Opinião

A possibilidade de reconhecimento da Covid-19 como acidente de trabalho

Autores

  • Fabiano Veiga

    é juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo Instituto Excelência (Juspodivm) especialista em Direito Constitucional pela Escola Judicial do TRT da 5ª Região (convênio com a Universidade Federal da Bahia) professor de cursos de pós-graduação em Direito e de cursos preparatórios para concursos públicos.

  • Tercio Souza

    é advogado procurador do município de Salvador presidente do Instituto Baiano de Direito do Trabalho (IBDT) membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e da Associação Baiana dos Advogados Trabalhistas (Abat) professor do curso de pós-graduação da Faculdade Baiana de Direito (FBD) e professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) seccional BA e da Escola Judicial do TRT da 5ª Região (EMATRA5).

17 de junho de 2020, 6h35

O início do ano de 2020 teve como fato marcante, ainda em janeiro, o surto da Covid-19 na China, causado pelo novo coronavírus. O vírus provocou o isolamento da cidade de Wuhan, a maior da província de Hubei.

Entretanto, seja diante da inefetividade das medidas, seja diante do alto poder de contágio, o vírus logo se espalhou para outros países, chegando com bastante intensidade à Europa, sobretudo Itália, Espanha e Reino Unido, e, posteriormente, à América.

No Brasil, embora segundo dados oficiais do Ministério da Saúde [1] o primeiro caso de contaminação pelo novo coronavírus tenha ocorrido apenas em 26 de fevereiro, no dia 3 do referido mês foi declarado o estado de emergência sanitária. Além disso, em 6 de fevereiro foi editada a Lei nº 13.979/2020 dispõe sobre as políticas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto.

Por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, foi reconhecido o estado de calamidade pública, desde sua edição até 31 de dezembro.

Em 11 de março, diante da gravidade da situação e da escala mundial do novo coronavírus, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a existência uma pandemia, isto é, doença infecciosa que se espalha entre a população de diversos continentes, com transmissão sustentada (comunitária/local).

Com o agravamento do quadro, tanto em âmbito internacional como nacional, provocado pela expansão do novo coronavírus, o poder público passou a adotar uma série de medidas restritivas, com a determinação de isolamento/quarentena, a fim de permitir o distanciamento social, dada a inexistência de outro meio eficaz para frear a contaminação.

Nesse contexto, foram editadas diversas medidas provisórias, entre elas as de número 927, 928, 936, 944, 945 e 946, na tentativa de encontrar soluções para enfrentamento do estado de emergência de saúde pública.

Contexto da edição da M.P nº 927/2020
— Noções gerais

Como visto, a ideia da M.P nº 927/2020, a par de diversas outras editadas entre março e abril, é encontrar soluções para a atual quadro de crise econômica, social e de saúde pública, provocada pelo novo coronavírus.

Assim, a M.P nº 927/2020, a primeira a ser editada, satisfaz plenamente os requisitos constitucionais da relevância e urgência (artigo 62, caput, Constituição Federal de 1988), ante a necessidade de preservação do emprego e da renda.

Nessa toada, para enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade pública e para preservação do emprego e da renda, podem ser adotadas pelos empregadores várias medidas, entre elas, instituição do teletrabalho; a antecipação de férias individuais; a concessão de férias coletivas; o aproveitamento e a antecipação de feriados; o banco de horas (artigo 3º da MP nº 927/2020).

— A M.P nº 927/2020 e os casos de contaminação pelo novo coronavírus

A M.P nº 927/2020, no seu artigo 29, trata do tema relativo a contaminação dos trabalhadores pela Covid-19. Segundo tal dispositivo:

"Artigo 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.”

Há, pois, uma presunção de ausência de nexo de causalidade entre a patologia e o trabalho, sendo o estudo da matéria de importância fundamental para definição da responsabilidade do empregador (tanto no aspecto trabalhista como cível) e da própria Previdência Social (Instituto Nacional do Seguro Social), valendo alertar, desde logo, que o STF, no dia 29 de abril, concedeu liminar a fim de suspender a aplicação do mencionado artigo 29.

Acidente de trabalho. Conceito, caracterização e consequências

O acidente de trabalho é tema que merece a atenção dos estudiosos, sobretudo do Direito do Trabalho e do Direito Previdenciário, sendo um dos assuntos que mostra a íntima relação entre tais ramos jurídicos, ambos caracterizados fortemente pelo caráter social.

É que uma vez configurado o acidente de trabalho, incidem diversas normas que versam sobre as múltiplas consequências desse fato jurídico, destacando-se as seguintes : a) responsabilização contratual, com interrupção do contrato de trabalho [2] seguida eventual suspensão do contrato de trabalho (artigo 476, CLT; artigo 59, da Lei nº 8.213/91); b) concessão de benefício previdenciário pela Previdência Social (artigo 476, CLT; artigo 59, da Lei nº 8.213/91); c) reconhecimento da estabilidade acidentária (artigo 118 da Lei nº 8.213/91, Súmula nº 378, TST) ; e d) responsabilização civil do empregador, com a obrigação de reparação o dano, tanto patrimonial quanto extrapatrimonial.

