Direito Civil Atual

Congresso deve derrubar veto a proibição de retroação da Lei 14.010/20

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17 de junho de 2020, 8h55

ConJur
Em 10 de junho de 2020, após quase três meses do reconhecimento oficial da calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 no Brasil (Decreto Legislativo 6/20), sobreveio a Lei 14.010, com a instituição do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET). Entre os dispositivos vetados na análise do Projeto de Lei n° 1.179/20, encontra-se o art. 6º:

Art. 6º As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

A regra projetada tinha o objetivo de deixar assentado no âmbito do RJET que, relativamente à execução dos contratos, a existência de motivo de força maior causado pela pandemia ou de fato do príncipe devido às medidas adotadas pelas autoridades sanitárias não poderia ser considerado para o período contratual pretérito à superveniência da pandemia e suas repercussões nos vínculos negociais.

A Lei 13.979/2020, promulgada para dispor sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, enunciou um rol de medidas que as autoridades públicas federais, estaduais e municipais, inclusive as relacionadas à imposição do isolamento social, da quarentena, além de prever medidas de interdição de funcionamento de determinados estabelecimentos. Tais providências, a par do receio da contaminação com a Sars-COV-2, impactaram várias relações jurídicas de Direito Privado, mas obviamente não interferiram nos efeitos contratuais relacionados ao período anterior ao início da pandemia no país.

Logo, no âmbito do Senado Federal foi apresentado projeto de lei para instituir o RJET no período da pandemia do Covid-19. Após regular tramitação nas duas Casas Legislativas, houve a aprovação do Projeto de Lei 1.179/20, com a inclusão do art. 6º acima transcrito. A referida proposição legislativa se justificou em razão da necessidade de haver clareza "que os transtornos causados pela pandemia no equilíbrio econômico dos contratos não têm eficácia retroativa", conforme registrou a Senadora Simone Tebet, no Parecer n. 18/20.

A iniciativa legislativa brasileira não representou novidade no cenário dos países que vêm sofrendo efeitos da pandemia do Covid-19. Na Alemanha foi aprovada a Lei de Atenuação dos Efeitos da Pandemia da Covid-19 no Direito Civil, Falimentar e Recuperacional. No Reino Unido, da mesma forma foi aprovado o Coronavirus Act 2020 que também tratou de várias questões relativas ao Direito Privado.

Além obviamente das questões relacionadas à saúde pública e à vida das pessoas, é certo que um dos ambientes mais atingidos em decorrência da pandemia vem sendo o econômico e nele se inclui a temática dos efeitos dos contratos numa economia capitalista. A isenção da responsabilidade do devedor pelos prejuízos sofridos pelo credor de uma relação obrigacional resultantes de caso fortuito ou força maior (CC, art. 393) não pode ser reconhecida relativamente ao período anterior à ocorrência do motivo de força maior (no caso específico, os efeitos concretos da pandemia nas relações negociais).

Na clássica lição de Caio Mário da Silva Pereira, "se a prestação se impossibilita, não pelo fato do devedor, mas por imposição de acontecimento estranho ao seu poder, extingue-se a obrigação, sem que caiba ao credor ressarcimento"1. Assim, por óbvio, que tal impossibilidade por evento alheio ao devedor deva ficar caracterizada para justificar a isenção de responsabilidade.

A regra projetada no PL 1.179/20 tem o objetivo de, em razão dos casos verificados no período atual — de efeitos negativos da pandemia e dos atos das autoridades públicas no âmbito contratual —, impedir que haja o aproveitamento da invocação do motivo de força maior para efeitos contratuais pretéritos ao início do período da pandemia. Imagine-se, apenas a título exemplificativo, o vínculo de compra e venda de veículo cujo preço deveria ter sido pago em janeiro de 2020, e não o foi pelo devedor de tal prestação e, com o surgimento das consequências da pandemia, o comprador se aproveite de tal circunstância para justificar o não cumprimento da sua prestação, alegando encontrar-se isento de qualquer responsabilidade contratual. É evidente que o inadimplemento da obrigação, verificado antes do início da pandemia no Brasil, deve seguir às regras permanentes do incumprimento da prestação, até mesmo podendo ser invocado o art. 393, do Código Civil, desde que por motivo de força maior ou caso fortuito diverso da pandemia e dos fatos do príncipe que a sequenciaram.

Como já exposto em outro artigo, a aplicabilidade dos efeitos do caso fortuito e da força maior relacionados à pandemia e aos fatos do príncipe, e da sua irretroatividade, foram tratados na regra projetada no art. 6°, do PL 1.179/20, de modo que o devedor não poderá invocar, a fim de se eximir das responsabilidades pelo inadimplemento da sua obrigação, circunstâncias anteriores àquelas relacionadas à pandemia.

