Opinião

Prós e contras do contact tracing, ou monitoramento epidêmico

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15 de junho de 2020, 17h07

Mind the App! Cuidado com o aplicativo! A expressão foi usada por Luciano Floridi [1], professor de Oxford, em referência ao Mind the Gap, ou cuidado com o vão entre o trem e a plataforma, frase utilizada nos metros londrinos para alertar cidadãos. O alerta do autor, todavia, é para os cidadãos estarem atentos com os aplicativos usados durante a pandemia.

As tecnologias têm sido grande aliado no combate à Covid-19. Em recente artigo [2], Vaishya et al., descrevem sete possíveis usos e consequências da inteligência artificial na ajuda à pandemia: 1) Detecção e diagnóstico precoce da infecção; 2) Projeção de número de casos e de mortalidade; 3) Desenvolvimento de medicamentos e vacina; 4) Redução da carga horária dos profissionais da saúde com a utilização, por exemplo, de robôs para limpeza e esterilização de quartos de hospital; 5) Análise preditiva; 6) Monitoramento do tratamento; e 7) Rastreamento de contato dos indivíduos.

Essa última consiste no que se tem chamado de contact tracing, a qual vinha sendo utilizada para prevenção e controle de epidemias, como por exemplo a zika nos Estados Unidos [3]. Entretanto, o rastreamento por contato teve sua utilização fortalecida diante da pandemia da Sars-Covid. Mas, afinal, em que consiste essa tecnologia?

O rastreamento por contato permite o monitoramento de pessoas que estiveram próximas da distância necessária para transmissão de doenças por meio do bluetooth de aparelhos telefônicos. O cidadão baixa o aplicativo e cede seus dados, fornecendo sua geolocalização e informando caso tenha sintomas, ou seja, diagnosticado com a doença. Cria-se um ID que informa a todos com quem o cidadão teve contato de que passou por alguém possivelmente infectado [4].

O monitoramento por contact tracing ocorre, portanto, por meio de adesão voluntária dos usuários. O ID de cada cidadão armazena os IDs dos usuários pelos quais passou durante o período estimado de contágio da doença. Permite-se, assim, que quem esteja infectado avise a todos com quem teve contato de forma automática. Forma-se um perfil individual, cujas informações são inseridas pelo próprio usuário e um perfil interativo que serve para notificar por convergência usuários por proximidade física.

Com os dados obtidos dos usuários é possível desenvolver sistemas que utilizem inteligência artificial para realização de análises preditivas, isso é, avaliação de previsão que identifique conjuntos de indivíduos infectados, possibilidade de futuro desenvolvimento da infecção, locais de provável concentração, reaparecimento da doença e monitoramento [5].

A combinação dessas informações gera a possibilidade de realização de distribuição de probabilidades personalizadas para cada indivíduo. Como explica Dora Kaufman, por meio de aprendizado de máquina é possível realizar análise preditiva que avalie, por exemplo, a  probabilidade de o usuário ser infectado, quando a infecção pode ter ocorrido, e a contagiosidade esperada em diferentes dias após a infecção [6].

Existem atualmente pelo menos 47 aplicativos de contact tracing disponíveis ao redor do mundo. China (Zhang et al., 2020), Austrália, Coreia do Sul e Singapura são exemplos de países que adotaram esse tipo de tecnologia (Morley et al., 2020).  No Canadá desenvolveu-se o aplicativo COVI, que utiliza aprendizado de máquina para realizar análises que pretendem auxiliar a gestão de políticas públicas na saúde (Alsdurf et al., 2020). Além disso, recentemente, Google e Apple anunciaram parceria inédita para desenvolverem aplicativo de rastreamento por contato, que será adotado por alguns países, e a França seguiu com as pesquisas para desenvolver seu próprio aplicativo, denominado StopCovid, recusando a tecnologia norte-americana [7].

A utilização da tecnologia de contact tracing traz vários benefícios. Por meio de seu uso e com base nos dados fornecidos, é possível melhorar a tomada de decisões na esfera da saúde pública e privada, bem como aprimorar as estratégias e investimentos no combate à doença. Além disso, é possível por meio dela, identificar quais cidadãos têm mais ou menos risco de contrair Covid-19, reduzindo a disseminação viral. O aplicativo desenvolvido no Canadá, por exemplo, persegue objetivos como:

Reduzir a propagação da Covid-19 e, assim, reduzir mortalidades associadas à doença e a superlotação do sistema de saúde;

— Informar o governo sobre os dados demográficos e de mortalidade obtidos [8].

