Interesse público

Acordos de leniência — a teoria do diálogo das fontes e a analogia in bonam partem

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18 de junho de 2020, 8h00

Spacca
No último dia 6/6/2020, o Ministério Público Federal (MPF) divulgou a Nota Técnica nº 1/2020 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, que tratou de adesões de pessoas físicas aos acordos de leniência assinados com base no art. 16 da Lei 12.846/13. A elaboração da nota foi encabeçada pelo Professor e Procurador da República José Roberto Pimenta, que possui vasta experiência e profícuo trabalho acadêmico e profissional relativamente ao tema.

A referida Nota Técnica veio à baila porque os membros do MPF verificaram a “necessidade de que sejam estabelecidos os fundamentos sobre relevantes aspectos do regime jurídico aplicável a estes instrumentos negociais dentro da execução da Política de Leniência do MPF, norteada pelos valores da coerência e unidade institucional, no campo da celebração de Acordos de Leniência, no domínio da improbidade administrativa, conformados pelas Leis nº 8.429/1992 (doravante, Lei Geral de Improbidade Administrativa – LGIA) e Lei nº 12.846/2013 (doravante, Lei de Improbidade das Pessoas Jurídicas – LIPJ, comumente referida como “Lei Anticorrupção”).”

O objetivo do pronunciamento do parquet federal foi o de promover o “aperfeiçoamento da atividade institucional de membros do MPF, sob a coordenação da 5ª CCR”, à medida que restou identificada na prática ministerial a “necessidade de estabelecer orientações sobre a possibilidade jurídica de extensão de benefícios legais para pessoas físicas, acionistas, cotistas, sócios, administradores, gerentes, empregados, prepostos etc., no contexto de colaboração pretendida ou avençada com pessoas jurídicas, com o fim de assegurar maior previsibilidade sobre a situação jurídica das pessoas físicas colaboradoras, engendrando maior segurança jurídica ao vínculo de cooperação necessário e instrumental para levar adiante o enfrentamento da corrupção, nos diversos casos que demandam a atuação ministerial.”

A conclusão da Nota Técnica é no sentido de que “a previsão no Acordo de Leniência de parâmetros de concessão de benefícios para novas pessoas físicas aderentes propicia maior segurança jurídica e isonomia no processamento das adesões posteriores”, atendendo “de forma plena, aos objetivos legais, tanto os cristalizados na Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), quanto os depreendidos pelas novas regras da Lei nº13.964/2019 que alteraram a Lei Geral de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992).”

O risco de violação aos cânones da segurança jurídica nos acordos de leniência previstos no art. 16 da Lei 12.846/13 (lei de improbidade empresarial) – eis que a lei somente alude à participação de pessoas jurídicas como signatárias, silenciando-se quanto à participação de pessoas físicas inseridas no contexto –, já foi objeto de minhas preocupações em pelo menos duas oportunidades. Primeiramente, no artigo “Reflexões sobre a Lei nº 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas – Lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção, publicado na Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 33-43, out./dez. 2014”1; secundariamente, em texto publicado nesta coluna da Conjur sob o título “É recomendável ler a bula dos acordos de leniência”.2

No último texto, destaquei as diferenças existentes entre os acordos de leniência do art. 16 da Lei 12.846/13 e do art. 86 da Lei 12.259/11 (Lei do CADE), haja vista que no acordo do CADE a lei previu que os efeitos da leniência seriam extensíveis também aos dirigentes, administradores e empregados das empresas envolvidas, desde que firmassem em conjunto o respectivo termo (art. 86, § 6º da Lei 12.529/11). Por outro lado, essa mesma garantia não se fazia presente nas disposições da Lei 12.846/13, pelo que não se evitaria que essas pessoas físicas viessem a responder a processos judiciais personalíssimos no caso de assinatura da leniência pela empresa.

Ademais, mesmo as empresas que viessem a firmar a leniência (com a CGU, por exemplo), fundamentalmente quando ausente a participação do Ministério Público, não se imunizariam, pelo menos a princípio, do acionamento em juízo por atos ilícitos, a não ser que se reconhecesse, como fiz no primeiro artigo publicado em 2014, que o âmbito de incidência da Lei 12.846/13 e da Lei 8.429/92 fossem reciprocamente excludentes.

