JurisHealth apresenta

Que vidas salvar? Critérios para alocação de leitos em situação de escassez

Autores

16 de junho de 2020, 9h49

A pandemia pela qual o mundo vem passando, além de ter trazido novos problemas aos sistemas de saúde, jogou luz em outros problemas que já existiam. Um deles é a escassez de leitos no Sistema Único de Saúde (SUS). Não é de hoje que os médicos que atuam no sistema público têm que fazer escolhas trágicas e decidir quem ocupará os leitos disponíveis e, por consequência, quem não terá acesso a eles. Com a Covid-19, esse problema se agravou, pois o vírus possui uma alta taxa de disseminação, levando a um aumento considerável da procura por assistência hospitalar.

Em vários lugares do mundo, o sistema de saúde chegou ao colapso, com pacientes falecendo em razão da ausência do tratamento adequado. No Brasil, alguns estados estão com seus recursos praticamente esgotados, com ocupação dos leitos de UTI superior a 80%, produzindo um contexto de escassez em que apenas alguns pacientes poderão receber o tratamento intensivo.

Nesse cenário, foram desenvolvidos diversos guidelines para orientar o processo de triagem na alocação de leitos, prevendo-se critérios pré-definidos a fim de garantir uma maior objetividade, transparência e publicidade nas escolhas feitas. Além de facilitar o controle e a revisão das decisões tomadas, a construção de parâmetros objetivos diminui a pressão que recai sobre o médico e torna a decisão menos sujeita à influência de vieses não-legítimos.

A fim de compreender de forma mais aprofundada os parâmetros adotados nos mais relevantes guidelines, os autores do presente artigo realizaram uma pesquisa mais profunda (clique aqui) em que foram mapeadas, descritas e sistematizadas as principais diretrizes adotadas. O presente artigo é uma síntese e complementação das ideias ali desenvolvidas, visando contribuir para o debate à luz da realidade brasileira.

Resolução CFM 2.156/2016 e sua insuficiência
Antes da pandemia, a única regulamentação que havia para orientar os médicos e reguladores das centrais de leitos nas escolhas acerca de quem ocuparia as vagas de UTI era a Resolução 2.156/2016, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Seu artigo 6º cria uma hierarquia de cinco níveis de prioridade, favorecendo aqueles pacientes “com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico” (Prioridade 1). No segundo nível, estão os “pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico” (Prioridade 2).

Em seguida, estão os “pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica” (Prioridade 3) e os “pacientes que necessitem de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica” (Prioridade 4). Por sua vez, o nível mais baixo de prioridade envolve “os pacientes com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação” (Prioridade 5).

É fácil perceber que os critérios estabelecidos pela resolução são vagos e dependem da análise subjetiva de cada médico. Além disso, o ato normativo não prevê critérios de desempate entre aqueles pacientes que se enquadram em um mesmo nível de prioridade. Por isso, a resolução não é suficiente para resolver os problemas decorrentes da escassez de leitos em uma pandemia, devendo ser desenvolvidos critérios mais precisos com vistas a tratar especificamente da alocação de leitos em contexto de limitação de recursos.

Não existindo dúvidas de que o elenco normativo e regulamentar existente não atinge as exigências de objetividade, previsibilidade e transparência, gerando várias lacunas que precisam ser resolvidas, é de extrema importância que seja elaborada uma norma mais ampla, detalhada e específica sobre o tema. Em princípio, o ente que deveria regular a matéria, ao menos no que diz respeito ao SUS, é o Ministério da Saúde, cujo chefe, em plena crise, foi trocado por diversas vezes. Na composição tripartite do SUS, o Ministério da Saúde direciona grande parte das ações em saúde, bem como determina, de uma forma mais ampla, a política pública. Eis uma das razões para que, em um contexto ideal, ele regule a matéria ou então tome a iniciativa de discuti-la juntamente com os demais entes federados.

