Opinião

Ministro Marco Aurélio, 30 anos de STF

Autor

  • Fernando Mendes

    é advogado administrador de empresas mestre em Direito Administrativo (PUC-SP) e sócio no escritório Warde Advogados. Foi juiz federal procurador do Estado de São Paulo e presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

15 de junho de 2020, 13h51

Quem é do meio jurídico certamente já ouviu uma história que, embora não verdadeira, ficou folclórica porque se encaixa perfeitamente ao bom humor de sua personagem principal. Um jovem advogado, acompanhado de seu cliente, entra em um elevador e, surpreso, encontra o Ministro Marco Aurélio. Querendo aproveitar a oportunidade para impressionar o cliente, não pensa duas vezes e pergunta: "E aí, Ministro Marco Aurélio, quais são as novidades?".  Ao que o ministro responde: "Novidade, novidade para mim é essa nossa intimidade". É impossível não tentar reconstruir a cena mentalmente imaginando a resposta do ministro na entonação de voz que lhe é característica.

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Quando fui convidado pela ConJur para escrever esse artigo logo lembrei dessa história pelo fato de ela, de alguma forma, simbolizar o bom humor e espontaneidade que caracterizam o modo com qual o Ministro Marco Aurélio tem atuado nesses 30 anos no Supremo Tribunal Federal, completados no último sábado (13/6).

Ao longo desses últimos dias, várias personalidades do mundo jurídico usaram este espaço para expressar a importância do Ministro Marco Aurélio para a história do Supremo Tribunal Federal, em particular, e do Direito brasileiro, no geral. Vou tentar não ser repetitivo e procurar fazer um recorte e, de tudo o que poderia ser dito em relação ao papel do Ministro Marco Aurélio no STF, chamar a atenção para dois aspectos de sua trajetória profissional que, como juiz federal que sou, me marcam e me servem de modelo: a coerência e o bom humor e espontaneidade no exercício da judicatura.

A coerência da atuação jurisdicional do Ministro Marco Aurélio fez com que ele ficasse durante muito tempo conhecido como "o voto vencido". Em entrevista que deu à ConJur por ocasião dos seus 25 anos de STF, o ministro afirmou que antes de os julgamentos serem transmitidos pela TV Justiça "(…) certamente deviam imaginar: 'esse rapaz não entende de nada. Ele está sempre vencido, quase sempre isolado'. Mas fiquei vencido porque tenho, e sempre tive, uma forma de atuar a partir apenas da minha ciência e consciência e da minha formação humanística. E sou muito voluntarioso, como sempre fui, em toda a vida. E não me falta coragem de levantar o dedo e exteriorizar o que penso sobre a matéria em discussão" [1].

A divergência no plenário do Supremo Tribunal Federal é salutar. Se não pela máxima de Nelson Rodrigues recentemente citado pelo ministro em um de seus votos, quando reconheceu que "o subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos" [2], e para quem "toda unanimidade é burra" por tornar as decisões tomadas mais ponderadas.

Em artigo em que estudam a importância dos votos vencidos na história Suprema Corte Americana, Gabriel Wedy e Juarez Freitas [3] relatam que está demonstrado estatisticamente que a possibilidade de dissenso tende a produzir decisões mais ponderadas nos órgãos colegiados do Poder Judiciário americano. Segundo os autores "nas Cortes Federais, por exemplo, compostas de três membros por painel de julgamento, tal fenômeno pode ser comprovado. Quando as decisões são tomadas por painéis compostos apenas por democratas ou só por republicanos, existe boa chance de decisões extremadas no sentido de posições ora liberais, ora conservadores, muito mais radicais do que seriam se os juízes decidissem a causa sozinhos. É que três magistrados ao pensarem em uníssono (liberais ou conservadores), sofrem a propensão de radicalizar se não receberem o contraponto de visão divergente".