Em linhas gerais, é possível afirmar que a responsabilidade civil pressupõe a presença dos seguintes requisitos (artigos 186, 187 e 927, Código Civil de 2002): a) conduta humana (comissiva ou omissiva); b) dano ou prejuízo; c) nexo de causalidade; e d) culpa ou dolo, salvo na hipótese de reconhecimento de responsabilidade objetiva.

Quanto ao conceito de acidente de trabalho, de acordo com definição do artigo 19 da Lei nº 8. 213/91, com redação dada pela Lei nº 150/2015, acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados especiais, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. Trata-se, aqui, do chamado acidente de trabalho típico, caracterizado pela ocorrência de fato inesperado e bem delimitado no tempo, que surpreende o trabalhador (ilustrativamente, caso do infortúnio de queda livre, em razão do rompimento do sistema de sustentação de um elevador).

A par dessa hipótese, há, ainda, a possibilidade de ocorrência de doenças ocupacionais (artigo 20 da Lei nº 8.213/91), bem assim dos chamados acidentes de trabalho por equiparação (artigo 21 da Lei nº 8.213/91).

Especificamente quanto às doenças ocupacionais, elas podem ser classificadas como profissionais ou tecnopatia ou ergopatia (produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante de lista elaborada pelo Ministério da Previdência Social  — competência atualmente exercida pelo Ministério da Economia), ou doenças do trabalho ou mesopatia (adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizada e com ele se relacione diretamente, constante da referida lista).

Importante, ainda, destacar que as doenças ocupacionais estão listadas no anexo II do Decreto nº 3.048/99, com redação dada pelo Decreto nº 6.957/2009, mas se trata de rol não taxativo, na medida em que o INSS, uma vez constatando que a enfermidade, embora não catalogada, resultou das condições especiais em que o trabalho é prestado e com ele se relaciona diretamente, deverá considerá-la como acidente de trabalho (artigo 20, §2º, da Lei nº 8.213/91). 

Sucede que, de acordo com a lei previdenciária em vigor, caso a doença seja considerada endêmica (patologia de caráter transitório com registro de número importante de casos em determinadas localidades), presume-se a ausência de nexo de causalidade com o trabalho, e, portanto, a exclui como doença do trabalho (artigo 20, § 1º, "d", da Lei nº 8.213/91).

Vale dizer, então, que norma estabelece uma presunção legal da natureza não ocupacional da doença endêmica. Trata-se, porém, de presunção relativa, haja vista que permite que o trabalhador comprove que a patologia "é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

A lei parte do pressuposto de que o indivíduo, antes de ser um trabalhador, é sujeito com múltiplas relações, participando da sociedade e integrando determinada, comunidade, pelo que está exposto, também no contexto de tais relações, a contaminação.

A despeito do artigo 20, §1º, "d", da Lei nº 8.213/91 tratar dos casos de epidemia, ele deve ser aplicado às hipóteses de pandemia, na medida em que está pressupõe que os casos da doença sejam registrados em todos os continentes, com um grau de contaminação ainda mais elevado.

Como se vê, e esse ponto é de grande relevância, a discussão acerca presença de nexo de causalidade antecede à discussão a respeito do tipo de responsabilidade aplicável ao caso, se objetiva ou subjetiva, se presente culpa ou dolo do agente.

Assim, para fins de discussão do tema em questão, antes de tudo, necessário perquirir a existência do próprio dano, a ação/omissão e o nexo de causalidade. Analisar se a atividade desenvolvida é de risco, de modo a incidir o disposto no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil apenas deve ser realizada em um segundo momento.

— A decisão do Supremo Tribunal Federal

Como visto, a Medida Provisória nº 927/2020, no seu artigo 29, trata do tema relativo à contaminação dos trabalhadores pelo novo coronavírus :

"Artigo 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal".

Embora as redações não sejam idênticas, o artigo 29 da M P nº 927/2020 consagra norma idêntica à que consta no artigo 20, § 1º, "d", da Lei nº 8.213/91.

É que tais dispositivos tratam da presunção de ausência de nexo de causalidade entre a patologia (quer seja uma endemia, quer seja uma pandemia). Em ambos os casos, entretanto, a presunção é de natureza relativa, de sorte que pode a parte, no caso o segurado/trabalhador, comprovar que a patologia guarda nexo de causalidade com a prestação de serviços, e, portanto, tem natureza ocupacional.

Digno de destaque que foram ajuizadas diversas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354). Em 26 de março, o ministro do STF Marco Aurélio indeferiu o pedido de liminar.