Além disso, o órgão tem legitimidade democrática para fixar as regras, na medida em que faz parte do Poder Executivo e pode promover debate com a sociedade para que os valores mais relevantes para ela sejam protegidos. Ainda, a fixação de critérios pelo Ministério da Saúde trará uniformidade às decisões, na medida em que eles serão os mesmos para todo o território nacional. Note-se que essa é uma matéria em que as regionalidades não são importantes a ponto de ser necessária a fixação de critérios diversificados.

Na omissão do Ministério da Saúde, é possível que outros órgãos possam vir a estabelecer regras, como o próprio CFM, até por já ter sido o autor da resolução citada. As normas ditadas pelo CFM poderiam ser seguidas pelo sistema de saúde privado e, na inércia do Ministério da Saúde, pelo sistema público. O CFM, além de contar com comissões de bioética, também pode trazer outros setores para a discussão, na medida em que escolher quem deve ser alocado em um leito envolve questões médicas, mas também passa por uma análise jurídica à luz da Constituição Federal. Um ato normativo do CFM também teria alcance nacional, o que promoveria a equidade no acesso à saúde.

Protocolos não-oficiais e escolha por algoritmo
Ocorre que, até o presente momento, nem o Ministério da Saúde, nem o CFM perceberam a importância da questão. Justamente por isso, algumas associações, no vácuo deixado por ambos, acabaram por publicar protocolos para a triagem, inspirados em guidelines elaborados em outros países.

No mês de abril, a AMIB — Associação de Medicina Intensiva Brasileira publicou um protocolo para alocação de leitos, que foi substituído por outro uma semana depois[1]. Também o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (CREMEPE) e o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) editaram atos para definir quem terá prioridade para a ocupação dos leitos em situação de escassez.

Apesar da fixação de critérios de maneira regionalizada e por entidades privadas não ser o mais recomendável, tais instrumentos representaram um avanço em relação à Resolução 2.156/2016, do CFM.

Outra ferramenta que pode ser utilizada e merece destaque é o algoritmo desenvolvido por uma equipe médica brasileira, cujos resultados já puderam ser testados na prática. A decisão de alocação pelo algoritmo se dá pela análise de quatro fatores objetivos e de fácil compreensão. São eles: necessidade de intervenção ou monitorização, análise de comorbidades, funcionalidades da vida diária e prognóstico do médico[2].

Princípios norteadores
No coração dos principais guidelines elaborados pelas instituições de saúde mais avançadas do mundo, há uma preocupação com o princípio da maximização do bem-estar da população. A ideia é que os recursos médicos escassos devem ser alocados de modo a favorecer, de fato, o maior número de pessoas não só em termos quantitativos, mas também qualitativos.

O princípio da maximização do bem-estar geral tende a adotar três pilares fundamentais que podem se interconectar em uma mesma dinâmica de triagem: (a) priorizar as escolhas que salvem o máximo de vidas possível (saving lives); (b) priorizar as escolhas que salvem o máximo de anos de vida possível (saving life years); (c) priorizar escolhas que salvem o máximo de anos de vida ajustados com a qualidade (saving QALY – Quality-adjusted life year).

Ressalte-se, contudo, que existe uma grande variação de critérios utilizados para atingir cada um desses objetivos, devendo cada protocolo eleger os melhores critérios e desenvolver ferramentas práticas para implementá-los.

Independentemente das premissas eleitas, o princípio básico que deve orientar a alocação de recursos escassos é a igualdade de oportunidades. Desse modo, todos os que precisam do tratamento intensivo devem ter a chance de participar da triagem, concorrendo junto com os outros pacientes em um processo de seleção que utilize critérios objetivos e clinicamente relevantes.

Nenhum critério, ainda que tenha relevância clínica, como doenças pré-existentes, idade ou sexo, deve ser utilizado como um obstáculo absoluto de acesso a unidades de tratamento intensivo. O ideal é que esses fatores sejam considerados dentro de uma escala de prioridades mais ampla, de modo a não excluir qualquer paciente da possibilidade de participar do processo de seleção, mesmo que suas chances sejam mais baixas.

Por isso, os modelos mais avançados evitam estabelecer critérios de exclusão taxativos, optando por criar rankings que levem em conta mais de um fator de análise. Em linha de princípio, todas as pessoas são consideradas elegíveis para participar de um processo de triagem e recebem uma pontuação obtida a partir de uma análise abrangente de tudo aquilo que pode ter relevância clínica.

