Opinião

Para além das crises do atual governo: Heráclito, Parmênides e o Conflito de Tebas

Autor

  • Marcos Sampaio

    é Procurador do Estado da Bahia advogado professor membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

16 de junho de 2020, 10h17

Parmênides de Eleia e Heráclito de Éfeso representam correntes de pensamento antagônicos na filosofia grega, tendo o conflito entre suas ideias marcado profundamente a obra de Platão, que procurou conciliar as duas posições, consertando a visão da constante transformação (panta rei), marcada pela conhecida frase que anuncia ser impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio, com a visão parmenidiana da imutabilidade das coisas que se repetem eternamente ao infinito, num ciclo monótono. Logo, se para Heráclito a busca por verdades seria inútil em razão da constante transformação, para Parmênides falta uma maneira de justificar o fluir do mundo.

Ciente de que a via de Aletheia (via do conhecimento) ainda não foi suficientemente vasculhada em matéria política, o caminho dóxa (via de opinião) inspira a construção desse artigo, num momento de impasse político nacional que parece remontar a Tragédia Antígona de Sófocles, num legado em que Édipo parece ter deixado aos filhos brasileiros, de instabilidade constante, inquietação e falta de uma unidade (dentro da diversidade) que conduza o Brasil para o futuro.

Essa bruma que torneia o exercício da presidência da República apresenta tantos episódios complexos e relevantes que, dia após dia, ouvem-se vozes abalizadas sustentando a presença de todos os requisitos configuradores de crime de responsabilidade. O sistema de governo adotado prestigia essa nota de indeterminabilidade e favorece insatisfações sérias em exemplos quase que diários.

Não é por outra razão que a cada movimento político em volta da presidência da República, no Brasil e em toda a América, faz lembrar que nosso presidencialismo tem como principal característica ser crísico (usando a expressão de Edgar Morin [1]), em que antes mesmo de superarmos uma instabilidade, já a substituímos por outra.

E tem sido assim em toda a América do Sul, onde, desde 1978, pelo menos 40% dos presidentes eleitos têm sido contestados por civis que tentaram fazê-los deixar o cargo antes do tempo, como anotou a professora Kathryn Hochstetler [2].

Abaixo da Linha do Equador verificam-se Constituições que estabelecem mandatos presidenciais de quatro a Seis anos, mas a prática revela presidentes que governaram por menos de um ano, alguns meses, poucas semanas e até por algumas horas.

Esses acontecimentos frustram a hipótese essencial relativa às práticas dos sistemas presidencialistas: que os mandatos presidenciais são estáveis e rigorosamente fixados. Na prática, inexorável imaginar um modelo débil em que a população não pode retirar um governante ruim, nem estes conseguem ter garantidos os seus mandatos, conduzindo a consequências de conflitos políticos no presidencialismo que colapsam a própria democracia.

Fortemente influenciados pela Doutrina Monroe, que tinha como lema "a América para os americanos", a América procurou se afastar das monarquias parlamentaristas europeias, criando um sistema de governo autêntico e estável e que deveria funcionar em todo o continente. Calcados numa excessiva centralização de poder e no estabelecimento de uma autoridade nacional, os conflitos e dificuldades de exercício da presidência, em toda América, têm favorecido essa instabilidade de poder.

A maior parte dos estudos sobre o presidencialismo exibidos na clássica obra de Juan Linz [3] comparou o presidencialismo com parlamentarismo, e foram certeiros em argumentar que as instituições tinham sido pouco estudadas e que era necessário atribuir-lhes cuidadosa atenção, exatamente pela instabilidade política que a centralização do poder causa.

São variados os motivos de contestações dos presidentes, passando por suas políticas econômicas insatisfatórias, por escândalos de corrupção e, por fim, por instabilidade política decorrente do enfraquecimento da base parlamentar de apoio. Isso tem gerado diversas rupturas de mandatos por processos formais de impedimento, mas, por vezes, em diversos casos, os parlamentos optavam por processos de afastamento que não exigiam as supermaiorias do impeachment, retirando presidentes por abandono de cargo (Venezuela, 1993, e Equador, 2000), por incapacidade mental (Equador, 1997) e incapacidade moral (Peru, 2000).

Nos parlamentos, as contestações aos presidentes se apresentam, em grande parte, a presidentes com minoria no Congresso, em que os líderes da oposição encontram implicações de diversas ordens para comprovarem a existência de impasse político que, com algum fundamento jurídico, autorize a interrupção prematura do mandato fixo. Nesse desiderado, anotam-se justificativas derredor do comportamento presidencial inconstitucional com relação ao Congresso ou outras instituições governamentais, como se viu no Equador em 1987 e 1992; no Peru em 1991-1992; e no Paraguai em 1998-1999. Segundo o estudo da professora Kathryn Hochstetler, dos 31 presidentes nessas condições de parco apoio parlamentar, 14 (45%) deles foram contestados e oito (26%) caíram.

No sistema presidencialista, os presidentes inevitavelmente estão à parte e acima de outros atores políticos, com seus poderes especiais e fontes especiais de legitimidade (é o único político eleito com votos em todo o território nacional), mas a sua manutenção não depende apenas de seu prestígio, mas também da capacidade de governar para vitoriosos e derrotados, conciliando os múltiplos interesses representados pelo parlamento.