A matéria é complexa — e por isso a iniciativa de uniformização do MPF é extremamente importante e valiosa. Nesse mesmo sentido, convém destacar que o Plenário do STF reconheceu, por maioria de votos, repercussão geral em matéria que tangencia a temática tratada na Nota Técnica do MPF (ARE 1175650 RG, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 25/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-093 DIVULG 06-05-2019 PUBLIC 07-05-2019).

Trata-se de processo oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), no qual o Ministério Público do Estado (MPE) propôs ação de improbidade administrativa em face do recorrente e outras pessoas físicas e jurídicas por fatos revelados na “Operação Publicano.” Entre os pedidos liminares da ação, foi requerida a indisponibilidade de valores e de bens móveis e imóveis dos demandados; e, ao final, pediu-se a imposição das sanções previstas na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa).

Entretanto, em relação aos réus que firmaram acordos de colaboração premiada (na esfera criminal) com o Ministério Público, amparados no art. 4º, §4º, da Lei 12.850/13 c/c os artigos 16 e 17 da Lei 12.846/133, o MPE requereu apenas o reconhecimento da prática de atos de improbidade, sem a imposição das penalidades correspondentes, sob a alegação de que existe “uma grande interpenetração do direito penal, civil e direito administrativo, para salvaguardar os inúmeros bens jurídicos afetados pela prática de atos de corrupção. A persecução destes ilícitos, em decorrência de sua natureza multifacetária, exige a intervenção de inúmeros órgãos de persecução do Ministério Público”.

Assim sendo, com lastro na teoria do diálogo das fontes – e invocando os acordos de leniência da Lei 12.846/13 (acordos de leniência do art. 16), o MPE do Paraná sustentou que “não se pode conceber que um colaborador, após cumprir os requisitos exigidos pela lei (Lei nº. 12.850/13) proveniente do Direito Penal, não tivesse de igual modo seus efeitos espraiados para o Direito Administrativo e o Direito Civil, que tutelam o mesmo fato com as nuances peculiares destes específicos ramos do direito”, de modo que apesar de a Lei 12.846/13 “restringir a utilização do acordo de leniência e os seus benefícios às pessoas jurídicas, é certo que o diálogo das fontes confere ao intérprete flexibilidade e dinamismo na aplicação e interpretação de variadas normas jurídicas, a fim de que seja alcançada a finalidade de proteção de direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal. Além do mais, “inexistiria óbice legal à aplicação desses institutos ao Processo Civil, diante da regra contida no art. 126 do CPC, que autoriza expressamente o uso da analogia.”

O relator do caso no STF, Ministro Alexandre de Moraes, seguido pela maioria do Plenário Virtual, reconheceu a repercussão geral das teses debatidas nos autos, assentando que “é superlativa a relevância dos temas discutidos. Em jogo, (I) a potencial ofensa ao princípio da legalidade, por se admitir a colaboração premiada na ação de improbidade sem expressa autorização legal e com vedação normativa à realização de transação pela LIA (CF, art. 5º, II)4; (II) os limites à disponibilidade de bens e interesses públicos, face a imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º)5; (III) os efeitos de eventual colaboração premiada realizada pelo Ministério Público em relação a demais ações de improbidade movidas pelos mesmos fatos, em virtude da existência de legitimidade concorrente (CF, art. 129, §1º).”

Como se vê, o principal argumento lançado pelo STF no reconhecimento da repercussão geral — e que como dito foram objeto de minhas primeiras notas acadêmicas sobre leniência — consistiu exatamente na ausência de disposição legal que reconhecesse a abrangência material ampliada aos acordos de colaboração lato sensu.

