Paradoxo da Corte

Contrato em moeda estrangeira na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

16 de junho de 2020, 8h00

No contexto do acentuado e permanente intervencionismo estatal na economia brasileira, devido a múltiplos problemas sistêmicos, vigora na legislação pátria o curso forçado da moeda. Isso significa que, ex vi legis, é obrigatória a utilização de moeda corrente nacional nas operações que envolvem pagamento em dinheiro constituídas e realizadas em nosso território, como, v. g., aquelas formalizadas por meio de contratos de empréstimo.

Realmente, a análise da legislação brasileira sobre a questão ora examinada revela que, em princípio, há vedação quanto à pactuação de obrigações em moeda estrangeira, de conformidade com o disposto no artigo 1º do Decreto-lei n. 857, de 11 de setembro de 1969, que consolidou e alterou a legislação sobre moeda de pagamento de obrigações constituídas no Brasil; na Lei n. 10.192, de 14 de fevereiro de 2001, que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências; e nos artigos 315 e 318 do Código Civil.

De um modo geral, portanto, nos contratos e nos instrumentos de cessão de crédito celebrados em território nacional e por partes domiciliadas no Brasil, a estipulação de pagamento em moeda estrangeira é proibida, sob pena de nulidade da respectiva avença. Em consonância com a literalidade dos aludidos textos legais, infere-se que: (i) as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal; e (ii) que são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como os pactos para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional (indexação), excetuados os casos previstos na lei especial.

Nota-se que esse óbice legal encontra fundamento na proteção e valorização da moeda corrente nacional, que, por tratar-se de matéria de ordem pública, em regra, não pode ser desatendida por convenções particulares, sob pena de nulidade (v., nesse sentido, Laura de Almeida Machado, Validade de obrigações estipuladas em moeda estrangeira, São Paulo, s/ed., 2013).

No entanto, já na segunda metade do século passado, o legislador nacional anteviu o fenômeno da globalização, ao relativizar, em algumas situações específicas, referida regra, autorizando, como exceção, a pactuação em moeda estrangeira.

Com efeito, em consonância com a atual redação do disposto no artigo 2º do supra referido Decreto-lei n. 857/69: “Não se aplicam as disposições do artigo anterior: I – aos contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias; II – aos contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior; III – aos contratos de compra e venda de câmbio em geral; IV – aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional; V – aos contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país…”.

Desse modo, desde que o negócio celebrado se caracterize por uma das hipóteses acima delineadas, a estipulação em moeda estrangeira torna-se válida e eficaz perante o direito brasileiro, sendo certo que, em qualquer uma das situações, o pagamento deverá ser feito em moeda corrente nacional.

Todavia, se o contrato não atender aos ditames do supra transcrito artigo 2º, quando, por exemplo, celebrado entre pessoas, físicas ou jurídicas, domiciliadas no Brasil, à luz da legislação vigente em nosso ordenamento jurídico, deveria, a rigor, ser considerado visceralmente nulo, por incidência de expressa vedação prevista, em particular, nos artigos 1º do Decreto-lei n. 857/69 e 318 do Código Civil.

Observe-se, no entanto, que, diante da significativa incidência, no tráfico negocial de época contemporânea, de contratos nacionais em moeda estrangeira, diversas questões acabaram sendo submetidas à apreciação do Poder Judiciário.

Daí porque a interpretação das normas supra mencionadas gerou segura orientação jurisprudencial sobre os contratos em moeda estrangeira, que não se enquadram entre as exceções previstas no supra transcrito artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69.

Na verdade, com o tempo, os tribunais pátrios, em particular, o Superior Tribunal de Justiça, ponderaram que, caso o empréstimo fosse realmente declarado nulo, por ter sido tomado em moeda estrangeira, haveria, de fato, inequívoco enriquecimento sem causa de um dos contratantes — o mutuário —, visto que seria perfeitamente possível a situação na qual uma parte tivesse obtido vantagem do negócio e, posteriormente, alegasse a sua nulidade para ficar desobrigada do pagamento da contraprestação devida.

