Contas à Vista

Curta resposta errática custa mortes evitáveis e empobrecimento duradouro

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16 de junho de 2020, 8h00

Spacca
A premissa de que a pandemia da Covid-19 estará sob controle até 31 de dezembro deste ano é frágil pilar a partir do qual foram erguidas todas as regras excepcionais que dispõem sobre a calamidade pública em que nos encontramos.

Enquanto não houver vacina ou controle efetivo das transmissões, a calamidade sanitária tenderá a se estender como realidade que desafia a norma abstrata, com efeitos danosos também nas searas econômica e social.

O balanço atual da tragédia brasileira é digno de comparação internacional: assumimos a segunda colocação mundial no número de mortos, assim como empobrecemos mais velozmente em relação à paridade do poder de compra e à renda média do cidadão global.

Nesta semana ultrapassamos a estimativa inicial "otimista" de 44 mil mortes por Covid-19, que foi feita em março pelo Imperial College para o Brasil, caso tivéssemos mantido corretamente o isolamento social necessário.

Infelizmente, a marcha fúnebre tupiniquim se acelera e caminhamos para o provável quadro de mais de 160 mil mortes em agosto.

No cenário mais pessimista das projeções do Imperial College, nossa sociedade pode acumular até 1,15 milhão de óbitos, por força do caos gerencial provocado primordialmente pelo Poder Executivo federal e por sua falta de diálogo cooperativo com os entes subnacionais.

Vale lembrar que estamos há um mês sem efetivamente contarmos com um Ministro da Saúde. Nosso fracasso institucional está bem representado na interinidade prolongada na chefia do Ministério da Saúde.

Sem controle e sem gestão, nosso país prossegue em rota de crescimento exponencial dos números de infectados e mortos, tal como alertara o Imperial College em 8 de maio:

More broadly, our results suggest that in the absence of the introduction of further control measures that will more strongly curb transmission, Brazil faces the prospect of an epidemic that will continue to grow exponentially.

Mesmo diante de todos esses avisos, a resposta estatal brasileira tem sido curta, omissa e errática, do que dá provas a pretensão fraudulenta de manipulação estatística pelo Ministério da Saúde, a qual foi pronta e duramente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal no dia 09 de junho.

Ora, não cabe ao poder público omitir-se, mediante a nefasta política de "deixar morrer" como "destino", porque isso seria literalmente negar a razão de existir do próprio Estado.

A restrita vigência da calamidade pública até 31 de dezembro (fixada no Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020) mostra-se temerária e incapaz de cumprir o papel nuclear de estabilizar as expectativas nas searas sanitária, econômica e social. Não se pode oferecer resposta adequada para a pandemia sem segurança jurídica quanto ao seu horizonte temporal e, sobretudo, sem planejamento suficiente de ação.

Oferecer soluções curtas é agravar o problema, tornando a crise mais onerosa em termos de mortes evitáveis, perda de empregos e renda para a população mais vulnerável, bem como queda avassaladora da receita tributária e da atividade econômica.

Ora, o curto prazo não é suficiente para lidar com a profunda instabilidade das estimativas de arrecadação inscritas no projeto de lei de diretrizes orçamentárias, enviado pelo Executivo federal em 15 de abril deste ano, para reger não só o exercício de 2021, mas também para estimar metas e riscos fiscais até 2023.

O mesmo se sucede com a frustração das estimativas de arrecadação dos Estados e Municípios para o presente e, sobretudo, para o próximo exercício financeiro. A Lei Complementar 173, promulgada no dia 27 de maio, mereceu contundente crítica formulada por José Roberto Afonso, para quem ela foi um verdadeiro "tiro no pé", haja vista a notória insuficiência da sustentação federativa da calamidade pública.

Respostas curtas custam caro. Não adianta pretender encurtar o tamanho do Estado insidiosamente, porque a pandemia da Covid-19 desvenda – de forma dramática – a inconsistência de tais escolhas transitórias e insuficientes. Eis o contexto em que deverão ser revistos, mais cedo ou mais tarde, os seguintes parâmetros normativos francamente incapazes de reger a realidade em que vivemos:

  1. limites impostos ao custeio dos serviços públicos essenciais pelo teto global de despesas primárias no "Novo Regime Fiscal" (a que se refere a Emenda 95/2016), algo já suscitado, aliás, pela Instituição Fiscal Independente;

  2. prazo de vigência da calamidade pública prevista no Decreto Legislativo nº 6/2020 e, por conseguinte, na Emenda do Orçamento de Guerra (EC 106/2020); e

  3. "Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)" de que trata a LC 173/2020, como debatido aqui.

Precisamos assumir, com honestidade intelectual e seriedade jurídica, o fato de que a calamidade sanitária, social e econômica decorrente da pandemia da Covid-19 certamente se estenderá para além de 2020 e impactará 2021, como abordamos em nossa última coluna.

Somente assim seremos capazes de tentar planejar estruturalmente as ações primordiais que se revelam, desde já, necessárias, sem a adoção de arremedos sabidamente insuficientes. Exemplo de engodo jurídico, aliás, reside na tese de manutenção do teto dado pela EC 95/2016, por meio da pretensão de um suposto uso de créditos extraordinários no próximo exercício financeiro, o que seria flagrantemente inconstitucional.

Quanto mais a realidade dura e complexa se impõe, mais devemos sair em busca da construção de respostas amplas e adequadas. É preciso que tenhamos a ousadia de falar em revisão da vigência da calamidade para podermos passar a debater um plano nacional de enfrentamento da crise sanitária, social e econômica, que deve ser estender, no mínimo, até 31 de dezembro de 2021.

Ideal seria que os poderes políticos da União, em diálogo com os entes subnacionais, tivessem assumido – em caráter prudencial e republicano – que a crise é tão severa que sua gestão merecia, no mínimo, um plano bienal de enfrentamento. Ideal seria que aludido plano fosse executado por um consórcio nacional em esforço de cooperação federativa, a que se refere o art. 241 da Constituição de 1988.

Ideal seria que dialogássemos, ideal seria que planejássemos, ideal seria que os entes políticos executassem o planejado sob regime de cooperação federativa, ideal seria que preservássemos vidas, ideal seria que sustentássemos renda básica e produção econômica, ideal seria que não houvesse desvios patrimonialistas e curto prazismo eleitoral no trato dos recursos destinados ao enfrentamento da pandemia, ideal seria que o Estado cumprisse seu papel constitucional…

Ideal seria que… nós não nos alienássemos nesse momento de tragédia coletiva. As regras fiscais merecem ser debatidas e aprimoradas, sobretudo para fazer face à tragédia de sociedades que caminham para a barbárie civilizatória.

Mas será que nós somos capazes de manter a ousadia de lutar pelo ideal? O desafio que se apresenta — com o decurso dos dias e meses embrutecidos pela escalada de mortes no nosso entorno – é o de não nos acomodarmos em face da banalização do mal, tal como Hannah Arendt bem alertara.

No Brasil, a banalidade do mal muito se assemelha ao cinismo fiscal de deixar que milhares de cidadãos morram para que regras mal formuladas sobrevivam contra tudo e contra todos.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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