Na realidade, tal previsão contida no projetado art. 6º já decorre do sistema jurídico atual (e permanente) que atua sobre o regime do inadimplemento fortuito, na expressão doutrinária2. Contudo, a grande virtude da proposta legislativa foi assegurar maior tranquilidade aos contratantes a respeito da separação das situações concretas verificáveis, não dando azo a oportunismos quanto aos inadimplementos de prestações não relacionados aos efeitos da pandemia.

Após avaliar o texto do PL 1.179/20, o Presidente da República vetou o art. 6º. Eis as razões do veto: "A propositura legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva."

Alguns comentários a esse respeito. À luz da Constituição Federal (art. 66), o veto presidencial se justifica em duas hipóteses: a) inconstitucionalidade do projeto de lei; b) contrariedade do projeto de lei ao interesse público. Das duas, resta claro que o veto se baseou numa suposta contrariedade da regra do art. 6° ao interesse público, ou seja, "conveniência do esquema do poder dominante, o que pode ser expressado discricionariamente"3.

Contudo, no caso em tela, o interesse público caminha no sentido oposto ao veto do Presidente da República, com a vênia devida. A segurança jurídica é essencial para a confiança no sistema jurídico e no Estado de Direito, além de ser fundamental para a constituição e desenvolvimento dos negócios e das relações jurídicas em geral. A segurança jurídica se correlaciona à uma visão mais democrática do Direito e da vida em sociedade, e aponta para uma melhor qualidade de vida das pessoas, sem que haja "danos" ou com menores danos possíveis, neste caso com uma condigna reparação.

À luz desta perspectiva, o veto presidencial à regra do art. 6º, tão debatida nas duas Casas legislativas e, inclusive com respaldo em manifestações doutrinárias a respeito do tema, não apresenta justificativa que se alicerce na noção de interesse público e, por isso, sugere-se ao Congresso Nacional que, à luz das normas constitucionais (art. 66, § 4º), promova a rejeição do veto o mais rápido possível, de modo a efetivamente proporcionar maior segurança jurídica no âmbito dos contratos, evitando-se, assim, questionamentos a respeito do incumprimento de prestações contratuais que não se relacionem às consequências da pandemia, o que, contudo, já vem ocorrendo na prática.

No âmbito de um período emergencial e transitório, que decorre da pandemia e do "desconhecido", não se revela justificado e razoável permitir que outras crises possam ser geradas no ambiente contratual. As instituições e as autoridades de todos os poderes da República têm um desafio inigualável quanto à adoção de medidas tendentes à redução dos danos decorrentes da Covid-19 e, por isso, é de se louvar a atuação do Congresso Nacional na aprovação do Projeto de Lei 1.179/20, em especial ao prever a regra do art. 6º, que detalha os efeitos da execução dos contratos em geral para deixar assentado que o incumprimento sob a alegação dos efeitos da pandemia não pode servir de "panaceia geral", especialmente quando se tratar de casos concretos cujas prestações já deveriam ter ocorrido no período anterior à pandemia no território brasileiro. A regra projetada tem o claro propósito de evitar os "oportunismos", ainda que para viabilizar a postergação da prestação, que somente será fruto de uma imposição via comando judicial de medidas tendentes ao cumprimento do avençado. Trata-se, à toda evidência, de uma norma pautada também na boa-fé, a impedir a adoção de condutas desleais e ímprobas. Assim, haveria claro "freio" aos devedores no afã de não cumprirem o que havia sido anteriormente avençado sob o manto da alegação de "força maior" em decorrência da pandemia.

Cumpre destacar que, por certo, a nova lei pode não agradar a todos, e isso é natural em qualquer coletividade, particularmente no ambiente de uma sociedade plural. No entanto, o propósito de uma lei, ainda que não atenda aos interesses da unanimidade, é pacificar os conflitos, evitando-se que eles se eternizem no ambiente também desgastante de um processo judicial.

Portanto, o trabalho não se encerrou: concita-se o Congresso Nacional a promover a rejeição do veto presidencial, de modo a permitir a promulgação do projetado art. 6°. Somente assim haverá, de fato, concretização do interesse público na edição de norma jurídica que permita a estabilidade das relações jurídicas no âmbito contratual, notadamente no período emergencial e transitório relativo às consequências da pandemia da Covid-19.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: teoria geral das obrigações. v. II. 31. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019, p. 335-336.

2 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 100.

3 SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. Comentários ao art. 66. In: BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 1040.

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    é desembargador do TRF da 2ª Região; professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá; professor titular de Direito Civil do IBMEC; mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ.

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    é advogado, mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ, professor dos cursos de pós-graduação da Emerj, do Ibmec e do CERS, Visitingresearcherno Max Planck Institute for ComparativeandInternational Private Law — Hamburg-ALE — e vice-presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil — ABDC.

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