Opinião

Quando a impossibilidade de reequilíbrio contratual não é o fim

Autor

  • Caio Figueiroa

    é advogado em Infraestrutura no escritório Cordeiro Lima e AdvogadosCaio Figueiroa e mestrando em Direito Público pela Direito FGV-SP.

17 de junho de 2020, 18h18

Se a pandemia deixará registro nos livros de história, não menos diferente será nas páginas dos contratos de concessão. Hoje já não se discute a natureza do evento em si, mas sim como preservar esses contratos diante do agora e do "novo normal". Cada setor terá um impacto, mas escrevo aos casos críticos.

As dificuldades de curto prazo estão associadas à capacidade do Estado de recompor o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, cujo risco lhe tenha sido atribuído, seguido da impossibilidade de se mensurar a totalidade dos seus impactos. Já no cenário pós-pandemia, os obstáculos resultarão da nova realidade que se apresentará, cujas premissas de custos ou demanda que embasaram a licitação jamais poderão ser retomadas [1].

Nessa perspectiva, muitos contratos não poderão ser reequilibrados segundo as premissas originais, restando a extinção antecipada do vínculo como solução. Mas se o reequilíbrio se mostra dificultoso, muito mais tormentosa será a saída pela extinção antecipada, pois exigirá a compensação desses mesmos valores, independente da modalidade considerada (encampação, caducidade, rescisão ou relicitação) além da indenização pelos investimentos não amortizados. São extremos que travam o gestor.

Diversos projetos de lei surgiram para contornar os cenários tradicionais de reequilíbrio-extinção. Entre todos, destaco o PL 2.139, que traz significativas contribuições para uma disciplina da repactuação dos contratos públicos, marcada pela consensualidade e reconhecimento de igualdade entre as partes, além de dispor sobre soluções cautelares de reequilíbrio.

O debate sobre sua pertinência neste momento não deve macular a relevância de propostas efetivamente inovadoras no ordenamento como aquela do artigo 6º, §2º, ao admitir a repactuação da equação econômico-financeira e a alteração da matriz de riscos. Uma blasfêmia para quem se apega à supremacia da licitação, e um alento para quem busca preservar as relações jurídicas.

Sem entrar nesse mérito, fato é que a proposta representa um importante avanço em matéria de mutabilidade, mas talvez, ainda insuficiente para lidar com o novo normal. O compartilhamento do risco de demanda, por exemplo, pode não ter qualquer efeito prático caso a demanda pós-pandemia não seja suficiente à viabilidade da concessão. O desenho de uma nova equação também não diz muito diante de contratos mais maduros, os quais se limitam olhar apenas para tarifas, prazo e a taxa de retorno.

O Congresso não pode desperdiçar a oportunidade para aprofundar o dispositivo, possibilitando a alteração das premissas que antecedem a própria equação econômico-financeira. É sobre essas alterações que quero chamar atenção, considerando o modelo regulatório que se pretende imprimir na relação, como também o próprio regime contratual. São medidas aparentemente não contempladas no projeto de lei.

Primeiro, o modelo regulatório não se confunde com o sistema de equilíbrio econômico-financeiro. Esse último reflete como serão calculadas ou procedidas as compensações por eventos de desequilíbrio. O modelo regulatório consiste no referencial de equilíbrio do contrato [2]. Distinguem-se entre regulação discricionária, cujos preços são definidos a partir dos custos da empresa e regulação por contrato, em que os preços independem dos custos do serviço.

A principal diferença do primeiro em relação ao segundo modelo consiste na ocorrência de revisões periódicas que visam alinhar o preço aos custos, de maneira cíclica. Grande parte das concessões nacionais estão pautadas no modelo de regulação por contrato, cujos preços são definidos no leilão. Exceções estão presentes nos contratos de distribuição de energia elétrica e saneamento.

Nesses casos, as premissas do contrato original são atualizadas a cada ciclo revisional, inclusive a taxa de retorno, sem que se discuta se as variações são riscos alocados a uma ou outra parte. Os riscos do concessionário estão dentro da margem de alcançar ou não a receita estimada no período, até a nova revisão periódica.

A flexibilidade é a principal vantagem desse modelo, permitindo adaptação dos contratos ao cenário econômico vivenciado. Por essa característica, o modelo é recomendado especialmente em setores mais dinâmicos (evolução tecnológica). Mas, afinal, o que não é dinâmico na vida dos contratos de longo prazo? É cada vez mais comum a ocorrência de eventos imprevisíveis e de efeitos extraordinários, valendo mencionar a crise financeira do subprime em 2008, a crise econômica nacional de 2016 e, agora, a pandemia [3].

A opção desse modelo regulatório pode, em tese, minimizar os efeitos (atual e futuro) da crise. Trata-se de regime tarifário baseado no custo do serviço, cuja fiscalização pressupõe uma base open book. Por não descaracterizar a concessão, e desde que deliberada consensualmente, não há, a princípio, impeditivos constitucionais para sua adoção. Obviamente, a conversão deve ser antecedida por estudos que reflitam sobre suas dificuldades, como a dependência de informações setoriais e a capacidade do agente regulador, elevando os custos para o poder público viabilizar a conversão do modelo de maneira satisfatória.