Por isso, não é recomendável que sejam criados cortes etários fixos no processo de triagem. É certo que a idade pode ter relevância clínica, na medida em que as pessoas mais idosas costumam estar em uma condição de saúde que tende a diminuir as chances de sobrevivência. Porém, é possível que uma pessoa idosa possa ter mais chance de sobrevivência do que uma pessoa mais jovem, sendo injusto desconsiderar uma condição de saúde mais ampla apenas em razão da idade. Nesse sentido, a idade somente deveria ser levada em conta dentro de um sistema de pontuação mais amplo que envolva a análise de outras condições clínicas, como a presença ou não de comorbidades e a chance de sobrevivência aferida objetivamente por algum critério clínico previamente estabelecido.

Para além de estabelecer critérios de triagem, há outros fatores que devem ser abordados pelos protocolos, inclusive de teor procedimental. Um deles é a criação de uma equipe de triagem que possua treinamento adequado com profissionais distintos daqueles que estão no atendimento aos pacientes. O cegamento da equipe de triagem, por meio da restrição de acesso a determinadas informações irrelevantes, como raça, condição social, profissão ou religião, por exemplo, também pode ser outro fator importante, a fim de evitar enviesamento e discriminação. Os protocolos também devem prever a possibilidade de recurso contra a decisão, em situações excepcionais, e a necessidade de que o paciente continue sendo atendido dignamente ainda que não tenha sido escolhido para ocupar o leito. Por fim, é importante que fique definido o período durante o qual as regras serão adotadas, que poderão ser flexibilizadas conforme o grau de escassez existente. 

Considerações finais
Em um contexto de escassez, em que pessoas estão falecendo pela ausência de vagas em leitos de UTI, é de grande importância que sejam estabelecidos critérios objetivos de triagem, a fim de orientar as escolhas dos médicos, hospitais e gestores públicos.

Já existem muitos modelos que podem ser utilizados como ponto de partida para um debate mais amplo, como o modelo de Pittsburgh[3], do Nice[4] e da AMIB, que adotam diversas combinações para proporcionar uma alocação de recursos capaz de promover a maximização do bem-estar. Esses modelos adotam diretrizes baseadas em critérios clínicos, visando salvar mais vidas e mais anos de vida com qualidade, além de se preocupar com as implicações éticas que devem orientar as escolhas trágicas dessa natureza, como a proibição de discriminação e a ótima alocação dos recursos disponíveis.

Embora os custos políticos de estabelecer quais vidas devem ser salvas sejam elevados, o debate precisa ser realizado abertamente. Afinal, a total ausência de critérios tem o potencial de produzir resultados muito piores, capazes de ferir a isonomia consagrada constitucionalmente e dar ensejo à discriminação e a privilégios injustificáveis, além de diminuir a eficácia dos recursos disponíveis. Por isso, o mais importante é que sejam estabelecidos critérios objetivos, transparentes e éticos, visando maximizar o bem-estar da população e garantir o respeito ao direito à vida do maior número de pessoas sem discriminação.

* JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 


[1]KRETZER, Lara e OUTROS. Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19. Associação de Medicina Intensiva Brasileira – AMIB. Publicado em 01 de maio de 2020. Disponível online: https://tinyurl.com/yda32rgp (consultado em 19/5/2020).

[2]RAMOS, João Gabriel Rosa e outros. A decision-aid tool for ICU admission triage is associated with a reduction in potentially inappropriate intensive care unit admissions. Journal of Critical Care, v. 51, p. 77, 2019. Disponível online: https://tinyurl.com/y7zwhon7.

[3]WHITE, Douglas B. A Model Hospital Policy for Allocating Scarce Critical Care Resources. University of Pittsburgh School of Medicine. Publicado em 23 de março de 2020. Disponível online: https://tinyurl.com/y7j93u4l.

[4] NICE – National Institute for Health and Care Excellence. COVID-19 rapid guideline: critical care in adults (NG159). Disponível on-line: https://tinyurl.com/y9v3fkjs.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!