Esses benefícios são possíveis graças ao uso de técnicas de aprendizado de máquina que permitem combinação de dados e análises preditivas capazes de melhorar as avaliações epidemiológicas para investimentos e realização de políticas públicas no âmbito coletivo. Além disso, individualmente permite a autogestão da doença, empoderando o cidadão por meio de informação sobre si e a sociedade.

Entretanto, há algumas limitações: por exemplo, a de que para que tal tecnologia seja eficaz pelo menos 60% da população do país deve ter baixado o aplicado e consentido com a obtenção de dados e o fato de que os dados usados deve ser o mais próximo possível das características dos cidadãos e do local que onde se utiliza o aplicativo, sob pena de estar enviesado [9]. Além dessas limitações, existem certos perigos em sua utilização que precisam ser apontados.

O direito à privacidade dos usuários é um dos mais podem ser afetados. Nesse sentido, uma série de garantias devem ser asseguradas pelos desenvolvedores. Ainda que o cidadão consinta com o uso de dados pessoais, encontrando-se essa em situação de vulnerabilidade em virtude da pandemia, vários cuidados devem ser tomados.

Nesse sentido, o aplicativo deve ser acessível a toda coletividade, garantindo-se acessibilidade, o que inclui explicabilidade das funcionalidades, riscos e vulnerabilidades do mesmo (garantias mínimas ao falso negativo e positivo). É necessário assegurar o mínimo de efetividade científica e devem-se utilizar os dados coletados apenas para finalidade específica de combate à doença, além de compartilhar tais dados com a administração pública afim de que gestores possam atuar de forma mais eficiente.

Morley et al. [10] resumem em quatro os princípios mínimos para o rastreamento ético. O aplicativo deve ser: necessário, proporcional, cientificamente válido e com prazo determinado. Portanto, é importante que se utilizem tecnologias que garantam a como não identificação (anonimização) dos usuários, como um perfil com ID (identificação) randômica, que mude constantemente para garantir a privacidade. E é fundamental que os dados obtidos cumpram apenas a finalidade de combate à Covid-19 no período pandêmico. A transparência das empresas e governos desenvolvedores é princípio fundamental que serve para resguardar informação da população quanto aos dados usados, o tempo de manipulação, a finalidade e à organizações que acessam esse tipo de base.

É certo que os desafios impostos pela Covid-19 são globais e por essa razão é fundamental a cooperação mundial entre empresas, sociedades civis e estados nacionais. Como afirmam Luengo-Oroz et al. [11] em relação ao desenvolvimento de soluções que envolvem inteligência artificial, é necessário que haja cooperação global para respostas eficazes à pandemia e que essas iniciativas possibilitem maior troca de dados, códigos e modelos; adaptação dos modelos desenvolvidos aos contextos e prioridades locais; que os aplicativos respeitem os direitos humanos; que haja de fato uma cooperação digital internacional solidária.

O anseio por soluções para o fim da pandemia é grande. Mas isso não pode servir de justificativa para que se abra mão de direitos fundamentais. O perigo da erosão da privacidade e hipervigilância governamental e privada justifica a essencialidade do respeito às balizas éticas como as referidas.

 


[2] Vaishya, R., Javaid, M., Haleem, I., & Haleem, A. (2020). Diabetes & Metabolic Syndrome: Clinical Research & Reviews Arti fi cial Intelligence ( AI ) applications for Covid-19 pandemic. 14, 337–339. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1871402120300771?via%3Dihub

[3] Chen, H., Yang, B. O., PEI, H., & LIU, J. (2019). Next Generation Technology for Epidemic Prevention and Control: Data-Driven Contact Tracking. IEEE, p. 2633–2642.

[4] Alsdurf, H., et.al.. COVI White Paper – Version, 1.0. 2020, p. 1–63.

[5] Alsdurf, H., et.al.. COVI White Paper – Version, 1.0. 2020, p. 1–63.

[8] Alsdurf, H., et.al.. COVI White Paper – Version, 1.0. 2020, p. 1–63.

[9] Morley, J., Cowls, J., TaddUeo, M., & Floridi, L. (2020). Ethical guidelines for Covid-19 tracing apps. Nature Machine Intelligence, 582, 29–31.

[10] Morley, J., Cowls, J., TaddUeo, M., & Floridi, L. (2020). Ethical guidelines for Covid-19 tracing apps. Nature Machine Intelligence, 582, 29–31.

[11] Luengo-oroz, M., Pham, K. H., Bullock, J., Kirkpatrick, R., Luccioni, A., Rubel, S., Wachholz, C., Chakchouk, M., Biggs, P., Nguyen, T., Purnat, T., & Mariano, B. (2020). Artificial intelligence cooperation to support the global response to Covid-19. Nature Machine Intelligence. https://www.nature.com/articles/s42256-020-0184-3

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