Paralelamente a conversão do modelo regulatório, será natural alguns gestores cogitarem da modificação do regime contratual, isto é, admitindo que concessões comuns possam ser transmutadas para a modalidade patrocinada. Nessa hipótese, o poder concedente assume a obrigação de pagar uma contraprestação ao concessionário, adicionalmente a tarifa arcada pelos usuários.

A doutrina encampa essa possibilidade, sustentando que a modificação limita-se a forma de remuneração (artigo 65, II, "c", da Lei 8.666/93), preservando a essência do contrato, que é a prestação do serviço público.[4]. Contudo, parece-me que a alteração é muito mais profunda, seja por acrescer um novo risco ao privado (inadimplência do concedente), como também por propiciar novos direitos e obrigações às partes (observância do nível de comprometimento da RCL, constituição de garantias públicas, entre outros).

Olhando apenas da perspectiva da juridicidade da alteração, não me parece que seja tão diferente da já cogitada repactuação aventada no PL, já que também não implica descaracterização do objeto. O prazo de vigência limite de 35 anos e o valor mínimo dos investimentos já executados e a executar são quesitos essenciais para sua admissão. A concessão patrocinada exige ainda rigoroso cumprimento de requisitos fiscais, no momento da licitação (artigo 10 da Lei 11.079/04). Isso não impede que os mesmos requisitos sejam posteriormente validados, já que não refletem qualquer benefício para o concessionário, preservando-se a igualdade de condições garantida aos concorrentes quando da licitação original.

Por certo que nem todo aporte constante pelo concedente tenha que necessariamente se sujeitar ao regime das PPPs [5]. É que ainda é viável optar pela concessão comum subvencionada, a exemplo do que se admite na mobilidade urbana, por força da própria legislação (artigo 9º, §5º da Lei 12.587/12). A escolha da subvenção em detrimento da contraprestação em nada significa abandonar os preceitos de Direito Financeiro, na medida em que esta modalidade de pagamento possui disciplina própria na Lei 4.320/64 e na LRF. No fim do dia, prevalecerá a discricionariedade do gestor, limitada pela capacidade financeira do contratante à conversão do regime.

Essas são algumas provocações que procurei colocar em debate, como forma de contribuir ao aprimoramento do texto legal, sem prejuízo de reconhecer sua complexa implementação, na medida em que exigem algum grau de comprometimento de recursos orçamentários, já bastante escassos. Ainda assim, são alternativas que podem preservar a relação contratual, cuja adoção não afasta todas as premissas já repercutidas no PL 2.139, em especial a consensualidade e a transparência na renegociação dos contratos em momentos de crise.

 


[1] É o caso das concessões de transporte coletivo, cuja demanda provavelmente surtirá os impactos do empresariado que optar pela manutenção de um regime home office. Já existem estudos validando uma tendência de crescimento de 30% do home office no Brasil, após a pandemia. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/objetivo/empreenda-se/noticia/2020/04/14/home-office-deve-crescer-30percent-apos-crise-de-coronavirus-aponta-fgv.ghtml>.

[2] Sobre a importância dos modelos regulatórios nos setores de infraestrutura, consultar GOMEZ-IBANEZ, J. Regulating infrastructure: monopoly, contracts and discretion. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003; BALDWIN, R.; CAVE, M.; LODGE, M. Understanding regulation: theory, strategy, and practice. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011. No Brasil, dois grandes textos referenciais CAMACHO, Fernando Tavares; RODRIGUES, Bruno da Costa Lucas. Regulação econômica de infraestruturas: como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES, n. 41, jun. 2014; PRADO, Lucas Navarro; GAMELL, Denis Augustin. Regulação econômica de infraestrutura e equilíbrio econômico-financeiro: reflexos do modelo de regulação sobre o mecanismo de reequilíbrio a ser adotado. In MOREIRA, Egon Bockmann (coord.). Tratado do equilíbrio econômico-financeiro. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, pp. 251-269.

[3] A dificuldade de uma matriz de risco estática, incapaz de lidar com mudanças como um fato corriqueiro conduziu a Austrália e Nova Zelândia a adotar os Contratos de Aliança na implantação de infraestrutura pública, modelo que pressupõe um amplo compartilhamento de riscos. (cf. SILVA, Leonardo Toledo da. Contrato de aliança: projetos colaborativos em infraestrutura e construção. São Paulo: Almedina, 2017).

[4] A esse respeito, SUNDFELD, Carlos Ari, Guia jurídico das parcerias público-privadas. In SUNDFED, Carlos Ari (Coord.). Parcerias público-privadas. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

[5] Como ponderou Rafael Wallbach Schwind: “[…] as concessões comns que prevejam contraprestações por parte do Estado não perderam completamente o seu interesse, nem precisam necessariamente ser convertidas em concessões patrocinadas ou administrativas.” (SCHWIND, Rafael Wallbach. Remuneração do concessionário: concessões comuns e parcerias público-privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 207 e ss). Na mesma linha FREITAS, Rafael Véras de. O “cisne negro” e as concessões subsidiadas. Coluna Direito da Infraestrutura, Fórum. Disponível em: <https://www.editoraforum.com.br/noticias/o-cisne-negro-e-as-concessoes-subsidiadas/#_ftnref3>.

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