Posteriormente, o plenário do STF, em sessão realizada por videoconferência, no dia 29 de abril, suspendeu a eficácia do citado artigo 29. Embora a decisão ainda não tenha sido publicada, consta no informativo nº 975 [3], de 27 a 30 de abril, no que mais interessa, o seguinte :

"(…)

Compatibilização de valores

Prevaleceu, no entanto, a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, no sentido de que as regras dos artigos 29 e 31 fogem da finalidade da MP de compatibilizar os valores sociais do trabalho, 'perpetuando o vínculo trabalhista, com a livre iniciativa, mantendo, mesmo que abalada, a saúde financeira de milhares de empresas'.

Segundo o ministro, o artigo 29, ao prever que casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco.

(…)."

Com efeito, é certo que a CRFB/88 consagra, como direito fundamental do trabalhador, o exercício do labor em um meio ambiente saudável e isento dos riscos (artigos 200, VIII e 225), prevendo a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (artigo 7º, XXII), de modo a prevenir lesão aos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, CRFB/88).

Além disso, ainda no que toca à necessidade de manutenção de um meio ambiente de trabalho adequado, há diversas normas que concretizam esse deve do empregador, como, ilustrativamente, o artigo 19, §1º, da Lei nº 8.213/91 e o artigo 157, CLT.

Ocorre que, a despeito da suspensão da eficácia do artigo 29 da Medida Provisória nº 927/2020 e, mesmo diante das normas que tratam das questões relativas ao meio ambiente de trabalho, no que toca ao nexo causal da contaminação pelo novo coronavírus, incide o disposto no artigo 20, §1º, "d", da Lei nº 8.213/91, até porque tal dispositivo não foi objetivo de questionamento nas mencionadas ações diretas de inconstitucionalidade.

Merece destaque, ainda, que não restou claro qual dispositivo constitucional o STF entendeu por violado, ou seja, qual incompatibilidade material entre o artigo 29 da Medida Provisória nº 927/2020 e a Constituição Federal. Vale dizer, embora tenha ocorrido referência a ofensa a direitos trabalhistas e, até mesmo, a dificuldade probatória do trabalhador, até o presente momento não se sabe maiores detalhes acerca da fundamentação jurídica da decisão.

Desse modo, e com respeito às opiniões em contrário e do que está sendo amplamente divulgado pelos meios de comunicação, a decisão do STF, ao menos por ora, não estabelece um nexo de causalidade entre a Covid-19 e o trabalho, mas, apenas, deixa em aberto esta possibilidade, facultando à parte autora a comprovação da existência de nexo entre a doença e o trabalho, para fins civis ou previdenciários, destaque-se.

Nesse contexto, a caracterização como doença ocupacional vai depender das circunstâncias do caso concreto, não havendo óbice, por conseguinte, que se comprove que a doença decorre da exposição ou do contato direto determinado pela natureza do trabalho, seja pela distribuição estática do ônus da prova, seja pela distribuição dinâmica do ônus da prova (artigos 818, CLT e 373, CPC/2015).

Ademais, também a depender das circunstâncias do caso concreto, relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo probatório ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído (artigo 818, §2º, CLT, e artigo 373, §§1º e 2º, CPC/2015), com a distribuição dinâmica do ônus da prova, especialmente nas atividades em que o empregado está sujeito a um maior risco de contágio (profissionais de saúde, ilustrativamente).

Conclusões
Na linha do quanto exposto, possível concluir:

a) A Covid-19, causada pelo novo coronavírus, a princípio, não é doença ocupacional, já que em regra, as doenças endêmicas não possuem relação com contrato de trabalho;

b) A Covid-19 pode guardar nexo de causalidade com a atividade profissional, hipótese que será considerado como doença ocupacional, seja no âmbito previdenciário ou trabalhista;

c) A decisão proferida pelo STF, em 29 de abril de 2020, não alterou as regras de distribuição do ônus da prova quanto tema, subsistindo, em face da identidade de situações, o disposto no artigo 20, §1º, "d", da Lei nº 8.213/91, de modo que, a princípio, é ônus da parte autora comprovar o fato constitutivo do seu direito, demonstrando nexo de causalidade entre a Covid-19 e a prestação dos serviços.

 


[2] A Lei nº 13.982/2020 autorizou a dedução nas contribuições previdenciárias do custo salarial dos primeiros 15 dias de afastamento de empregado com Covid-19.

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    é juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo Instituto Excelência (Juspodivm), especialista em Direito Constitucional pela Escola Judicial do TRT da 5ª Região (convênio com a Universidade Federal da Bahia), professor de cursos de pós-graduação em Direito e de cursos preparatórios para concursos públicos.

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    é advogado, procurador do município de Salvador, presidente do Instituto Baiano de Direito do Trabalho (IBDT), membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e da Associação Baiana dos Advogados Trabalhistas (Abat), professor do curso de pós-graduação da Faculdade Baiana de Direito (FBD) e professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional BA, e da Escola Judicial do TRT da 5ª Região (EMATRA5).

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