Assim, por paradoxal que possa parecer, o negócio jurídico potencialmente ilegal tem os seus efeitos reconhecidos pela nossa jurisprudência, ou seja, o contrato celebrado no Brasil, entre partes sediadas em território nacional, com previsão em moeda estrangeira, vedada pela lei, tem a sua exigibilidade reconhecida (cf., a propósito, Marcelo Sampaio Siqueira, Obrigação com conversão de pagamento em moeda estrangeira, Revista Direito GV, vol. 7, São Paulo, jan/jun., 2008, pág. 165 ss).

Atualmente, então, sobre essa temática, no que concerne à data da conversão da moeda estrangeira, prevalecem duas orientações convergentes nos domínios do Superior Tribunal de Justiça, que podem ser sintetizadas da seguinte forma:

a) sendo hipótese de contrato internacional, inserido nas exceções previstas no artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, a indexação pela moeda estrangeira descortina-se legal, devendo ser convertida pela cotação da data do efetivo pagamento; e

b) sendo hipótese de contrato nacional, celebrado entre partes brasileiras, admite-se, em caráter excepcional, a estipulação em moeda estrangeira, devendo, no entanto, ser convertida pela cotação da data da celebração do negócio, atualizada pela correção monetária até o momento da efetiva liquidação.

Isso significa que, para esta derradeira situação, infere-se que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento no sentido de que, a despeito de ser reputada válida a contratação em moeda estrangeira, o pagamento deve ser feito no valor da moeda nacional da data da cotação do momento do fechamento do contrato.

Segundo essa tese, prestigiada em inúmeros precedentes, os contratos, não excepcionados pelo indigitado artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, que atrelam valor em moeda estrangeira ou correção com base na variação cambial são válidos, embora a respectiva cláusula seja destituída de qualquer efeito. Ao converter o preço para reais com base na cotação da moeda estrangeira na data da celebração do contrato e atualizar o preço a partir de então pelo índice oficial de correção monetária, conserva-se a higidez do negócio, mas retira-se qualquer impacto que a moeda estrangeira poderia ter sobre o montante da operação celebrada no Brasil.

Com efeito, desde o leading case, representado pelo julgamento unânime da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 804.791-MG, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, esta tem sido a interpretação norteadora de sucessivos arestos.

Extrai-se, com efeito, desse importante precedente que, in verbis:

“O artigo 1º do Dec. 23.501/33 proíbe a estipulação de pagamentos em moeda estrangeira, regra essa mantida pelo artigo 1º do DL 857/69 e pelo artigo 1º da Lei 10.192/01 e, mais recentemente, pelos artigos 315 e 318 do Código Civil/02. A vedação aparece, ainda, em leis especiais, como no artigo 17 da Lei 8.245/91, relativa à locação. A exceção a essa regra geral vem prevista no artigo 2º do DL 857/69, que enumera hipóteses em que se admite o pagamento em moeda estrangeira.

A despeito disso, pacificou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional.

O entendimento supra, porém, não se confunde com a possibilidade de indexação de dívidas pela variação cambial de moeda estrangeira, vedada desde a entrada em vigor do Plano Real (Lei 8.880/94), excepcionadas as hipóteses previstas no artigo 2º do DL 857/69.

Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira não permitem indexação. Sendo assim, havendo previsão de pagamento futuro, tais dívidas deverão, no ato de quitação, ser convertidas para moeda nacional com base na cotação da data da contratação e, a partir daí, atualizadas com base em índice de correção monetária admitido pela legislação pátria”.