Na tentativa de estabilizar o sistema, o Brasil vem tentando um presidencialismo de coalizão, na expressão criada pelo cientista político Sérgio Abranches [4], em 1988, significando o ato de fechar acordos e fazer alianças entre partidos políticos/forças políticas em busca de um objetivo específico. Nele, haveria uma divisão do Poder Executivo entre diversos partidos, o que garantiria uma larga base parlamentar governista e, por consequência, uma alta taxa de aprovação de proposições legislativas de interesse do Executivo, se não inteiramente de sua iniciativa.

Todavia, em toda a história republicana brasileira, exceto na República Velha, em que se verificou relativa estabilidade política, interrompida em 1930, a realidade demonstra uma luta sem fim e muitas vezes com critérios reprováveis de presidentes que tentam concluir seus mandatos.

A flutuação política tem sido tão frequente que esse presidencialismo de coalizão se apresenta, ainda hoje, como uma improvisação, sem outro objetivo senão o digno, mas único, de impedir o país de regredir no seu compromisso com a democracia.

A superação das instabilidades do hoje e seus desdobramentos aparentemente não conduzirão à estabilidade política imaginada, mas apenas criarão uma nova janela para outras crises que, infindáveis, levam o país a patinar e se afastar daquilo que deveria guiar os debates sobre as mudanças políticas, que é a capacidade ou não de realizar as aspirações mais profundas que a sociedade brasileira hoje já é capaz de expressar.

Nesse impasse sem fim, a solução para o agora certamente será encontrada, mas dificilmente resolverá a renitente crise que o presidencialismo brasileiro insiste em carregar, sobretudo em face da crise de legitimidade que o alcance da maioria parece não conseguir estancar.

Mais ainda, o espaço político atual demonstra um improvável único ator político que pode assumir a condução do país, afastando-o do cíclico momento de dualismo e radicalização da sociedade. Nesse sentido, sistemas de governo formados por conjuntos de líderes parecem mais adequados ao futuro do país.

Mesmo reconhecendo a relevância do debate teórico derredor da possibilidade constitucional de implantação do parlamentarismo no Brasil atual [5], não se pode negar que a única coisa permanente no universo é a mudança.

A mínima estabilidade política de que o Brasil necessita não parece vir da resolução do embate atual, nem da substituição, agora ou no futuro, do presidente da República, mas da implantação de um sistema de governo mais ampliado pela participação efetiva do parlamento na condução e correção dos rumos do governo. Ou seja, pelo enfrentamento do tema que permita a implantação de um semipresidencialismo ou mesmo do parlamentarismo no Brasil, em que o governante não enfeixe hiperpoderes, mas que formem governos nomeados, apoiados e, eventualmente, dispensados pelo voto parlamentar.

Para quem compreende que a alternativa ao presidencialismo deve ser um sistema parlamentarista, ainda assim necessário faz decidir qual parlamentarismo se defende, buscando assegurar que a fuga do presidencialismo puro não conduza simplesmente, pela via de menor resistência, ao parlamentarismo puro.

Parece sensata a defesa de Juan Linz quando prefere o parlamentarismo ao invés do presidencialismo sob o argumento (entre outros) de que os sistemas presidencialistas são "rígidos", ao passo que os sistemas parlamentaristas são "flexíveis", e que a flexibilidade é preferível à rigidez. O pressuposto subjacente é a minimização do risco; e o raciocínio completo é, consequentemente, que um sistema flexível se expõe muito menos a riscos devido a seus mecanismos de autoregulagem.

Para um primeiro passo, talvez a implantação imediata de um semipresidencialismo onde o presidente, eleito pelo povo, tem papel fundamental na formação do governo, com a indicação de um primeiro-ministro que tenha capacidade de dialogar com o Legislativo, gerando uma espécie de coabitação no governo entre presidente e primeiro-ministro possa ser passo inteligente rumo à transição ao parlamentarismo.

Por um caminho ou outro, a redução dos poderes centralizados na presidência da República poderia auxiliar a democracia brasileira a superar o eterno impasse político que vem nos acompanhando, desde a queda do regime getulista.

Resolver o presente, apurando cada fato e responsabilizando os envolvidos, é indispensável (com ou sem impedimento), mas olhar para além de hoje e tentar encontrar caminhos para o futuro pode por termo ao Conflito de Tebas tão marcado no cenário brasileiro.

 


[1] MORIN, Edgar. Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Porto Alegre: Sulina, 2015. P. 5.

[2] "Rethinking presidentialism: challenges and presidential falls in South America". Comparative Politics, jul. 2006, pp. 401-418.

[3] LINZ, J. J. 1994. "Presidential or parliamentary democracy: does it make a difference?". In: LINZ, J.; VALENZUELA, A. (orgs.). The failure of presidential democracy. Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press.

[4] Sérgio Henrique Hudson Abranches. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, in Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 5-34.

[5] Em junho de 2018, estava na pauta do Supremo Tribunal Federal o julgamento do MS 22.972, impetrado (em novembro de 1997) por parlamentares para impugnar Proposta de Emenda à Constituição para instituir o parlamentarismo como sistema de governo. Esse julgamento se frustrou em função do pedido de desistência formulado pelo impetrante, que veio a ser homologado pelo STF

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    é Procurador do Estado da Bahia, advogado, professor, membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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