualdade, para abranger todos os processos julgados no Carf; e c) o dispositivo teria um alcance mediato mais abrangente, pela apropriação do rito do Decreto 70.235/1972 por meio de regras de remissão, dilatando também o alcance do novo regime[5].

No tocante à retroatividade do art. 19-E, discute-se se a regra possui natureza de direito material ou processual; debatendo-se sequentemente a possibilidade ou não de sua retroação, assim como se a retroatividade abrangeria apenas as multas ou também os tributos.

Encerrando o bosquejo sobre a nova sistemática de resolver os empates, relembre-se que um dos pilares da definitividade dos julgamentos administrativos prendia-se ao fato de, historicamente, o voto de qualidade ser competência do conselheiro representante da Fazenda Nacional. Face à mudança havida, à luz dessa nova regra, seria possível a Procuradoria da Fazenda Nacional levar os casos julgados favoravelmente aos contribuintes para apreciação do Judiciário?

Tema de particular relevância, nestes tempos de pandemia, diz respeito à implementação de sessões virtuais de julgamento, nos tribunais administrativos, que se tem dado de forma díspar entre os diversos entes tributantes.

Há de haver certa uniformidade procedimental, para evitar prejuízos à defesa dos contribuintes, resguardando o direito de as partes realizarem sustentações orais e de influir por meio destas, efetivamente, no julgamento. Além disso, deve-se franquear ao advogado a oposição ao julgamento virtual, quando este entenda que o procedimento adotado implica em risco ao contraditório. Em nenhuma hipótese o julgamento virtual pode ser pretexto para julgamentos açodados ou com prejuízo aos debates técnicos; precisando ser ao contrário instrumento de acesso à justiça pela viabilização de meios tecnológicos hábeis a replicar a dinâmica dos julgamentos presenciais.

Como foi visto acima, há muito o que se deslindar. Assim, devem ser encorajadas pesquisas e debates sobre o fim do voto de qualidade no Carf, o alcance e retroatividade da nova regra de desempate e a implantação e a prática dos julgamentos virtuais. Dessa forma, estar-se-á contribuindo à evolução e ao aperfeiçoamento do contencioso tributário, relevante instrumento de redução dos conflitos nessa área.


[1] Art. 151. “Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;”

[2] Verificando-se os resultados dos votos de qualidade, em 2019, dos 5,3% do total, 1,3% foi favorável aos contribuintes (24,53% dos votos de qualidade). Até fevereiro de 2020, dos 3,2% dos votos de qualidade, 1,3% favoreceram os contribuintes (40,63%). Tal comprova que, nem sempre, como muitos acreditam, o voto de qualidade favorece ao fisco. Disponível em http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/2020/dados-abertos.pdf.

[3] Art. 12 – ”Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.”

[4] Ver o rol de sugestões: https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/direto-carf-voto-qualidade-nao-problema-carf#_ftn11

[5] https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/direto-carf-reflexoes-alcance-direto-indireto-artigo-19-lei-1052202

Autores

  • Brave

    é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!