Opinião

Sobre a revisão da prisão a cada 90 dias

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15 de junho de 2020, 6h05

A Lei 13.964/19 trouxe alterações importantíssimas ao Código de Processo Penal. No âmbito das medidas cautelares, uma novidade que vem chamando a atenção é o disposto no artigo 316, parágrafo único, o qual estabelece que, caso decretada prisão preventiva, "deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal".

Trata-se, portanto, de uma medida muito positiva, de contenção do poder punitivo estatal, estabelecendo um maior dever de cautela por parte das autoridades que eventualmente decretarem prisões cautelares, sob pena de a prisão ser considerada ilegal [1]. Há quem defenda, ainda, que não apenas a prisão deve ser revisada, mas também as medidas cautelares eventualmente decretadas, em uma interpretação extensiva do texto legal [2].

Assim, prima facie, pode-se concluir pela necessidade de relaxamento da prisão cautelar quando superado o prazo sem manifestação do juízo, por expressa previsão legal.

A partir disso, a defesa teria dois caminhos a seguir, quais sejam, demandar o próprio juízo de primeiro grau para se manifestar quanto ao ponto ou imperar um Habeas Corpus contra autoridade coatora, pois, de acordo com a lei, a revisão da prisão deve ser feita de ofício, ou seja, a inércia do juízo caracteriza coação ilegal.

Ocorre que, na prática, o HC não tem se mostrado uma ferramenta tão eficiente nesses casos, infelizmente. Em que pese o texto legal expressamente determinar a ilegalidade da prisão quando superado o prazo sem manifestação, alguns tribunais estão decidindo de forma diversa, deixando de reconhecer a ilegalidade para apenas "recomendar" que a autoridade aprecie a necessidade de manutenção da prisão [3]. O próprio STJ já decidiu assim recentemente [4].

Por outro lado, há a possibilidade de demandar o juízo de primeiro grau [5], existindo, contudo, o risco de que este apenas reitere os argumentos lançados na oportunidade em que a prisão cautelar fora deferida.

Todavia, o magistrado não deve simplesmente fazer uma análise sobre os argumentos utilizados anteriormente, mas justificar por qual razão a prisão ainda deve ser eventualmente mantida. Essa análise deve ser feita em consonância com o novo artigo 312, parágrafo 2º, o qual estabelece que "a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada".

Isso quer dizer que a manutenção depende, impreterivelmente, da demonstração de necessidade, com base em fatos novos ou contemporâneos, que indiquem "a presença de uma situação de perigo gerada pelo estado de liberdade do imputado" [6]. Não fosse assim, o magistrado apenas renovaria a cada 90 dias a própria decisão que decretou a medida cautelar, sem apresentar embasamento fático-jurídico para tanto, transformando a prisão cautelar em antecipação de pena, o que é expressamente proibido, nos termos do artigo 313, §2º, do CPP.

Justamente para afastar essas decisões, torna-se imprescindível observar a nova redação do artigo 315, a respeito da necessidade de motivação e fundamentação das decisões.

De acordo com o parágrafo 2º, incisos II, III e IV, do referido artigo, não se considera fundamentada a decisão que (II) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (III) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; ou (IV) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.

Com isso, busca-se limitar, de inúmeras formas, aquela famigerada atração dos julgadores pela manutenção das prisões como forma de "garantir a ordem pública", conceito absolutamente abstrato e, por essa razão, manipulável, especialmente por quem possui como ofício utilizar as palavras para justificar seus (pre)julgamentos.

Em resumo, superado o prazo de 90 dias, a prisão precisa ser revisada de ofício, caso não o seja, o julgador pode ser demandado pelas partes, momento em que deverá analisar a necessidade de manutenção cautelar, com argumentos novos que a fundamentem, ou conceder liberdade provisória, sem prejuízo da aplicação de outras medidas cautelares eventualmente necessárias.

Parece-nos, neste contexto, que o writ deve ser utilizado com muita cautela, especialmente tendo em vista como os tribunais estão enfrentando a matéria. Em que pese a lei expressamente indicar a ilegalidade da prisão quando houver inércia do juízo, e mesmo sabendo que cabe à advocacia (des)construir os entendimentos jurisprudenciais, precisamos analisar profunda e friamente cada caso concreto, para evitar os riscos de uma jogada precipitada [7]. Parece-nos mais ponderado, portanto, demandar o juízo de primeiro grau e, caso a prisão seja mantida com base em fundamentos inaplicáveis, atacar via Habeas Corpus.

 

[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2020.

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, pg. 1100.

[3] Se a prisão preventiva supera a 90 (noventa) dias, deve o juízo que a decretou proceder a sua reavaliação, nos termos do que dispõe o artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal. (TJ-DF 0708781-03.2020.8.07.0000, Relator: NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Data de Julgamento: 14/05/2020, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 27/05/2020).

[4] 3. Por fim, a Lei nº 13.964/2019, ao introduzir o parágrafo único ao artigo 316 do CPP, determinou, a cada 90 (noventa) dias, a revisão da necessidade de manutenção da prisão cautelar. 4. Agravo regimental provido, em parte, para que para que o Relator do recurso em sentido estrito, possa, nos termos da Lei nº 13.964/2019 (artigo 316, parágrafo único, do CPP), examinar a necessidade de manutenção da segregação cautelar imposta ao paciente. (AgRg no HC 573.232/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 12/05/2020, DJe 18/05/2020).

[5] Importante salientar que a revisão cabe ao juízo de primeiro grau, que decretou a prisão, até a sentença. Após, a revisão caberá ao Tribunal competente pela análise de eventuais recursos em tramitação.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, pg. 1063.

[7] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais. 2020.

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