No Brasil ainda não são estudados, com a importância que mereceriam, os chamados votos divergentes no Supremo Tribunal Federal [4]. Nos Estados Unidos, por exemplo, o tema provoca grandes reflexões e importantes obras foram escritas sobre os chamados dissents

Mark Tushnet [5] ao estudar o tema e perguntar "por que divergir?", lembra que na tradição do Direito Constitucional americano os grandes dissenters, como John Marshal Harlan, Oliver Wendell Holmes, Willian O. Douglas, são celebrados por uma razão clara: foram capazes de ver além de seu tempo e foram reconhecidos pela sabedoria de suas visões constitucionais que destoavam de entendimentos majoritários que acabaram sendo superados.

Dos muitos temas que poderiam ser lembrados em que o voto divergente do Ministro Marco Aurélio acabou, posteriormente, formando a posição majoritária, destacarei dois: o que reconheceu a inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime na Lei de Crimes Hediondos e o que impediu a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado.

Exemplo do primeiro voto é o proferido no julgamento do HC 69.657-1, julgado em 18/12/92, há quase 28 anos, em que o ministro afirmou que "Por sinal, a Lei 8.072 ganha, no particular, contornos contraditórios. A um só tempo dispõe sobre o cumprimento da pena no regime fechado, afastando a progressividade, e viabiliza o livramento condicional, ou seja, o retorno do condenado à vida gregária antes mesmo do integral cumprimento da pena e sem que tenha progredido de regime".

Muito embora esse posicionamento tenha sido vencido à época, foi mais pelo papel que os ministros entendiam que cabia ao Supremo Tribunal Federal e menos pela concordância que tinham com a regra que impedia a progressividade de regime. Tanto que o ministro Francisco Rezek, naquele julgamento, afirmou que "(…) também aqui me parece-me que o raciocínio do relator é o mais percuciente e sensato. Mas não somos uma casa legislativa. Não temos autoridade que tem o legislador para estabelecer a melhor disciplina. Nosso foro é corretivo, e só podemos extirpar do trabalho do legislador ordinário bem ou mal avisado, primoroso ou desastrado aquilo que não pode coexistir com a Constituição.

Quase 14 anos depois, em 23/2/2006, entendendo que essa regra não podia mais coexistir com a Constituição que era a mesma —, o STF deferiu, por 6 a 5, o pedido do HC 82.959 em favor do paciente reconhecendo a inconstitucionalidade do artigo 2º, §1º, da Lei nº 8.072/1990, pela violação do princípio constitucional da isonomia e da individualização da pena.

O segundo tema que merece ser lembrado é a questão da prisão a partir da decisão de segundo grau. Meu posicionamento pessoal sempre foi pela possibilidade do cumprimento da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado e esse foi o entendimento que prevaleceu no STF por mais de 20 anos depois da Constituição Federal de 1988, sendo modificado no julgamento do HC 84.078, em 5/2/2009. Essa foi interpretação que também defendi ao longo dos anos na diretoria da Ajufe, em nome da necessidade de um sistema penal que respeite o devido processo legal mas que seja efetivo e que acabou sendo vencida no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, em 7/11/2019. E exatamente por pensar diferente é que faço questão de homenagear e reconhecer a coerência e a integridade do Ministro Marco Aurélio na discussão desse tema.

Ao votar no HC 72.077-3, em 14/2/95, há mais de 25 anos, o ministro afirmou que "Por tais razões, reafirmando a minha crença no texto da Carta Política da República, que em boa hora o Dr. Ulisses Guimarães apontou como Carta Cidadã, no que homenageante da proteção dos que vivem em sociedade conta as garras, por vezes impiedosas, do Estado, conheço do recurso interposto e o provejo, a fim de, assegurar ao Recorrente a liberdade, a proteção quanto ao não vir cumprir a sentença até que se opere a coisa julgada e, portanto, venha à balha a certeza sobre a culpa, o que pressupõe a preclusão maior, a teor do princípio insculpido no inciso LVII do rol das garantias constitucionais. É como voto na espécie, conclamando os componentes da Turma a uma reflexão sobre o enfoque até aqui prevalente".

O voto divergente, ainda que de modo indireto, é o caminho democrático que se abre para a revisão da decisão majoritária.