Em sequência temporal, mais incisivo ainda é o conhecido julgamento da 3ª Turma, do Recurso Especial n. 1.323.219-RJ, ainda uma vez, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, ao decidir que:

“O artigo 1º da Lei 10.192/01 proíbe a estipulação de pagamentos em moeda estrangeira para obrigações exequíveis no Brasil, regra essa encampada pelo artigo 318 do Código Civil/02 e excepcionada nas hipóteses previstas no art. 2º do DL 857/69. A despeito disso, pacificou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional.

A indexação de dívidas à variação cambial de moeda estrangeira é prática vedada desde a entrada em vigor do Plano Real, excepcionadas as hipóteses previstas no artigo 2º do DL 857/69 e os contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior (artigo 6º da Lei 8.880/94).

Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária”.

Pouco tempo depois, a mesma 3ª Turma, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n. 1.447.291-RS, com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, averbou que:

“… Do mesmo modo, o entendimento trazido nas razões recursais de que a conversão da dívida contraída em dólar somente se realizaria ao câmbio vigente na data do efetivo pagamento (REsp n. 647.672) encontra-se há muito tempo superado, conforme demonstrado na decisão agravada.

Em recente julgado (Resp. n. 1.323.219), firmou-se ainda orientação no sentido de que a dívida contraída em moeda estrangeira deverá ser convertida em moeda nacional com base na cotação da data de contratação, incidindo a partir daí correção monetária” (v., em senso idêntico, 4ª T., Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.325.603-SP, rel. min. Marco Buzzi).

Seguindo essa mesma tese, de forma deveras didática, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Agravo Interno do Agravo em Recurso Especial n. 1.286.770-RJ, da relatoria do ministro Raul Araújo, proclamou, in verbis:

“As dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária.

Nos casos em que a dívida é líquida e com vencimento certo, os juros de mora e a correção monetária devem incidir desde o vencimento da obrigação, mesmo nos casos de responsabilidade contratual”.

Por fim, é o que também se extrai de precedente da 3ª Turma, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.342.000-PR, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao deixar patenteado, textual:

“O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que, ‘as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária’ (REsp. n. 1.323.219/RJ, rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 26/9/2013)”.

De acordo com esse entendimento, portanto, a despeito de a nossa legislação prever a nulidade da estipulação de valor ou cláusula de correção vinculada à moeda estrangeira, as mencionadas disposições legais, por força de construção pretoriana, culminam por produzir plena eficácia. Isso porque, o valor do negócio, convertendo-se pela cotação na data de sua consumação, não será indexado pela variação cambial, sendo apenas atualizado pela correção monetária até o termo da obrigação.

Aduza-se, por outro lado, que, caso o negócio preencha uma das hipóteses excepcionais contempladas no já aludido artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, como acima ressaltado, a conversão da moeda se dará pelo valor da cotação da data do adimplemento.

É esse, a propósito, como acima frisado, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, colhendo-se, por exemplo, no julgamento da 4ª Turma, no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.299.460-SP, cujo acórdão é da lavra do ministro Marco Buzzi, ao considerar contrato internacional de intermediação, atrelado à moeda estrangeira, na respectiva ementa, que:

“AÇÃO DE COBRANÇA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO NA CONTRATAÇÃO DE JOGADOR DE FUTEBOL – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO APELO EXTREMO – INSURGÊNCIA DA RÉ.

A jurisprudência do STJ entende que, em se tratando de obrigação constituída em moeda estrangeira, a sua conversão em moeda nacional deve ocorrer na data do efetivo pagamento”.

Importa outrossim salientar que o Tribunal de Justiça de São Paulo sufraga integralmente esse entendimento, reconhecendo que se a contratação se inserir nas exceções previstas no artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, é legítima a indexação por moeda estrangeira, devendo o valor do negócio ser convertido pela cotação da data de seu respectivo pagamento (v., e. g., Apelação n. 1015885-68.2016.8.26.0554, 23ª Câmara de Direito Privado, julg. 12.12.2018; Apelação n. 1014504-45.2016.8.26.0224, 38ª Câmara de Direito Privado, julg. 19.04.2018).

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