Vislumbra-se, sem embargo disso, juridicidade na iniciativa de intercambiamento entre as diferentes esferas de responsabilidade envolvidas na firmação dos acordos de leniência. Porém o fundamento para tanto reside no suprimento da lacuna legislativa pela via da analogia in bonam partem6, a partir das disposições constantes da Lei 12.529/11 (Lei do CADE), as quais, ao disciplinarem o acordo de leniência respectivo, prescrevem que (a) “serão estendidos às empresas do mesmo grupo, de fato ou de direito, e aos seus dirigentes, administradores e empregados envolvidos na infração os efeitos do acordo de leniência, desde que o firmem em conjunto, respeitadas as condições impostas” (art. 86, §6º, da Lei 12.529/11); (b) “nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 , e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência” (art. 87, caput, da Lei 12.529/11); (c) “cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo” (art. 87, parágrafo único, da Lei 12.529/11).

Sobre a interseção entre o acordo de leniência e os delitos de improbidade administrativa — partindo-se da pressuposição que seja possível o reconhecimento de um âmbito de incidência idêntico ou conjunto a ambos sem vilipêndio ao non bis in idem — a celebração do acordo do leniência previsto no art. 16 da Lei 12.846/13 também assume a dimensão de fazer as vezes de acordos de não persecução cível ou de termos de ajustamento de conduta, em ordem a determinar a extinção das ações respectivas, notadamente depois da alteração do §1º do art. 17 da Lei 8.429/92 pela Lei 13.964/19.7

Por fim, seria de todo interessante, em benefício da uniformização e da unidade institucional nacional do parquet, que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a quem a jurisprudência do STF reconhece, mercê da teoria dos poderes implícitos, competência jurídico-material originária (ver ADC 12), baixasse um ato normativo para disciplinar, na esteira da Nota Técnica nº 01/2020 do MPF, a questão da adesão das pessoas físicas aos acordos de leniência (art. 16 da Lei 12.846/13), assim como a questão da possibilidade de transcendência objetiva dos efeitos dos ajustes às esferas penal, civil e administrativa. Tal medida reforçaria a segurança jurídica dos diversos acordos firmados na “era da consensualidade”8ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio”.


1 FERRAZ, Luciano. “Reflexões sobre a Lei nº 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas – Lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção, publicado na Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 33-43, out./dez. 2014”. https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2015/05/lei-anticorrupcao-artigo-luciano-ferraz.pdf

2 FERRAZ, Luciano. É recomendável ler a bula dos acordos de leniência. https://www.conjur.com.br/2017-nov-16/interesse-publico-recomendavel-ler-bula-acordos-leniencia

3 Sobre a distinção entre o acordo do artigo 16 o do artigo 17 da Lei 12.846/13, ver FERRAZ, Luciano. Acordos de leniência da lei anticorrupção cumprem diferentes papéis. https://www.conjur.com.br/2015-jul-23/interesse-publico-acordos-leniencia-lei-anticorrupcao-cumprem-diferentes-papeis

4 Esta vedação à transação na LIA foi revogada em janeiro de 2020, após a vigência da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Sobre o tema, ver FERRAZ, Luciano. Acordos de não persecução cível na improbidade administrativa – o início, o fim e o meio. https://www.conjur.com.br/2020-abr-09/interesse-publico-acordos-nao-persecucao-civel-improbidade-administrativa.

5 Essa imprescritibilidade somente se verifica quando se tratar de ato doloso de improbidade administrativa, conforme Tema 897 do STF “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa.”

6 “Por analogia entende-se o preenchimento de lacunas na ordem jurídica por lei, cuja proposta assemelha-se à faltante […] Em sede processual-penal, admite-se o emprego da analogia (art. 3º do CPP). E em sede penal a analogia, como recurso de integração, só é admissível se for para beneficiar, ou seja, em favor do réu. É a chamada analogia in bonam partem.” (CAMPOS PIRES, Ariosvaldo de. Compêndio de Direito Penal, Vol. I, Parte Geral, atualizado por Sheila J. Selim de Sales, Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 28).

7 FERRAZ, Luciano. Acordos de não persecução cível na improbidade administrativa – o início, o fim e o meio. https://www.conjur.com.br/2020-abr-09/interesse-publico-acordos-nao-persecucao-civel-improbidade-administrativa

8 Sobre o tema, ver FERRAZ, Luciano. Controle e Consensualidade: fundamentos para o controle consensual da Administração Pública, Belo Horizonte: Forum, 2019.

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