De acordo com Mark Tushnet, "as divergências podem importar, mas de forma bastante indireta: a divergência pode ser encampada por um movimento social porque a expressa algo que o movimento já tem em sua visão constitucional; a visão constitucional do movimento social pode afetar um partido político e seus candidatos; candidatos bem-sucedidos podem nomear juízes e ministros pelas visões constitucionais que defendem; e esses novos juízes podem concluir que a divergência até agora, talvez anos no passado — forneça um relato melhor de nossa Constituição do que a opinião majoritária" [6].

A segunda característica marcante da atuação do ministro é o seu bom humor e espontaneidade no exercício da judicatura, o que atribuo à genuína satisfação e alegria que sente ao desempenhar, a cada dia, o papel de juiz.

E por essa razão termino este texto lembrando de um episódio que afirmo que é verdadeiro porque o presenciei. Como presidente da Ajufe, estava acompanhando uma tarde a sessão da 1ª Turma do STF em razão de uma ação de interesse da associação estar pautada. Durante o julgamento de um dos processos, um advogado visivelmente alterado, sem que se possa saber exatamente o porquê —, ao concluir sua sustentação oral, quis fazer um elogio ao Ministro Marco Aurélio. Mas o fez de forma tão desconexa e atabalhoada que pareceu muito mais que estava lançando uma suspeição contra o ministro. Criou-se um clima de apreensão porque não se imaginava a reação que o ministro teria. Mas ele nada falou. Coube ao ministro Luiz Fux, que presidia a sessão, advertir o advogado pelo absurdo que ele tinha dito. O advogado, aparentemente surpreso e revoltado com a bronca que levou, deixou o plenário aos berros dizendo, "mas eu só quis elogiar o ministro, dizendo que ele é honesto". Mas não acabou por ai, não. Ânimos serenados e o julgamento de um outro caso iniciado, uma jovem advogada, após o Ministro Marco Aurélio ler o relatório, começou a fazer a sustentação oral e foi interrompida pelo ministro em razão de um questão técnica. Ela estava defendendo o mérito de um mandado de segurança quando estava em julgamento apenas a possibilidade da intervenção do representado, na qualidade de terceiro. Após alguma discussão entre os ministros, foi autorizado que a advogada concluísse a sustentação oral. Finalizada, o Ministro Marco Aurélio começou a votar e, para surpresa e espanto de todos os presentes, foi abruptamente interrompido pela advogada, que disse: "não é isso, o senhor está votando errado".

Se o ministro havia conseguido ouvir calado a confusão criada pelo primeiro advogado, não perdeu a oportunidade de se manifestar com bom humor sobre os dois fatos pitorescos daquela tarde dizendo: "Presidente, hoje eu já fui chamado de honesto nesta tribuna. Agora a jovem advogada, ao que parece, pretende me ensinar a votar. Então seria melhor que ela assumisse a relatoria e concluísse o voto".

Ao que tudo indica, o Ministro Marco Aurélio seguiu à risca a lição de Confúcio: "Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nenhum dia na tua vida.”.

 


[2] ADI 6053

[3] O Legado dos Votos Vencidos nas Decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. WEDY, Gabriel e FREITAS, Juarez. in Revista da AJUFERGS, número 09, ano 2016, pág. 205-245.

[4] Sobre o tema vale destacar o artigo: "De quem divergem os divergentes: os votos vencidos no Supremo Tribunal Federal". In: Direito, Estado e Sociedade nº 47 jul/dez 2015. http://direitoestadosociedade.jur.puc-rio.br/media/artigo09n47.pdf

[5] I dissent. Great Oppossing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Beacon Press, Boston, 2008.

[6] "So, dissents can matter, but in quite indirect way: a dissent might be picked uo by a social movement because the dissent expresses something the movement already has in its constitutional vision; the social movement's constitutional vision might affect a political party and its candadates; sucessful candidates might nominate judges and justices because their constitutional visions; and these new justices might conclude that the dissent – by now, perhaps years in the past – provides a better account of our Constitution than the majority opinion does". (I dissent. Great Oppossing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Beacon Press, Boston, 2008 ).

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